Educação, a melhor arma

Estudiosos defendem ações pedagógicas que ensinem aos jovens estudantes brasileiros os perigos que o nazismo representa à democracia

Por PH de Noronha | ODS 16 • Publicada em 1 de março de 2023 - 08:16 • Atualizada em 8 de março de 2023 - 17:03

Um ativista não identificado de um grupo neonazista faz pichação de ataque a nordestinos em um muro de São Paulo. Foto João Primo/Wikipedia

Um ativista não identificado de um grupo neonazista faz pichação de ataque a nordestinos em um muro de São Paulo. Foto João Primo/Wikipedia

Estudiosos defendem ações pedagógicas que ensinem aos jovens estudantes brasileiros os perigos que o nazismo representa à democracia

Por PH de Noronha | ODS 16 • Publicada em 1 de março de 2023 - 08:16 • Atualizada em 8 de março de 2023 - 17:03

Em 1979, uma série norte-americana de quatro capítulos, que misturava ficção e realidade, tendo Meryl Streep como estrela principal, deixou a Alemanha Ocidental em estado de choque ao ser levada ao ar em horário nobre, com cenas demasiadamente chocantes inspiradas em fatos reais. Seu nome: “Holocausto”. Produzida pela rede de TV NBC, a produção, bastante realista, tocou numa ferida mal curada da alma alemã – os crimes nazistas da Segunda Guerra Mundial.

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Segundo a BBC, um terço da população da Alemanha Ocidental (cerca de 20 milhões de pessoas) assistiu a pelo menos parte da série. Além disso, pesquisas revelaram que, após verem a série, 86% dos espectadores alemães discutiram o Holocausto com amigos ou familiares. O resultado foi que, a partir dos anos 80, várias escolas alemãs procuraram dar uma nova educação aos alunos sobre o nazismo e o Holocausto, saindo das salas de aula e promovendo visitas educativas a campos de concentração. Além disso, por causa da série, historiadores alemães começaram a dar mais atenção ao Holocausto e os campos de concentração abriram ao público as primeiras grandes exposições e memoriais.

Na grande maioria dos casos, as atividades escolares com visitas aos campos da morte receberam ótimas avaliações de resultados. Ou seja, contribuíram decididamente para que jovens alemães que não viveram a Segunda Guerra Mundial tivessem uma consciência crítica sobre o nazismo e seus crimes.

À esquerda, montagem fotográfica antissemita divulgada na internet por um grupo neonazista brasileiro durante a pandemia de Covid-19. Ela reproduz uma clássica caricatura pejorativa de judeu ("O mercador feliz"). Reprodução
À esquerda, montagem fotográfica antissemita divulgada na internet por um grupo neonazista brasileiro durante a pandemia de Covid-19. Ela reproduz uma clássica caricatura pejorativa de judeu (“O mercador feliz”). Reprodução

O negacionismo do Holocausto também aumentou muito no Brasil no período de Bolsonaro como presidente. E um dos caminhos para combater isso é investir na educação antinazista nas escolas, que não fique apenas nos horrores do Holocausto, mas que mostre aos nossos jovens estudantes o que é o nazismo e o mal que ele faz a uma sociedade democrática

Michel Gherman
Sociólogo e escritor

Aqui, no Brasil, quando perguntados sobre quais seriam os melhores caminhos para o enfrentamento ao neonazismo, os estudiosos são unânimes em dizer que precisamos desenvolver um programa educacional sobre o nazifascismo. Mas, igualmente, sobre a escravidão e sobre a ditadura militar de 1964, questões centrais da História brasileira, como destaca a psicóloga Lia Vainer Sschucman:

“Esse amor aos militares por parte de uma classe média que diz que “na ditadura era melhor de se viver”, isso não se cria na Argentina, porque lá eles construíram uma memória da ditadura. Mas que memória nós construímos aqui, no Brasil? Não há, e tampouco construímos uma verdade da escravidão brasileira. Meus alunos sabem como funcionava um feudo na Europa medieval, mas não sabem nada da Casa Grande e da Senzala. E não é culpa deles, é do ensino. Hoje dizemos: “Sem anistia”. Mas as pessoas nem sabem o que é anistia… Nós, intelectuais brasileiros, gritamos frases que a população, em geral, não consegue sequer saber o significado. Nós temos oportunidade agora de construir nossas memórias coletivas, que poderão reforçar uma educação contra o neonazismo”.

