Na internet, um mundo de extremismo

Neonazistas, neofascistas, monarquistas, neointegralistas, católicos, skinheads: a extrema-direita tem grupos para todos os gostos

Por PH de Noronha | ODS 16 • Publicada em 1 de março de 2023 - 08:18 • Atualizada em 8 de março de 2023 - 17:01

Em 2020, grupo de supremacistas brancos não identificado faz uma manifestação em São Paulo no Dia da Consciência Negra. Foto Reprodução da Internet

Em 2020, grupo de supremacistas brancos não identificado faz uma manifestação em São Paulo no Dia da Consciência Negra. Foto Reprodução da Internet

Neonazistas, neofascistas, monarquistas, neointegralistas, católicos, skinheads: a extrema-direita tem grupos para todos os gostos

Por PH de Noronha | ODS 16 • Publicada em 1 de março de 2023 - 08:18 • Atualizada em 8 de março de 2023 - 17:01

O universo de grupos da extrema-direita brasileira é grande, multifacetado e bem pouco conhecido da maioria. Não é pauta habitual nas redações jornalísticas, só algumas poucas vezes por ano ele é apresentado ao grande público em reportagens mais ou menos aprofundadas, com foco maior nas células neonazistas. Não temos no Brasil um partido nazista, como acontece em alguns países. E os grupos neonazistas e outros de extrema-direita nacionais estão longe de serem unidos ou integrados – a maioria atua de forma isolada, por conta própria e na clandestinidade.

Até agora, o neonazismo brasileiro não gerou uma grande profusão de atos violentos ou terroristas, mas eu acredito que eles ainda virão

Michel German
Professor da UFRJ

De acordo com a jornalista Letícia Oliveira, os neonazistas estão entre os mais numerosos e expressivos dentro do amplo universo de grupos de extrema-direita presentes na internet:

“Além dos neonazistas, encontramos neofascistas, monarquistas, neointegralistas e separatistas (que defendem a separação dos três estados do Sul da República do Brasil). Há também grupos antissemitas, racistas inspirados pela Ku Klux Klan, skinheads e machistas/misóginos. Aliás, a misoginia e o machismo são uma constante na maioria dos grupos de todas as tendências. Temos ainda grupos que glorificam assassinos em massa e católicos extremistas dissidentes da antiga TFP, a organização católica de extrema direita Tradição, Família e Propriedade”.

Leu essas? As reportagens da série Neonazismo à brasileira

A jornalista Heliete Vaitsman, que entrevistou exaustivamente 13 especialistas de diferentes áreas para a montagem de um livro sobre o neonazismo, acrescenta: “Esses grupos são muito irregulares. Às vezes, cinco adolescentes são nazistas e formam uma célula. Mas, aí, um deles se muda de Jundiaí para Piracicaba, cria outra célula e o grupo original se esfacela. E há muitos grupos que quase não têm adolescentes, são basicamente de adultos. O grande problema agora é que eles se ampliaram nas redes sociais e há o medo de que venham para as ruas, a partir da liberalização do uso de armas e do incentivo à violência promovidos por Bolsonaro”.

Michel Gherman, professor da UFRJ, reforça o temor de que alguns grupos partam para a violência física explícita: “Os grupos neonazistas no Brasil não são integrados, é verdade, mas já ajudaram a eleger um presidente. É ilusório pensar que eles não têm peso político apenas porque são divididos e sem uma organização em larga escala. E, apesar da derrota do Bolsonaro, o neonazismo segue sendo um movimento em crescimento constante, vide a persistência dos acampamentos em vários estados e a própria bancada eleita do PL, a maior da Câmara. Até agora, o neonazismo brasileiro não gerou uma grande profusão de atos violentos ou terroristas, mas eu acredito que eles ainda virão. Bolsonaro está acabado, capaz de virar um local de visitação turística na Flórida. Mas, entre seus seguidores e os neonazistas, no Brasil deverá haver uma minoria que partirá para atos mais violentos e até terrorismo, acredito que isso não tardará a acontecer”.

