Procurado por turistas, Kalunga sofre com isolamento e transporte precário

Agricultura familiar, extrativismo e ecoturismo são base da economia no maior quilombo do Brasil, que enfrenta falta de serviços básicos

Por Inglid Martins | ODS 10ODS 11 • Publicada em 9 de janeiro de 2024 - 09:21 • Atualizada em 26 de janeiro de 2024 - 08:54

Turistas visitam área da Chapada dos Veadeiros em território Kalunga: visitantes e moradores enfrentam dificuldades no transporte (Foto: Joedson Alves / Agência Brasil)

Turistas visitam área da Chapada dos Veadeiros em território Kalunga: visitantes e moradores enfrentam dificuldades no transporte (Foto: Joedson Alves / Agência Brasil)

Agricultura familiar, extrativismo e ecoturismo são base da economia no maior quilombo do Brasil, que enfrenta falta de serviços básicos

Por Inglid Martins | ODS 10ODS 11 • Publicada em 9 de janeiro de 2024 - 09:21 • Atualizada em 26 de janeiro de 2024 - 08:54

(Cavalcante/GO*) – No primeiro dia de novembro, a quilombola Domingas Fernando de Castro, 52 anos, morreu após pular de um caminhão que levava moradores da comunidade de Vão das Almas, no Quilombo Kalunga, até a sede do município de Cavalcante. A tragédia ilustra alguns dos problemas enfrentados pelos quilombolas, como o isolamento das comunidades e as dificuldades de transporte. Domingas viajava na caçamba de um caminhão pau-de-arara com, pelo menos, outras 15 pessoas e assustou-se com a fumaça soltada pelo veículo, totalmente inadequado para transportar passageiros.

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Localizada a 325 quilômetros de Brasília, Cavalcante (GO) fica no coração do quilombo: o Território Kalunga ocupa 60% de toda a extensão do município. Cavalcante é a terceira cidade do país com maior porcentagem de moradores quilombolas, segundo o IBGE. Dos seus 9.589 moradores, 57% são quilombolas – Goiás é o oitavo estado com a maior população autodeclarada quilombola no Brasil (pouco mais de 30 mil pessoas).

Apesar de conhecido pelo cenário privilegiado da Chapada dos Veadeiros e de ser um dos municípios de maior extensão na região, Cavalcante é a única das três cidades do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Quilombola Kalunga (as outras são Monte Alegre e Teresina de Goiás), a não receber linhas de ônibus intermunicipais e interestaduais, dificultando o deslocamento da população e dos turistas. O acesso fica ainda mais difícil para as famílias que vivem em comunidades rurais e dos quilombolas do Kalunga – a situação piora quando chove forte, inviabilizando o trajeto pelas estradas improvisadas de terra batida.

Conseguimos preservar e oferecer uma experiência única aos turistas, mas muitas vezes somos prejudicados por empresas do ramo, que tentam barrar a vinda desses visitantes. Eles falam que é caro. Até aqui, no nosso local, o racismo nos alcança. Dessa forma, conseguem convencer novos visitantes a irem a outros pontos na Chapada. Mas quem conhece nossas belezas sabe da receptividade que oferecemos, sempre volta

Carlos Pereira
Presidente da Associação Quilombo Kalunga

Cavalcante abriga as maiores comunidades do Território Quilombola Kalunga: Vão de Almas, Vão do Moleque e Engenho II. Das três, Engenho II é aquela que possui melhor infraestrutura, com energia elétrica e ruas abertas. Grande parte dos domicílios possui água encanada e banheiros. No local, a 27 km da sede do município de Cavalcante, vivem 125 famílias, cerca de 625 pessoas. A maioria das construções é feita com tijolos de adobe e telhado de palha, mas há algumas residências de alvenaria.

A economia do quilombo é baseada em agricultura subsistência, cultivo de roças familiares, ecoturismo, extrativismo e pecuária. As três comunidades quilombolas contam com escolas que oferecem do ensino infantil ao EJA (Educação para Jovens e Adultos). Mas, somente no Engenho II, há um posto de saúde dentro da comunidade para atendimento da população.

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Vão do Moleque está localizado entre vales e regiões montanhosas da Chapada dos Veadeiros, com difícil acesso. Cerca de 390 famílias, totalizando 1.950 pessoas, moram na região. Grande parte dos moradores tem acesso à energia elétrica, parte proveniente da infraestrutura financiada pela comunidade e parte fornecida pelo programa federal ‘Luz para Todos’, implementado durante a primeira gestão do presidente Lula. Além da agricultura familiar, da pecuária, do extrativismo e da exploração do ecoturismo, a economia local é impulsionada pelo comércio. Uma clientela formada por professores, servidores públicos, agentes comunitários e outros trabalhadores permite que o dinheiro circule na comunidade para compras, pagamentos de serviços públicos e particulares, além de atendimento às necessidades dos residentes.

