ODS 1
#RioéRua: tremoços e outras antiguidades na Rua do Senado
Encontro com uma tradição da baixa gastronomia após flanar entre casarios centenários do antigo Centro
Primeiro sábado do mês – o de junho vem aí – é dia de movimento no Centro: Feira Rio Antigo na Rua do Lavradio, Tiradentes Cultural, e gastronômico, na praça, e os antiquários ocupando calçada e asfalto com suas peças na Rua do Senado. Sempre um bom dia para flanar por ali: é possível mergulhar na muvuca das barracas da feirinha na Lavradio, onde tem um pouco de tudo, ou fazer uma viagem no tempo pelo casario da Rua do Senado, com direito a ouvir o samba na roda do grupo Marias do Zé, nas tardes do Armazém do Senado, na esquina da Gomes Freire.
A Rua do Senado, hoje, começa perto da Catedral Presbiteriana, e termina na Rua do Riachuelo. Quando foi aberta no fim do século XVIII, entretanto, a via ligava apenas a rua Espírito Santo (hoje Pedro I) à Rua dos Inválidos, terminando no Morro Pedro Dias, chamado a partir de então de Morro do Senado. O batismo da rua, e do acidente geográfico, tem mas de uma explicação mas todas relacionadas ao Senado da Câmara – uma espécie de câmara de vereadores não eleita, formada por funcionários burocratas na então colônia portuguesa para ajudar na administração da cidade. O vice-rei do Brasil, na ocasião, era o Conde de Resende que batizou a paralela Rua do Resende, aberta na mesma época.
O Morro do Senado teve o mesmo destino do Morro do Castelo e de outros da cidade: veio abaixo. Seu pico, com 50 metros de altura, estava onde fica hoje a Praça da Cruz Vermelha. A conclusão do desmonte e a começo da urbanização da praça vieram na administração Pereira Passos, na primeira década do século XX, mas o morro começou a ser demolido aos poucos a partir de 1880 – inclusive para a ampliação da Rua Senado para além igrejinha de Santo Antonio dos Pobres, na esquina da Rua dos Inválidos, erguida no começo do século XIX.
É variado o cenário visto em um caminhada pela Rua do Senado dois séculos depois. A via abriga quantidade impressionante de pequenos hotéis (Cruz de Ouro, Paraguai, Midway, Fênix, Senado Rio Hotel), alguns com jeito de motel, no trecho entre a Riachuelo e a Vinte de Abril (na altura da Praça da República. Mas, por toda parte, há um casario centenário a julgar pelas datas inscritas nos sobrados: 1918, 1921, 1922. O prédio da Associação dos Constructores Civis – ainda hoje sede do Sindicato da Construção do Rio – é de 1919; o da Granado Pharmácias (Laboratório Pharmacêutico) é de 1912; a do antigo Centro de Previdência, hoje loja da Bonsom também tem quase 100 anos.
São muitos os sobrados fechados, uns tantos abandonados. A Igreja de Santo Antonio dos Pobres continua ali, na esquina de Inválidos, mas não é a mesma de 1807: passou por várias reformas ao longo dos séculos e hoje está com o estilo neorromântico da reforma feita na metade do século passado (em frente à igreja, foi erguido um prédio comercial de 20 andares, que deveria ter sido proibido pelo patrimônio histórico). Convivem, na Rua do Senado também, de barbearias moderninhas a lojas de ferragens, passando por alguns pontos de comércio de antiguidades que já foram a grande marca da região e ainda atraem clientes de outros bairros. São esses comerciantes que botam suas peças na rua no primeira sábado do mês – no trecho entre Lavradio e Gomes Freire – e movimentam mais o dia.
Após essa flanada pelo passado, chega-se, com a exata medida de fome e sede, ao Armazém do Senado, estabelecido na esquina com a Gomes Freire, desde 1907. Está com a mesma cara de sempre: um pé direito que deve ter mais de quatro metros de altura, vassouras penduradas no teto para lembrar dos tempos quando era mesmo armazém, e ainda detergentes, sabão em pó, farinha de trigo, óleo, azeite nas enormes prateleiras.
A alma, entretanto, é de botequim e o elenco de cachaças não deixa dúvida: 51, Ypióca, Caninha da Roça, Velho Barreiro, Praianinha, Fogo Paulista, Pitú e as mineiras Salinas, Seleta e Magnífica. Também tem Campari, rum Bacardi, Steinhaeger Becosa, vodka Orloff e conhaque Domeq, todas biritas obrigatórias de botecos do século passado, além de batidas – gengibre, banana – para a freguesia. No balcão de mármore e nas mesas de madeira, a ocupação maior ainda é pelas cervejas – a oferta vai das históricas Brahma e Antártica, ambas com mais de 130 anos, até jovens e artesanais como a Colorado. O cardápio dos petiscos também é básico: queijos, azeitonas, salames e – o ponto alto da visita – tremoços, Das coisas que mais sinto falta dos meus primeiros botequins, uma boa porção de tremoços para acompanhar a cerveja está no topo da lista. Não sei porque este legítimo petisco português – que até age, garantem, contra o colesterol ruim – foi desaparecendo dos balcões., Mas é reconfortante saber que ainda há botecos cultivando as melhores tradições da baixa gastronomia.
#RioéRua
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Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade