Renato Janine Ribeiro: ‘O Brasil precisa parar de produzir desigualdade’

Janine Ribeiro: “Penso que a nossa prioridade absoluta deveria ser garantir que a criança até os sete ou oito anos completados, saibam ler, escrever e fazer as operações aritméticas”. Foto Custódio Coimbra

Em entrevista ao #Colabora, ex-ministro diz que ensino em tempo integral e alfabetização na idade certa podem mudar a realidade do país

Por Micael Olegário | ODS 4 • Publicada em 28 de agosto de 2023 - 08:42 • Atualizada em 31 de agosto de 2023 - 13:15

Janine Ribeiro: “Penso que a nossa prioridade absoluta deveria ser garantir que a criança até os sete ou oito anos completados, saibam ler, escrever e fazer as operações aritméticas”. Foto Custódio Coimbra

“Desigualdade e injustiça não são simples restos que vão passar com o tempo, são coisas que estão no projeto de Brasil”, aponta o ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro sobre a realidade social e educacional do Brasil. De acordo com o professor de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP) e atual presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, o Brasil precisa assumir o compromisso de parar de produzir a desigualdade. Para Janine Ribeiro, a escola em tempo integral pode colaborar com esse objetivo e, ao lado da alfabetização na idade certa e da formação de professores, deve ser uma das prioridades para a educação brasileira. “Muita gente se alimenta bem na escola”, lembra o ex-ministro, para quem o Brasil precisa criar as condições para que a escola em tempo integral se desenvolva no país. Renato Janine comentou sobre a iniciativa do governo Federal de aumentar o número de matrículas em tempo integral na educação básica.

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O programa Escola em Tempo Integral, instituído através da Lei nº 14.640 de 31 de julho de 2023, aprovado pelo Senado Federal e sancionado pelo presidente Lula, prevê mecanismos de apoio financeiro para que estados e municípios aumentem o número de vagas em escolas de tempo integral, nas quais os alunos permanecem sete horas diárias ou 35 horas semanais. Além disso, o programa deve priorizar estudantes em situação de maior vulnerabilidade socioeconômica.

A medida visa atender as metas do Plano Nacional de Educação e prevê que 50% das matrículas da educação básica sejam em tempo integral até 2024. Inicialmente, o programa terá um orçamento de R$ 4 bilhões para a criação das vagas pelos estados e municípios, que depois devem ser mantidas com recursos do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação). Em entrevista ao #Colabora, Renato Janine Ribeiro comentou sobre a necessidade de priorizar a educação básica e sobre como a escola em tempo integral pode fazer a diferença na vida de crianças e adolescentes brasileiros. Confira a entrevista na íntegra:

#Colabora – O Programa Escola em Tempo Integral tem como finalidade fomentar a criação de matrículas em tempo integral em todas as etapas e modalidades da educação básica através do financiamento de estados e municípios para abrirem vagas em suas redes. Como o senhor avalia esse modelo de incentivo e as metas do projeto?

Renato Janine – Eu não acompanhei o projeto, pois estou fora do governo há 8 anos. O que eu sei é o seguinte: a escola em tempo integral é algo que existe nos países desenvolvidos e que o Brasil está implementando de forma gradual, com bastante diferença entre os estados. O que eu posso falar é sobre o princípio da questão, que significa a escolaridade da criança com mais tempo para se desenvolver. Acho que o grande exemplo histórico que temos são os CIEPs (Centros Integrados de Educação Pública), criados pelo governador Leonel Brizola, com forte apoio de Darcy Ribeiro. A ideia do CIEP era a criança passar o dia todo na escola. Além dos componentes escolares, conteúdos e competências, a criança também tem esporte, alimentação e outras atividades. O Brizola gostava de dizer que a criança sairia de lá já tendo jantado, tomado banho e de roupa limpa.

A grande novidade do projeto é que voltamos a ter um governo comprometido com a educação. Ao contrário do governo anterior, que tinha horror à pauta da educação e claramente deixou de dar prioridade ao tema, indicando para o Ministério da Educação (MEC) pessoas que não tinham capacidade para gerir um setor tão nevrálgico e decisivo para o futuro das nossas crianças e adolescentes

Renato Janine Ribeiro
Professor, presidente da SBPC e ex-ministro da Educação

Tudo isso representa uma mudança muito grande na escola. Por exemplo: eu morei anos em um bairro periférico de São Paulo, chamado Sete Praias, na região da Pedreira. Na entrada do condomínio onde eu vivia, havia uma escola estadual na qual os turnos eram de 3 horas e isso é absolutamente insuficiente para o que quer que seja. Creio que isso já mudou, mas é chocante você ter um estado rico como São Paulo, em que 20 anos atrás tinha ainda essas escolas com turnos de 3 horas, onde o aprendizado é pequeno e esses elementos extra aprendizado, mas que são muito importantes, como o esporte e alimentação não eram atendidos.