A comunidade mais isolada das três é a de Vão de Almas, em área serrana cujo acesso só é possível com a utilização de carros 4×4. No período das chuvas, torna-se praticamente impossível chegar às residências dos quilombolas. No entanto, é também uma das áreas mais preservadas do Cerrado. As casas são construídas com tijolos de adobe, chão terra batida e telhado coberto com palha. Vivem no local 215 famílias, totalizando 1.075 pessoas. A comunidade enfrenta a falta de saneamento básico, de infraestrutura e de eletricidade, sendo preciso andar quilômetros para buscar água nos rios da região, para o banho, higiene e cozinha. A economia é baseada em subsistência, extrativismo e trocas de cultivos, como mandioca, hortaliças, frutas e grãos.

Estrada de terra no território quilombola Kalunga: isolamento e dificuldades para transporte e acesso a serviços (Foto: José Cícero / Agência Pública)
Estrada de terra no território quilombola Kalunga: isolamento e dificuldades para transporte e acesso a serviços (Foto: José Cícero / Agência Pública)

Perigo no transporte e estrada polêmica

Com a dificuldade de acesso, os caminhões “pau-de-arara” – capazes de superar áreas íngremes, enfrentar estradas precárias e e atravessar as partes rasas dos rios – tornam-se a única opção de transporte para os quilombolas, mal acomodados nas caçambas, quase sempre lotadas. Foi de um desses caminhões que Domingas pulou, assustada pela fumaça do motor. Ela fraturou o quadril e teve uma hemorragia interna: o socorro demorou a chegar como sempre ocorre no território quilombola.

Para o presidente da Associação Quilombo Kalunga, Carlos Pereira, situações como essa seriam sanadas com a expansão da BR-010, passando pelo território Kalunga, conforme já previa o projeto original da rodovia, que faria parte do programa “50 anos em 5”, do ex-presidente Juscelino Kubitschek, em 1960”. “Isso facilitaria muito a inclusão de comunidades mais afastadas, algumas até isoladas, onde os acessos à região são muito difíceis. Alguns trechos ficam intransitáveis mesmo com veículos de tração 4×4, que são caros, mas agilizam o deslocamento em caso de socorro, em ações contra os incêndios criminosos e crimes contra o meio ambiente, para coibir novas invasões”, afirma.

Mas moradores do quilombo, em grande parte, são contrários à obra: para eles, a ampliação da estrada aumentaria os problemas já enfrentados no Kalunga, como grilagem e invasões de terras, e provocaria outros, como aliciamento massivo de crianças e adolescentes para prostituição ao longo da rodovia, casos de estupros e outros crimes.

Em Cavalcante, a falta de transporte público impulsiona a necessidade de contratações de “lotações”, carros de passeio comum, particulares, que oferecem serviços de deslocamento dentro e fora da cidade e são usados por turistas. Essas lotações, que podem ser contratadas por aplicativo, são oferecidas desde a capital do estado, Goiânia, e do Distrito Federal até nas cidades próximas dentro da Chapada dos Veadeiros. Ecoturismo garante receita.

Baunilha do Cerrado, fruto nativo da terra: quilombolas comercializam produtos online (Foto: Inglid Martins)
Babaçu, fruto nativo do território Kalunga: quilombolas comercializam produtos online (Foto: Alciléia Torres)

Turismo impulsiona economia

Mesmo com essa dificuldade de locomoção, 90% da receita da cidade de Cavalcante vem do ecoturismo: os atrativos principais da região ficam dentro do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Quilombola Kalunga (SHPCQK). As belezas dos pontos turísticos paradisíacos chamam atenção do mundo todo, principalmente a cachoeira de Santa Bárbara, suas águas cristalinas de um azul intenso se igualam às cores dos mares do Caribe, sendo o atrativo mais visitado na região.

Também fazem parte do roteiro as Cachoeiras da Capivara, Cachoeira Candaru, Cachoeira Poço Encantado e várias outras espalhadas por todo TQK, além das piscinas naturais, fervedouros, trilhas e a oferta da pratica esportes radicais. Famosa também é a gastronomia local, as manifestações culturais e a receptividade dos quilombolas Kalunga, que são atrativos essenciais para garantir uma experiência única aos visitantes.

Todas as atrações e pacotes podem ser comprados com antecedência através do site – https://quilombokalunga.ecobooking.com.br – além de acesso aos valores de cada ponto turístico individual e por grupo. No Centro de Apoio ao Turista (CAT), na entrada da cidade, os guias aguardam os turistas que irão seguir para as cachoeiras, rios e trilhas, principais atividades locais. É necessário contratar um guia, em sua maioria quilombola kalunga e moradores das comunidades do Vão de Almas, Vão do Moleque e Engenho II, não somente para ter acesso aos pontos turísticos como também para garantir a segurança de não correr o risco de se perder pela região, já que os quilombolas Kalunga prezam pela preservação ambiental, mantendo a natureza quase intocada. Todos os guias passam por uma formação e são cadastrados, evitando que aventureiros possam se inserir sem conhecimento do território.