Leticia Oliveira, que monitora e estuda movimentos neonazistas na internet, conta que a presença desses grupos teve um boom durante a pandemia, especialmente no Telegram. Além disso, enquanto há grupos do aplicativo de mensagens que são exclusivos de alguma célula de extrema-direita, também funcionam abertamente fóruns livres para troca de ideias e informações. O maior deles, onde a língua falada é o inglês, conta com mais de 16 mil participantes de diversas tendências extremistas.

Apesar de os neonazistas estarem baseados em sua maioria nos estados de São Paulo e da Região Sul, muitos aparecem também no Nordeste, no Centro-Oeste e até em Niterói e São Gonçalo, na região do Grande Rio. Seus nomes são curiosos e bem variados – os pesquisadores pedem à imprensa que não divulgue os nomes, porque os grupos utilizam essas citações para fazer propaganda e atrair mais adeptos. Os coletivos mais fortes contam com até mil seguidores no Telegram e em outras plataformas, mas a grande maioria são grupelhos de poucas dúzias de simpatizantes.

Há grupos neonazistas que são filiais brasileiras de organizações estrangeiras. É o caso do Misanthropic Brasil, que veio da Misanthropic Division, grupo ucraniano conhecido por ter formado em 2014 a Divisão Azov, um pequeno exército militar assumidamente neonazista, criado para combater separatistas pró-Rússia no Leste da Ucrânia, após a anexação da Crimeia pelo governo de Vladimir Putin. Posteriormente, a Divisão Azov foi integrada à Guarda Nacional da Ucrânia e vem tendo papel importante na defesa do país contra a invasão russa, sofrendo pesadas baixas. Desde 2016, o Misanthropic Brasil tenta atrair brasileiros pela internet para lutar nas tropas da Azov.

Integralistas do século 21

O integralismo – movimento de extrema-direita dos anos 30 inspirado pelo fascismo italiano que chegou a tentar um golpe de Estado armado para derrubar Getúlio Vargas, atacando o Palácio Guanabara – tem dois grupos fortes e tradicionais presentes na Internet e com atuação na sociedade, em vários estados. O principal é a Frente Integralista Brasileira (FIB), fundada em 2005 em São Paulo e que é o grupo mais institucional, com um site bem organizado e personalidade jurídica própria. Se intitula “a única organização do Integralismo a nível nacional” e mantém a marca e o lema originais do integralismo tradicional dos anos 30: a letra grega sigma (Σ), que simboliza a soma dos valores, e o slogan “Deus, Pátria, Liberdade”. A FIB rechaça a acusação de que o integralismo seja fascista e, em seu site, diz: “O fascismo tem uma concepção totalitária do Estado, enquanto o integralismo tem uma concepção totalitária do Universo, adotando, portanto, uma filosofia totalista”.

Em sua apresentação em seu site, a FIB diz: “Baseada no legado deixado pelo maior movimento nacionalista da história do Brasil, a Frente Integralista Brasileira surge no século XXI, fundada por patriotas da nossa terra, com o objetivo de criar uma escola de cultura e civismo, inspirada em valores cristãos, para despertar o nosso povo em torno das reais possibilidades da nação, elevando sua autoestima e afirmando-se para a construção da mais bela civilização do século XXI!”

Outro grupo forte é a Associação Cívico Cultural Arcy Lopes Estrella (Accale), que em seu nome homenageia um dos principais líderes do movimento integralista. A Accale tem sede em São Gonçalo (RJ), onde, nos anos 90, Arcy Lopes Estrella fundou o Centro Cultural Plínio Salgado. Em sua cerimônia de criação, em dezembro de 2017, na Câmara de Vereadores de Niterói, contou com a presença de três importantes políticos bolsonaristas do Rio de Janeiro: o deputado estadual Rodrigo Amorim, o então vereador (atual deputado federal) Carlos Jordy e o deputado estadual (atual senador) Flávio Bolsonaro.