Precisamos tratar a educação como algo abrangente, levando em conta que temos uma população com um nível de pobreza significativo. Muita gente se alimenta bem na escola, é a escola que tem a condição de alimentá-la bem, o que tem a ver não só com calorias, mas ter uma alimentação balanceada e de qualidade. Não adianta substituir comida por bolacha ou dar miojo, isso está fora de questão em um projeto de educação. Então, entendo que a escola em tempo integral é um passo para ter uma educação integral, que não é a mesma coisa. Tempo integral é uma questão de duração e educação integral significa a presença de todos os elementos que compõem a educação.

Janine Ribeiro: "A escola em tempo integral tira as crianças da rua, onde estão sujeitas a muitos riscos, à violência, atropelamento, uso de drogas e abuso sexual". Foto Nelson Almeida/AFP
Janine Ribeiro: “A escola em tempo integral tira as crianças da rua, onde estão sujeitas a muitos riscos, à violência, atropelamento, uso de drogas e abuso sexual”. Foto Nelson Almeida/AFP

#Colabora – Como o senhor disse, a discussão sobre ensino em tempo integral não é nova no Brasil. Já tivemos os CIEPs e os CIACs, o que o Projeto Escola em Tempo Integral,  que  tramita no Senado, tem de novo?

Renato Janine – A grande novidade do projeto é que voltamos a ter um governo comprometido com a educação. Ao contrário do governo anterior, que tinha horror à pauta da educação e claramente deixou de dar prioridade ao tema, indicando para o Ministério da Educação (MEC) pessoas que não tinham capacidade para gerir um setor tão nevrálgico e decisivo para o futuro das nossas crianças e adolescentes. Na verdade, acho que uma coisa até mais grave, o governo anterior tinha uma pauta contra a educação. Isso ficou muito claro em um discurso do então candidato Bolsonaro, logo antes da eleição de 2018, quando ele disse querer recuar 50 anos no Brasil em matéria de segurança e costumes. E por que os costumes têm a ver com educação? Porque o problema para o agora ex-presidente, eram justamente as pautas de liberdade que foram crescendo nas últimas décadas, liberdade de gênero, racial e de orientação sexual. Importante lembrar que uma vez ele disse que nenhum filho dele se casaria com uma negra, respondendo uma pergunta de Preta Gil, porque eles foram bem educados, disse Bolsonaro. Esse elemento dos preconceitos, ele atribui àquele que era o “demônio”, Paulo Freire. E não é casual que para a extrema-direita Paulo Freire fosse uma ameaça, porque a educação para Paulo Freire era algo que promove a liberdade e o senso crítico das pessoas. O governo passado não queria isso, por isso, um governo que volte a estar comprometido com a educação, sinaliza positivamente para nós. Não é só a soma de verbas, é uma questão de voltar a priorizar a educação.

#Colabora – O Brasil tem realmente condições de ter um ensino 50% ou até 100% de ensino integral nas escolas? Qual a importância dessa filosofia?

A sociedade brasileira foi constituída ao longo dos séculos para ser desigual e injusta. Desigualdade e injustiça não são simples restos que vão passar com o tempo, são coisas que estão no projeto de Brasil, que infelizmente ainda estão em vigor, apesar de tentativas, sobretudo nos governos Lula e Dilma de reverter esse processo

Renato Janine Ribeiro
Professor, presidente da SBPC e ex-ministro da Educação

Renato Janine – O Brasil precisa fazer isso. Se ele tem condições? Terá se criar as condições, mas precisa fazer. O Brasil não pode ficar atrasado em relação ao resto do mundo, porque não prioriza a educação. Creio que está no momento de deixar claro que investimentos na educação são os investimentos mais rentáveis que existem, porque, quando você educa uma pessoa, está apostando nela a vida toda. Há pessoas que discutem se você deve pagar pela educação que você recebeu e existem propostas, até de gente bem-intencionada, de que você pague pela educação com trabalho. As pessoas pagariam pela educação trabalhando tantos anos em uma região mais pobre ou algo do gênero. Eu não acho que a questão seja a pessoa pagar, como se fosse um financiamento. A questão é a pessoa ter para a vida toda uma orientação positiva no trabalho dela e, se ela fizer tudo nessa direção, vai render muito mais ao Brasil.