Michel Gherman acrescenta que a educação tem que ir além da pedagogia do Holocausto:  “Todas as pesquisas mostram claramente que o neonazismo cresceu fortemente no Brasil graças ao bolsonarismo. Ninguém conseguiu até hoje provar o contrário. O negacionismo do Holocausto também aumentou muito no Brasil no período de Bolsonaro como presidente. E um dos caminhos para combater isso é investir na educação antinazista nas escolas, que não fique apenas nos horrores do Holocausto, mas que mostre aos nossos jovens estudantes o que é o nazismo e o mal que ele faz a uma sociedade democrática. Isso é mais importante do que nunca, porque, hoje, temos um movimento crescente nas escolas de apologia ao nazismo, inclusive com ataques violentos, que vêm num crescendo”.

Não apontar as semelhanças do bolsonarismo com o nazismo é cometer uma normalização de discursos que são essencialmente neonazistas. É preciso chamar pelo nome correto e, enquanto pesquisador, caracterizar

Renato Levin Borges
Professor e pesquisador

Além da educação, Gherman defende uma atualização da legislação brasileira que pune os crimes de nazismo: “Nossa legislação é antiga, é uma lei que trata do nazismo da Alemanha dos anos 30 e 40. Hoje temos um neonazismo a brasileira, onde as pessoas agem como nazistas, mas não se apresentam nem se assumem como tal. Ao contrário, fazem tudo para “naturalizar” ações neonazistas como se fossem coisas normais, sem o carimbo explícito da suástica. É preciso atualizar a legislação, com leis que garantam punição de forma eficaz para atos inspirados ou motivados por ideias nazistas, que precisam ser devidamente tipificados como crimes – desde a criação e a disseminação de fake news até a instigação ao ódio, que culmina em atos golpistas e terroristas”.

Renato Levin Borges reforça a necessidade de uma ampla educação antinazista: “Os bolsonaristas presos em Brasília estão se comparando aos judeus nos campos de concentração: isso é uma banalização. Na verdade, se estivessem na Alemanha de Hitler e nos colocassem nos campos de concentração, eles é que estariam do lado de fora como nossos algozes. Não apontar as semelhanças do bolsonarismo com o nazismo é cometer uma normalização de discursos que são essencialmente neonazistas. É preciso chamar pelo nome correto e, enquanto pesquisador, caracterizar”.

Levin Borges defende projetos educacionais que promovam a sensibilização dos estudantes, inclusive com atividades fora da sala de aula: “Os projetos de desfascistização e desradicalização contra a extrema-direita que deram certo na Noruega, na Alemanha e na Áustria, passam não só pelo ensino em sala de aula, mas também pela sensibilização do afeto. Que é a experiência existencial, de sentir algo e conseguir se conectar com ele. Então, quando as escolas alemãs levam os alunos para visitar um campo de concentração, cria o impacto para os jovens de ver a pilha de sapatos de crianças que morreram ali. Teremos que descobrir modos de trabalhar isso junto ao bolsonarismo, que é como uma casca dura e impermeável, subjetiva e afetivamente. Quando você tenta argumentar com um bolsonarista, ele diz que você mente, que é controlado pela mídia, que foi enganado na universidade. Achar um ponto para rachar isso passa muito mais em como conseguimos afetar esse sujeito do que dar uma aula para ele”.

Levi Borges acredita que, junto com medidas educacionais e novas leis, uma ação de afeto para desarmar a resistência dos bolsonaristas é igualmente importante: “Com a catástrofe humanitária do bolsonarismo, a gente não pode mais se dar ao luxo de não disputar as pessoas. E não temos tempo para teorizar, é preciso trocar a roda com o carro andando. O neoliberalismo tornou as pessoas isoladas, individualizadas e responsáveis pela sua sorte e sua miséria, competindo um contra o outro. Já o fascismo oferece um grupo de acolhimento. Aquela tia ou avó que ficava sozinha, passa a ter um grupo que conversa sobre tricô e que quer dar um golpe, achando que vai salvar o país para os netos. Essa noção de pertencimento é fundamental. É preciso desconectar essas pessoas das fontes que radicalizaram elas, mas não as deixar isoladas. Elas precisarão ser reconectadas numa outra comunidade de acolhimento e escuta”.

