Caminho para titulação dos quilombos é longo e acidentado

Processos esbarram em disputas por propriedade e conflitos agrários, além da morosidade e da burocracia dos órgãos governamentais

Por Inglid Martins | ODS 10 • Publicada em 9 de janeiro de 2024 - 09:15 • Atualizada em 10 de janeiro de 2024 - 09:52

Território Quilombola Kalunga, o maior em extensão do Brasil, se estende por três municípios goianos: titulação dos quilombos enfrenta burocracia e resistências (Foto: Associação Quilombola Kalunga)

Território Quilombola Kalunga, o maior em extensão do Brasil, se estende por três municípios goianos: titulação dos quilombos enfrenta burocracia e resistências (Foto: Associação Quilombola Kalunga)

Processos esbarram em disputas por propriedade e conflitos agrários, além da morosidade e da burocracia dos órgãos governamentais

Por Inglid Martins | ODS 10 • Publicada em 9 de janeiro de 2024 - 09:15 • Atualizada em 10 de janeiro de 2024 - 09:52

(Cavalcante/GO*) – A Constituição de 1988 estabelece, no artigo 68 dos Atos da Disposições Constitucionais Transitórias, que “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos”. O processo de titulação, previsto no previsto no dispositivo constitucional, é um caminho longo e acidentado. Para o Censo 2022, um mapeamento prévio do IBGE identificou 5.972 localidades quilombolas e 2.308 agrupamentos quilombolas; contudo, há apenas 494 territórios quilombolas com alguma delimitação formal no país. Destes, 147 têm titulação definitiva, onde vivem 63 mil pessoas, menos de 5% de toda a população quilombola encontra pelo Censo.

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Para iniciar a abertura deste processo, é necessário requerer uma certidão de registro no Cadastro Geral de Comunidades Remanescentes de Quilombos junto a Fundação Cultural Palmares. O segundo passo é a realização de Relatório Técnico e Delimitação (RTID), responsabilidade do INCRA (Instituto de Colonização e Reforma Agrária). O órgão deve fazer um relatório antropológico com levantamento fundiário, elaboração de mapa do território e o cadastramento das famílias pertencentes à comunidade. No caso do Quilombo Kalunga, o encaminhamento para a realização do RITD tem quase duas décadas e até hoje não foi concluído pelo Incra.

A terceira fase começa com o envio do RTID a Iphan, Fundação Cultural Palmares, Secretaria de Patrimônio da União, Funai, Conselho de Defesa Nacional, Serviço Florestal Brasileiro, Ibama, ICMBio e a órgãos ambientais estaduais para análise: esta costuma ser a etapa mais burocrática e lenta. Durante essas análises, os processos dos quilombos esbarram em disputas pela propriedade de  terras e outros conflitos fundiários. Muitas vezes, os territórios quilombolas estão tomados de invasores – de fazendeiros e pecuaristas a pequenos posseiros. As questões fundiárias envolvem terras devolutas do estado, processos de verificação de autenticidade de documentos – alguns remontando ao tempo do Brasil Colônia – e ações de desapropriação de propriedades rurais para reintegração da posse das terras aos quilombolas.

Estudioso do processo de grilagem na região do Território Quilombola Kalunga (TQK), o antropólogo Francisco Bittencourt de Souza destaca a situação na Fazenda Bonito onde, segundo seu levantamento, há, pelo menos, 234 matrículas diferentes para o mesmo imóvel. Chico de Souza – autor do livro “Se o Grileiro vem, Pedra vai”, citado na ação civil pública movida pelo MPF que resultou na ordem judicial para a operação de reintegração de posse no Kalunga em maio – estima que para cada hectare da área total existam quatro documentos fraudados. A Fazenda Bonito tem uma área de mais de 38 mil hectares onde moram cerca de cem famílias Kalunga.

Casa identificada como do Território Quilombola Kalunga na comunidade Engenho II: demora nos processos de titulação dos quilombos (Foto: Joéson Alves / Agência Brasil - 13/09/2023)
Casa identificada como do Território Quilombola Kalunga na comunidade Engenho II: demora nos processos de titulação dos quilombos (Foto: Joéson Alves / Agência Brasil – 13/09/2023)

No Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Quilombola Kalunga, há também o agravante de que muitas invasões ocorreram em terras desapropriadas e com indenizações já pagas pelo Incra. As lideranças quilombolas afirmam que a demora na titulação definitiva das terras facilitam não apenas a grilagem mas a abertura de novos processos, contestando a concessão de direito de uso pela população quilombola, reiniciando os procedimentos judiciais infindáveis. As alegações do Incra para a demora, registrada na ação movida pelo MPF, são a falta de recursos necessários para agilizar os processos e promover as ações necessárias para fazer o RTDI.

Após a aprovação do RTDI pelos órgãos envolvidos, se não houver contestações, o Incra baixa uma portaria de reconhecimento que encerra a etapa de identificação dos limites do território. O próximo seguinte, antes da titulação definitiva dos quilombos, é o decreto de desapropriação das terras para fins de interesse social pela União. Só depois vem a titulação definitiva.

Segundo o Censo 2022, o Brasil tem 1.327.802 de pessoas autodeclaradas quilombolas distribuídos em 1.696 municípios, o que representa cerca de 0,65% do total de habitantes do país. O Censo revelou que apenas 12,6% da população quilombola reside nesses 494 territórios com alguma delimitação oficial. Quando o IBGE considera apenas os Territórios Quilombolas oficialmente delimitados com status fundiário de titulado (147 em 2022), o mais avançado do processo de regularização fundiária, a população quilombola cai para apenas 63 mil pessoas. Isso representa apenas 4,3% do total de quilombolas do país. Portanto, 95,67% da população quilombola (ou 1.270.360 pessoas) ainda aguarda a regularização formal de suas terras.

De acordo com o Censo 2022, o estado de Goiás reúne 30.387 pessoas autodeclaradas como quilombolas – e Cavalcante, onde fica a maior parte do Território Quilombola Kalunga, é o terceiro município do país com maior proporção de moradores quilombolas: 57% dos 9.569 habitantes. São 5.473 quilombolas em Cavalcante, 1.147 em Teresina de Goiás (42% da população total do município) e 1.458 em Monte Alegre (21,8%).  De acordo com o Censo, os três municípios do Kalunga contam com pouco mais de 8 mil quilombolas.

*Esta reportagem foi realizada com o apoio do Programa Acelerando a Transformação Digital, parceria do ICFJ (International Center for Journalism) e da Meta, e a mentoria do jornalista Chico Otávio

Inglid Martins

Graduanda em Jornalismo pela Universidade Estácio de Sá em Trindade (GO), é estagiária no Diário da Manhã, de Goiânia e,pesquisadora IC - CNPq/Capes na Unesa. Foi professora de Artes Visuais, Sociologia e Filosofia na rede estadual de ensino de Goiás. Apaixonada por contar histórias, atualmente está descobrindo o Cerrado através do Jornalismo

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