#Colabora – Na sua opinião, o ensino em tempo integral é a principal prioridade para a educação no Brasil ou existem outras ações que deveriam vir na frente?

Renato Janine – É muito difícil dizer quando se tem uma área com tantas necessidades imediatas. Uma vez Mário Sérgio Cortella me contou que quando foi secretário de educação da prefeita Luíza Erundina, chegou para ela e disse: prefeita, as minhas prioridades na educação são… e antes dele dizer, ela respondeu: prioridade não tem plural. Quer dizer, a rigor, quando se fala em prioridade é preciso escalonar em primeira, segunda, terceira… Eu não saberia dizer qual é a ordem (na educação brasileira), mas certamente a escola em tempo integral é uma delas, por várias razões: ela tira as crianças da rua, onde estão sujeitas a muitos riscos, à violência, atropelamento, uso de drogas e abuso sexual. Ela coloca essa criança em um ambiente acolhedor, esse é o ponto que torna a educação integral uma das grandes prioridades nacionais. Há pessoas que vão dizer que a formação dos professores precisa ser aprimorada e essa seria outra grande prioridade. É muito difícil escalonar, mas a escola em tempo integral é uma das prioridades.

#Colabora – Quais outros projetos deveriam ser estimulados pelo governo para melhorar os indicadores da educação brasileira?

Renato Janine – Penso que a nossa prioridade absoluta deveria ser a alfabetização na idade certa, ou seja, garantir que a criança até o final do segundo ou, no máximo, terceiro ano do fundamental, até os sete ou oito anos completados, que as crianças saibam ler, escrever e fazer as operações aritméticas. Esse é um ponto que está definido no Plano Nacional da Educação de 2014 e que foi alterado seguidas vezes ao longo desses anos, mas que ainda não está realizado. É muito grave quando a criança não se alfabetiza no tempo certo, pois depois disso, o professor vai supor que ela já está alfabetizada e, portanto, não vai mais se dedicar a alfabetizar o aluno. Então, corremos o grande risco de as pessoas ficarem para trás pela vida toda. O lado positivo é que a secretária executiva do MEC, Izolda Cela, foi quem implantou esse programa de alfabetização na idade certa no Ceará em 2007, programa que depois foi nacionalizado, em 2013, mas que teve mais sucesso no Ceará, que no Brasil como um todo. Então eu diria, se fosse dizer qual a principal iniciativa na educação básica, seria essa. E diria que de todos os níveis: infantil, básico, ensino superior, pós-graduação, o que é prioritário é a educação básica, porque é aí que produzimos a desigualdade.

Se fosse colocar prioridades, eu listaria três: a alfabetização na idade certa, a educação em tempo integral e a formação de professores

Renato Janine Ribeiro
Professor, presidente da SBPC e ex-ministro da Educação

A desigualdade não é um dado, ela é produzida. A sociedade brasileira foi constituída ao longo dos séculos para ser desigual e injusta. Desigualdade e injustiça não são simples restos que vão passar com o tempo, são coisas que estão no projeto de Brasil, que infelizmente ainda estão em vigor, apesar de tentativas, sobretudo nos governos Lula e Dilma de reverter esse processo. Nós temos que ser capazes de substituir esse processo excludente, por um projeto justo e inclusivo. Nesse ponto, a alfabetização na idade certa é crucial e a educação em tempo integral também é muito importante, sobretudo, porque em relação aos mais pobres, garante um acolhimento na escola, se tudo for bem conduzido, que é positivo. Eu falei de alimentação, esporte, de dar às crianças condições de terem um nível de vida melhor, uma formação mais capacitada. Hoje, quando os pais têm mais dinheiro, matriculam as crianças em cursos extras, levam para fazer judô, música, inglês. A educação integral e a educação em tempo integral, apesar das diferenças, permitem que isso seja oferecido a todo mundo, que todas as crianças tenham acesso à educação artística, prática de esportes, acesso a línguas estrangeiras, informática, além da formação básica, que também tem de melhorar de nível.

Se fosse colocar prioridades, eu listaria três: a alfabetização na idade certa, a educação em tempo integral e a formação de professores. Temos que ter professores que deem conta de tudo isso. Temos um problema muito sério, por exemplo, com um professor de química, porque é uma formação muito específica. Então quem se forma em química encontra perspectivas de mercado de trabalho melhores que o professorado. Temos que garantir que os talentos bons em ciências se sintam motivados a dar aula na escola pública.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Escreve sobre temas ligados a questões ambientais e sociais, educação e acessibilidade.

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