O professor de Filosofia destaca algumas iniciativas que podem ser inspiradoras para uma educação antifascista e antibolsonarista: “A coisa de fazer um café e convidar as pessoas para conversar sobre política, na campanha de Fernando Haddad à presidência em 2018, por mais que não tenha dado certo em termos eleitorais, foi uma tentativa válida. Mas ações como essas não podem ser episódicas, tem que ser continuadas. Senão, daqui a quatro anos o neonazismo ganha de novo. Porque a política é um desdobramento da disputa cultural, que não é só produção de mídia, é também a conversa com o vizinho, no grupo comunitário ou na associação de moradores. Se não fizermos isso, estamos fadados a perder. Porque o fascismo sempre vai oferecer pertencimento e valorização em algum grupo”.

18 livros recentes sobre o bolsonarismo e o neonazismo no Brasil

  1. “O Neofascismo No Poder (ano I) Análises Críticas Sobre O Governo Bolsonaro”, de Juliana Fiuza Cislaghi e Felipe Demier (organizadores), Consequência, 2019.
  2. “Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo usados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições”, de Giuliano da Empoli, Vestígio, 2019
  3. O Brasil dobrou à direita: uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018”, de Jairo Nicolau, Zahar Editora, 2019.
  4. “Antissemitismo, uma Obsessão: Argumentos e Narrativas”, de Eliane Pszcol e Heliete Vaitsman (organizadoras), Numa, 2020.
  5. “O fascismo em camisas verdes: Do integralismo ao neointegralismo”, de Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto, FGV Editora, 2020.
  6. “O não judeu judeu: A tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo”, de Michel Gherman, Fósforo Editora, 2022.
  7. “Fascismo à brasileira: como o integralismo, maior movimento de extrema-direita da história do país, se formou e o que ele ilumina sobre o bolsonarismo”, de Pedro Doria, Planeta, 2020.
  8. Crônica de uma tragédia anunciada: como a extrema-direita chegou ao poder”, de Wilson Gomes, Sagga Editora, 2020.
  9. A República das Milícias: dos esquadrões da morte à Era Bolsonaro”, de Bruno Paes Manso, Todavia, 2020.
  10. “A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake News e violência digital”, de Patrícia Campos Melo, Companhia das Letras, 2020.
  11. Criminalização da negação do Holocausto no Direito Penal Brasileiro”, de Milena Gordon Baker, Thoth Editora, 2020.
  12. “Ovo Da Serpente: a ameaça neofascista no Brasil de Bolsonaro”, de Valério Arcary, Cid Benjamin e Felipe Demier, Mauad X, 2020
  13. “Fascismo Brasileiro”, de Diego Aguiar, Mundo Contemporâneo, 2020.
  14. Tempestade Ideológica – Bolsonarismo: A Alt-Right e o Populismo Iliberal no Brasil”, de Michele Prado, Lux, 2021.
  15. Guerra Pela Eternidade: o Retorno do Tradicionalismo e a Ascensão da Direita Populista”, de Benjamin R. Teitelbaum, Editora da Unicamp, 2022
  16. “O Ovo da serpente – Nova direita e bolsonarismo: seus bastidores, personagens e a chegada ao poder”,de Consuelo Dieguez, Companhia das Letras, 2022
  17. “Do transe à vertigem: Ensaios sobre bolsonarismo e um mundo em transição”, de Rodrigo Nunes, Ubu Editora, 2022
  18. “Neonazismo, um risco atual – Por que? Onde? Como?”, de Eliane Pszcol e Heliete Vaitsman (organizadoras), Numa, 2023.

PH de Noronha

É jornalista, trabalhou nas editorias de Economia e Internacional do Jornal do Brasil e O Globo e foi editor de Macroeconomia e Política no Brasil Econômico. Atuou na comunicação corporativa de empresas como Cetip e TIM Brasil e nos governos federal (Anac e BNDES) e estadual (Secretaria de Segurança).

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