ODS 1
Quilombo Kalunga, um guardião invisível do Cerrado
Modo de vida tradicional, agricultura de subsistência e cuidados com o ambiente garantem preservação de 83% da vegetação nativa do bioma
Modo de vida tradicional, agricultura de subsistência e cuidados com o ambiente garantem preservação de 83% da vegetação nativa do bioma
(Cavalcante/GO*) – O Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Quilombola Kalunga – na Chapada dos Veadeiros, vizinho ao Parque Nacional – tem mapeados, em seu território, 879 nascentes, berço das águas de afluentes dos Rios Maranhão e Paranã, que formam o Rio Tocantins, que vai desaguar, ao norte no Rio Amazonas. A área de Cerrado – bioma considerado a caixa d’água do Brasil, exatamente por abrigar tantos cursos de água e ser o berço de oito bacias hidrográficas – no território quilombola é exemplo de preservação. De acordo com levantamento do MapBiomas, o Kalunga mantém 83% da vegetação nativa do Cerrado – no estado de Goiás, a área nativa preservada é de 30%, no país 48%.
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Para os quilombolas Kalunga, seu território não é apenas um espaço geográfico: há todo simbolismo ancestral de pertencimento ao ambiente, são pessoas da terra, nascidas em meio à vegetação nativa, entre vãos e serras, estão conectadas ao bioma.
O próprio Regimento Interno da Associação Quilombo Kalunga, estabelecido em 2019 com a participação de representantes de todas as comunidades do quilombo, determina ser dever da organização dos Kalunga “zelar pelo meio ambiente, como um todo, protegendo as matas, as águas dos rios e suas nascentes, obedecendo a legislação ambiental; promover o Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário Kalunga, apoiando a agricultura familiar, incentivando a construção de mini fábricas de alimentos orgânico; criar um banco de sementes crioulas e incentivar a produção de alimentos 100% orgânicos; lutar pela preservação do Cerrado; promover o desenvolvimento de atividades atinentes à conservação e preservação do meio ambiente e ao uso sustentável dos recursos naturais”.
Faz parte do regimento também o respeito à legislação ambiental e outros dispositivos legais para a conservação da água, solo, animais, plantas e do subsolo e a proibição do uso de agrotóxicos. As famílias do Kalunga vivem, na grande maioria, da agricultura de subsistência – são pessoas que carregam a história de um povo que aprendeu a respeitar o seu quintal e o tempo do Cerrado; evitam agredir o meio ambiente e alterar a paisagem.
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Veja o que já enviamosO Cerrado conta com 10 mil espécies de vegetação – ao menos 4 mil delas, endêmicas. A abundância de espécies inclui 864 aves, 199 mamíferos, 180 répteis, 1200 peixes e 14 mil invertebrados. “Eles fizeram uma escolha desse modo de vida alternativo, exercem um papel fundamental de preservação do ambiente onde estão inseridos e lutam pela conservação das suas tradições, respeitando as suas origens. Os serviços ecossistêmicos que as comunidades tradicionais prestam são ocultados ficam invisibilizados”, destaca o antropólogo Chico de Souza, especialista em conflitos fundiários e comunidades tradicionais, especialmente quilombolas. O antropólogo lembra um frase de Biko Rodrigues, quilombola de São e líder da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) – “Os quilombolas são guardiões invisíveis do meio ambiente” – para frisar que, apesar de no Cerrado, a reserva legal ser de apenas 20%, nos territórios quilombolas, a área preservada é muito maior.
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Os quilombolas, principalmente os mais velhos, temem que novas tecnologias afetem esse modo de vida que preserva sua cultura e o meio ambiente. Para Carlos Pereira, o jovem presidente da AQK, de 28 anos, essas novas ferramentas e tecnologias modernas não podem ser mais ignoradas. “Isso não significa alterar o modo de vida Kalunga, mas, sim usá-las com consciência e responsabilidade, na capacitação dos jovens, tanto para a proteção do sítio histórico e o cuidado com o meio ambiente, quanto para não serem aliciados para longe das comunidades”, argumenta Pereira, lembrando que “mais de quinhentos quilombolas Kalunga estão nas universidades federais e particulares; eles vão para fora estudar e voltam para o quilombo para compor o grupo de os profissionais necessários aqui”. São com essa nova geração que a SHPCQK conta para analisar riscos ambientais de projetos oferecidos aos quilombolas.
