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Esperança e ceticismo na Rua da Carioca

Há mais lojas fechadas do que abertas na antiga Rua do Egito mas olhar otimista pode ver bons sinais na coincidência da leitura de livro de Alberto Mussa e projeto cervejeiro da prefeitura

ODS 11 • Publicada em 3 de outubro de 2023 - 08:02 • Atualizada em 5 de outubro de 2023 - 09:06

Como o Rio de Janeiro cresceu a partir da fortaleza estabelecida pelos colonizadores portugueses no alto do Morro do Castelo (arrasado um século atrás), a história da cidade tem suas raízes no seu Centro, onde estão os marcos principais destes 458 anos passados desde a fundação. Este histórico Centro exerce um fascínio sobre os cariocas mais apegados à sua cidade: aproveito qualquer pretexto para passar lá, circular por lugares antigos, aproveitar o comércio de rua, ser surpreendido pela restauração de um bem tombado.

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Meu caminho pelo Centro começa, em geral, pelo Largo da Carioca, estação de desembarque do metrô, ponto de fácil deslocamento para toda parte e ainda ao lado dos trilhos do VLT. Na chegada, tenho a tentação, quase sempre irresistível, de dar um passada na Rua Carioca. Houve um tempo que o pretexto era o chope do Bar Luiz, hoje tragicamente fechado; mas, desde que voltei da Bahia em 2016, é uma mistura de curiosidade mórbida de acompanhar a decadência da via, onde multiplicaram-se o fechamento de estabelecimentos tradicionais, com a esperança de identificar sinais de recuperação e de vitalidade.

Quinze dias atrás, quando estive no Centro, meu destino inicial era um ponto da Rua do Ouvidor entre Uruguaiana e Rio Branco. Mas, sem pressa, dei uma flanada básica pela Carioca: cruzei a rua inteira até a Praça Tiradentes e voltei pela Sete de Setembro, embrenhando-me pelas ruelas só para pedestres até chegar onde precisava.

Fieira de lojas fechadas na tradicional Rua da Carioca: ceticismo e esperança com novo projeto municipal (Foto: Oscar Valporto)
Fieira de lojas fechadas na tradicional Rua da Carioca: ceticismo e esperança com novo projeto municipal (Foto: Oscar Valporto)

A passagem pela Carioca não me trouxe novidades: parei no Café do Bom, Cachaça da Boa, verifiquei que o Cine Íris (de 1.909) continua funcionando; chequei a programação da Casa do Choro, centro cultural dedicado ao ritmo com espetáculos de boa música em sobrado também do começo do século passado. Resistem também meia-dúzia de lojas de instrumentos musicais, tradição também centenária, mas a fileira de espaços comerciais fechados sempre aumenta: agora são pelo menos 30. Cheguei à praça, com doses extras de ceticismo e conformismo no lugar de curiosidade e esperança.

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Depois de resolver o que havia me levado ao Centro, desci a Rua do Ouvidor, na direção do mar, com dois destinos para elevar minha alma carioca: almoçar na Toca do Baiacu e comprar livros na Folha Seca. Foi na mais carioca das livrarias que comecei a receber sinais de que meu estado de espírito podia mudar ao comprar os dois livros que me faltavam do Compêndio Mítico do Rio de Janeiro, série de cinco romances policiais de Alberto Mussa – ambientado cada um em um século da história da cidade. E descobrir, logo na orelha, que o crime da trama de A Biblioteca Elementar, o livro do século XVIII, é cometido na hoje Rua da Carioca.

Não foi só: folheando o livro, enquanto ataco a dobradinha da Toca na boa companhia de uma cerveja gelada, percebo que a então Rua do Egito – a trama se desenrola em 1733 e a via só vai ser batizada como Carioca em 1848 – é parte fundamental e indispensável do romance; ali moram todas as suas personagens: casais ciganos e mulheres indígenas, famílias portuguesas e brasileiras. É personagem, inclusive, Custódio Homem, o Piolho, dono de várias casas em 1733: entre Egito e Carioca, a via, por anos, chamou-se Rua do Piolho.

Uma dose de otimismo no Café do Bom Cachaça da Boa, na Rua da Carioca: resistência em meio à decadência (Foto: Oscar Valporto)
Uma dose de otimismo no Café do Bom Cachaça da Boa, na Rua da Carioca: resistência em meio à decadência (Foto: Oscar Valporto)

Bons livros são assim: alguns tendem a ser devorados, quando atraem magneticamente o leitor ao seu desfecho; outros devem ser saboreados quando o percurso da leitura é mais importante que o destino final. Estão, no segundo caso, os livros do compêndio de Mussa – que recomendo com veemência, particularmente aos apaixonados pelo Rio de Janeiro e sua história. No caso de A Biblioteca Elementar, a alma carioca tende ainda deixar a imaginação fluir pelo Convento de Santo Antônio (já existente), o Campo dos Ciganos (hoje Praça Tiradentes), a Rua da Vala (futura Uruguaiana) com sua ponte, e a Rua do Egito.

Por essas razões, ainda não havia concluído a leitura quando, poucos dias depois, a Prefeitura do Rio de Janeiro lançou um projeto para transformar a Carioca na Rua do Cerveja, uma área repleta de fábricas artesanais e também bares com fabricação caseira da bebida. Resumidamente, pelo projeto, a prefeitura vai apoiar financeiramente os projetos para ocupação dos imóveis da Carioca por essas cervejarias e bares, ajudando a cobrir gastos com reformas dos espaços e custos mensais.

Ideias para conter a decadência da rua e revitalizar seu comércio não faltaram nos últimos 15 anos, mas nada avançou. Não é à toa que, na Carioca, o projeto foi recebido mais com ceticismo do que com esperança. Mas eu – que sou de poucas, muito poucas, crenças – acredito em sinais; ainda mais depois da leitura deste livro de Alberto Mussa que, como os outros do compêndio, está encharcado de mitologia. E sigo minha natureza otimista para ficar, por hoje, com mais esperança do que ceticismo sobre o futuro da Rua da Carioca.

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