Cerimônia de criação da Accale, em Niterói, com a presença de Flávio Bolsonaro (ao centro), e dos bolsonaristas Rodrigo Amorim e Carlos Jordy. Foto Internet
Cerimônia de criação da Accale, em Niterói, com a presença de Flávio Bolsonaro (ao centro), e dos bolsonaristas Rodrigo Amorim e Carlos Jordy ((Foto: Reprodução / Internet)

Embora mantenha relações com a FIB, a Accale é considerada o braço mais extremista do neointegralismo. Eduardo Fauzi, um dos cinco terroristas que atiraram uma bomba no prédio da produtora do grupo Porta dos Fundos, no Rio de Janeiro, na véspera do Natal de 2019, era militante da Accale – que negou qualquer participação no atentado. Ele também era filiado ao PSL, partido pelo qual Bolsonaro se elegeu em 2018.

Num post bem didático em seu Twitter, Odilon Caldeira Neto – professor de História Contemporânea na Universidade Federal de Juiz de Fora e coautor do livro “O fascismo em camisas verdes: Do integralismo ao neointegralismo” – fala da associação:

“A Accale é uma organização neofascista, que tem uma forte tendência neointegralista, mas que também faz elogios a outras figuras da extrema direita brasileira. De Alberto Torres a Enéas Carneiro, passando também por Bautista Vidal (outra figura importante do Prona). Os grupos neo se dividem basicamente em duas tendências: uma mais conservadora, outra mais radical. A primeira faz elogios principalmente à tendência do integralismo católico de Plínio Salgado. As tendências mais radicais privilegiam o integralismo de Gustavo Barroso. Radical, intolerante, antissemita e conspiracionista. A partir disso, abre a possibilidade de radicalização e interação com grupos mais extremistas no plano neofascista internacional, inclusive neonazi”.

Segundo Letícia Oliveira, tanto a FIB quando ao Accale vem tentando eleger parlamentares e estão presentes no PTB, de Roberto Jefferson, e no PRTB – partido cujo lema, a propósito, é “Deus, Pátria e Família”. Uma face mais agressiva do neointegralismo ganhou destaque na imprensa do Rio de Janeiro em 30 de novembro de 2018, um mês depois da vitória de Bolsonaro na eleição presidencial. Naquele dia, um grupo de três homens roubou faixas antifascistas e de apoio à democracia na entrada do prédio da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), no bairro de Botafogo, colocadas por estudantes da própria universidade durante a campanha eleitoral.

Reportagem no jornal O Globo (12/12/2018) contou que um grupo desconhecido, autointitulado “Comando de Insurgência Popular Nacionalista”, assumiu a autoria do ataque e deu mais detalhes: “Dias depois do roubo, um vídeo de um grupo de homens encapuzados, vestidos de preto, pisando em bandeiras similares às que foram roubadas começou a circular na internet. Um texto que diz que a “juventude é ensinada a se insurgir contra a pátria” e que os jovens se transformaram em “operários do crime”, “homossexuais militantes”, “pedófilos” e “criaturas acovardadas desprovidas de amor ao próximo” é lido. Na cena seguinte, há 11 homens em círculo e, atrás deles, aparecem uma bandeira do Brasil e outra com o símbolo do Integralismo — movimento de extrema-direita que teve início no Brasil na década de 1930. Ao final, enquanto um integrante queima as bandeiras, os outros fazem uma saudação com os braços retos acima da cabeça”.

O vídeo abaixo, publicado originalmente pela Ponte Jornalismo, em seu final traz a assinatura “FIB – Família Integralista Brasileira”, que utiliza a mesma sigla (FIB) da Frente Integralista Brasileira. A “saudação com os braços retos acima da cabeça” a que se refere a notícia de “O Globo”, que pode ser vista por poucos segundos ao fim do vídeo, nada mais é do que a saudação nazista em homenagem a Hitler.

PH de Noronha

É jornalista, trabalhou nas editorias de Economia e Internacional do Jornal do Brasil e O Globo e foi editor de Macroeconomia e Política no Brasil Econômico. Atuou na comunicação corporativa de empresas como Cetip e TIM Brasil e nos governos federal (Anac e BNDES) e estadual (Secretaria de Segurança).

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