Foi com o uso da tecnologia que os quilombolas Kalunga puderam realizar o georreferenciamento detalhado de todo o sítio histórico entre os anos de 2019 e 2021. O trabalho teve a colaboração efetiva dos jovens das comunidades e contou com subsídios do Fundo Internacional de Parceria de Ecossistemas Críticos (CEPF), apoiado pela Agência Francesa de Desenvolvimento, Conservação Internacional, União Europeia, Fundo Mundial para o Meio Ambiente, governo do Japão e o Banco Mundial.
Com esses equipamentos técnicos, os quilombolas tiveram acesso a dados importantes para identificar as áreas invadidas ou desmatadas e regiões de risco ambiental, além de mapear a localização de todas as casas do território. O trabalho de georreferenciamento também permitiu o mapeamento digital, utilizando um sistema de coordenadas geográficas com máxima precisão, de todas as características do solo através de imagens aéreas e de satélite, o que está sendo aproveitado para que o uso da terra seja feito com mais conscientização para preservação.
Todos esses cuidados, previstos no regimento e aprimorados a partir do georreferenciamento, levaram o SHPCQK a ser reconhecido pela ONU como como o primeiro TICCA – Territórios e Áreas Conservadas por Comunidades Indígenas e Locais – do Brasil, em fevereiro de 2021. O título, concedido pelo Programa de Meio Ambiente da ONU, é atribuído a “territórios comunitários e tradicionais conservados, nos quais a comunidade tem profunda conexão com o lugar que habita, processos internos de gestão e governança e resultados positivos na conservação da natureza”.
Para o presidente da AQK, com esse título o território quilombola Kalunga alcançou notoriedade internacional e mais autonomia, destacando a sua importância como reserva ambiental. Mas Carlos Pereira contou que essa visibilidade também atraiu pessoas mal intencionadas, com projetos que poderiam afetar o modo de vida da comunidade e a paisagem local: “Temos uma área exclusiva aqui na associação para analisar esses projetos e, mesmo depois dessa avaliação mais técnica, precisa ter a autorização dos líderes: todas as ações e decisões são tomadas em acordo com as comunidades”.
Brigada quilombola
Os dados sobre o levantamento do MapBiomas foram divulgados em setembro pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) durante evento realizado no Território Quilombola Kalunga, em parceria com o Ibama PrevFogo, que mantém uma brigada formada por moradores do quilombo na Chapada dos Veadeiros (GO), uma das pioneiras no uso consciente do fogo no Cerrado. O grupo é formado por 75 brigadistas, que combatem o fogo nos municípios goianos de Cavalcante e Teresina de Goiás.
Segundo o Ibama, os brigadistas associam o conhecimento tradicional sobre o fogo dos kalungas às técnicas de pesquisadores do Cerrado que atuam no quilombo. “Todos aqui dependem do Cerrado de alguma forma para sobreviver. Temos kalungas cuidando do que é dos kalungas no manejo do fogo, respeitando a tradição e saberes tradicionais”, disse, durante o evento, o supervisor da brigada do PrevFogo, Charles Pereira Pinto, quilombola da comunidade Engenho II.
A atuação do PrevFogo no Território Quilombola Kalunga começou em 2011: o Ibama queria evitar qualquer queima da vegetação, o chegou a causar atritos com integrantes da comunidade, que sempre usaram o fogo como parceiro para limpeza das roças. A partir de 2014, contudo, as brigadas passaram a adotar o Manejo Integrado do Fogo (MIF), com o reconhecimento do papel das queimadas, de forma controlada, na manutenção do Cerrado. O trabalho, assegura o PrevFogo tem dado resultado: o último grande incêndio no território foi em 2017.
*Esta reportagem foi realizada com o apoio do Programa Acelerando a Transformação Digital, parceria do ICFJ (International Center for Journalism) e da Meta, e a mentoria do jornalista Chico Otávio
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Graduanda em Jornalismo pela Universidade Estácio de Sá em Trindade (GO), é estagiária no Diário da Manhã, de Goiânia e,pesquisadora IC - CNPq/Capes na Unesa. Foi professora de Artes Visuais, Sociologia e Filosofia na rede estadual de ensino de Goiás. Apaixonada por contar histórias, atualmente está descobrindo o Cerrado através do Jornalismo