É preciso tirar essa visão que a população lá fora tem da gente daqui que somos miseráveis, sem cultura e incapazes de sustentar nossas famílias. Há eventualidades, como enchentes e seca, ou casos até criminosos de destruição de lavouras por gente que tenta expulsar da terra os Kalunga. Mas, no dia-a-dia, ninguém passa fome, porque plantamos e comemos com qualidade, orgânico, temos gado, animais para alimentação

Carlos Pereira
Presidente da Associação Quilombo Kalunga

Carlos Pereira, presidente da AQK, menciona a importância de assegurar a segurança dos visitantes com guias bem treinados para andar pelo Sítio e preparados para ajudar o turista nos passeios pela região. “Não é todo local aqui que é seguro para as pessoas: existem muitos vales, rios, e muitas regiões que ainda não foram explorados pelo humano. Precisamos garantir que tenham do lado alguém preparado para isso. Contratar um guia que mora na região é essencial para isso; eles sabem onde e como ir aos pontos turísticos”.

O dirigente quilombola reconhece que a comunidade sobrevive basicamente da exploração do turismo, mas com consciência ambiental. “Conseguimos preservar e oferecer uma experiência única aos turistas, mas muitas vezes somos prejudicados por empresas do ramo, que tentam barrar a vinda desses visitantes porque não deixamos que pessoas sem conhecimento do território adentrem. Então, eles falam que é caro. Até aqui, no nosso local, o racismo nos alcança. Dessa forma, conseguem convencer novos visitantes a irem a outros pontos na Chapada. Mas quem conhece nossas belezas sabe da receptividade que oferecemos, sempre volta”, assegura.

A quilombola Dirani Francisca, da comunidade de Vão das Almas, com arroz da plantação local: moradores do Kalunga têm orgulho de produção orgânica e sem agrotóxicos (Foto: Sergio Amaral/MDS)
A quilombola Dirani Francisca, da comunidade de Vão das Almas, com arroz da plantação local: moradores do Kalunga têm orgulho de produção orgânica e sem agrotóxicos (Foto: Sergio Amaral/MDS)

Dentro do SHPCQK, quem não trabalha com ecoturismo precisa encontrar outros meios para garantir um pagamento ao final do mês, assim uma parcela desses rendimentos é obtida com as vendas de cultivos excedentes , oferecidos em feiras livres na região. O trabalho para abrir roças é familiar, pesado e exclusivamente braçal, já que o regimento interno do TQK proíbe o uso de máquinas agrícolas, assim, tanto para o plantio quanto para a colheita são usados somente ferramentas simples de uso manual. Não é permitido alterar quimicamente a terra, prepará-la para diversidade de plantio, devendo respeitar o seu uso para o tipo de cultivo específico com as qualificações nutricionais que o solo oferece. Agrotóxicos também não podem ser usados, para não contaminar nascentes ou rios, sendo necessário controlar pragas ou qualquer manifestação de doenças nas lavouras observando a produção e usando pesticidas naturais. Os animais para o abate são criados livremente, se alimentando entre as vegetações naturais que crescem no cerrado, não sendo permitido abrir pastagem.

Muitos quilombolas kalunga conseguem vender online os produtos que fabricam com as frutas colhidas de árvores nativas. Em suas páginas nas redes sociais, os quilombolas oferecem, além de artesanatos, produtos de extrativismo como a baunilha do Cerrado, obtida por sementes crioulas: são três espécies que crescem e pesam mais que qualquer outra encontrada no restante do mundo, muito apreciadas em outros pontos do país.

Carlos Pereira disse que as organizações locais estão diversificando os cursos oferecidos aos jovens para enfrentar as promessas de trabalho fácil e altos salários para atrair jovens das comunidades. “Muitos vão para fora somente para ingressar numa universidade e depois voltam”, conta o presidente da AQK. “É preciso tirar essa visão que a população lá fora tem da gente daqui que somos miseráveis, sem cultura e incapazes de sustentar nossas famílias. Há eventualidades, como enchentes e seca, ou casos até criminosos de destruição de lavouras por gente que tenta expulsar da terra os Kalunga. Mas, no dia-a-dia, ninguém passa fome, porque plantamos e comemos com qualidade, orgânico, temos gado, animais para alimentação. Tem jovem aqui que tem carro do ano, muitas cabeças de gado, fruto do nosso trabalho”, afirma.

*Esta reportagem foi realizada com o apoio do Programa Acelerando a Transformação Digital, parceria do ICFJ (International Center for Journalism) e da Meta, e a mentoria do jornalista Chico Otávio

 

Inglid Martins

Graduanda em Jornalismo pela Universidade Estácio de Sá em Trindade (GO), é estagiária no Diário da Manhã, de Goiânia e,pesquisadora IC - CNPq/Capes na Unesa. Foi professora de Artes Visuais, Sociologia e Filosofia na rede estadual de ensino de Goiás. Apaixonada por contar histórias, atualmente está descobrindo o Cerrado através do Jornalismo

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