ODS 1
Maestro José Vieira Filho: aos 93 anos, um artesão da música e da alma
Músico do Exército por 27 anos, pernambucano tornou-se referência em manutenção de instrumentos e ministra aulas gratuitas pelo país
José Vieira Filho, ou Maestro Vieira, com 93 anos, não apenas cura a alma com a música, mas também dedica sua vida ao conserto de instrumentos de sopro. Com décadas de experiência, ele se tornou uma referência nacional na manutenção dessas peças. A arte é sua terapia, especialmente agora, após a recente perda de sua esposa, com quem foi casado por 67 anos.
Enquanto ensina a “medicina preventiva” para assegurar a saúde dos instrumentos, o pernambucano de Bebedouro se reinventa constantemente. Ele prova que, tanto para músicos quanto para seus instrumentos, a arte é o melhor remédio. “Lamúria gera lamúria. A maior terapia do mundo é a música. Quem lida com arte vive muito mais, é mais tranquilo e não tem ganância. Isso é o principal”, ele ensina.
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Vieira diz viver da arte ainda na barriga da mãe: o pai era músico autodidata (tocava todos os instrumentos de bocal, metal e palhetas), mestre da banda da cidade. Os três irmãos tornaram-se músicos, assim como o sobrinho, o maestro Mozart Vieira, criador do Coral e Banda dos Meninos de São Caetano, com história retratada em filme. “No susto do bombo minha mãe me pariu”, brinca.
Aos 10 anos, assistiu pela primeira vez à banda comandada pelo pai e quis aprender saxofone soprano. Não só isso. Interessou-se por estudar toda a anatomia do instrumento. Aos 12, com uma chavinha de fenda improvisada e uma toalha para forrar mesa, montou um sax em meia hora. “Lá atrás não existia uma pessoa para cuidar do instrumento. E é algo que os músicos vão precisar para sempre. Para isso, a tecnologia não vai adiantar. É uma medicina preventiva”, ensina o maestro.
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Veja o que já enviamosMas, já naquela época, viver de arte não pagava todas as contas – e antes mesmo da chegada da adolescência começou a trabalhar como ajudante de carpinteiro e pintor, função essa que não deu muito certo. “Eu não podia trabalhar em altura, tinha medo; aí só pintava rodapé”, ele ri.
Habilidoso com as mãos, se encontrou na alfaiataria, e chegou ao Rio de Janeiro em 1953 com a ideia de crescer na área e ao mesmo tempo se aperfeiçoar na música. Em poucos meses começou a trabalhar em quase todas as orquestras de baile da cidade, estações de rádio, televisão e gravadoras. Entrou no Exército em 1956, onde atuaria como músico – tocando saxofone e clarinete – por 27 anos; chegou a mestre da banda.
“Vitalidade que impressiona”
Em 1967, montou com o produtor Maneco Valença a Banda do Canecão, somente para tocar no dia da inauguração da então cervejaria, em Botafogo, na zona sul do Rio. Mas a banda fez tanto sucesso que começou a se apresentar Brasil afora, e somente em dois dos seis anos de existência lançou 18 discos. O maestro tocava saxofone e era líder da banda.
Mas era fora do palco que Vieira se emocionava com esse sucesso todo. “Fizemos um show em Porto Alegre e vi uma moça linda, sentada, paraplégica, e o sonho dela era ver de perto a banda do Canecão. Levei meu pessoal na casa dela, e não tinha nem cadeira para sentar. Era muito pobre. Então fizemos um almoço para ela e seu pai. Essas coisas me sensibilizaram.”
Márcio Guimarães Vieira tinha 2 anos quando o pai entrou para a banda. Diz que, desde quando começou a entender o que acontecia no mundo, o via trabalhando com música. “Ele chegava do quartel, se arrumava e ia para o Canecão trabalhar. Tinha uma jornada de 20 horas por dia, e em alguns fins de semana ainda tirava o serviço no quartel”, lembra o caçula do maestro Vieira, que tem ainda duas filhas.
“É uma vitalidade que impressiona, e tem hora que eu falo para ele ir com calma. A geriatra falou isso para ele há alguns dias, que é importante manter um nível de atividade, mas dosado. Ele acabou de fazer um implante de marcapasso”, complementa Márcio, que tem levado o pai a igreja e a viagens por onde o maestro tem amigos, como Miguel Pereira, na Região Serrana do Rio. Ainda avisou que vai voltar a levá-lo à academia.
Dos palcos para as salas de aula
Em 1983, um ano após ir para a reserva, Vieira foi convidado pela professora e pianista Salomea Gandelman para ministrar o curso de manutenção e reparo em instrumentos musicais de sopro no Centro de Letras e Artes da UniRio. A notícia se espalhou, e a Funarte também o convidou para dar a mesma aula, por meio do Projeto Bandas de Música, com a UFRJ. E de graça. Já são mais de 30 anos de parceria.
A primeira aula deste ano aconteceu no último 30 de agosto, no hall de entrada da Escola de Música da UFRJ, no Centro do Rio. Havia um total de 13 alunos, apesar das 40 inscrições. Foi Vieira quem sugeriu ter 15 pessoas, no máximo. “Melhor assim, porque posso dar mais atenção”, observa ele, que não parava nem enquanto conversava com a reportagem. “Pode ir falando que vou dando atenção para os alunos. Mas tudo sobre mim você vai encontrar no meu livro [Mestre José Vieira Filho – O concertista consertador]”.
Além das aulas para duas turmas que estão andamento, o maestro Vieira também ministrará o Curso de Reparo e Manutenção para Instrumentos de Sopro que será oferecido durante o IV Simpósio de Bandas Funarte-UFRJ, em novembro. As inscrições serão abertas em outubro no site do Programa Arte de Toda Gente, parceria de Funarte e UFRJ.
Questionado de onde tira tamanha energia, a resposta veio certeira: “Eu gosto de fazer isso, dar aulas, porque, na realidade, é uma necessidade. A [poeta] Cora Coralina falava que toda vez que era chamada para ensinar ela ia porque também aprendia. Esse sou eu.”
Coordenador geral do programa, o professor de regência Marcelo Jardim, 53 anos, assegura que o amigo tem a mesma vitalidade há 30 anos, e que segue impressionando pelo grau de delicadeza. “Ele é a grande figura da sustentabilidade, porque o Vieira desenvolveu uma técnica em que ele dá uma volta no quarteirão, pega um equipamento simples como alicate para consertar o instrumento musical e evita que ele vá para o lixo. Eu falo que ele é um MacGyver, é quase uma instituição, porque ele é responsável por muitas bandas continuarem funcionando no interior do Brasil”, afirma o professor, comparando o maestro com o personagem de uma série americana de aventura dos anos 1980, que criava artefatos complexos a partir de objetos comuns.
Foi Jardim quem fez a revisão técnica do Manual de Reparo e Manutenção de Instrumentos Musicais de Sopro, livro que Vieira escreveu em 1991, junto à Funarte. A obra chegou a Portugal, onde o maestro também ministrou aulas. Diz que a obra é das mais utilizadas por bandas. Ela já está na terceira edição.
“Sou muito lembrado, né? Me julgam o mago dos instrumentos. Acredito que não tem ninguém pensando mal de mim. São esses elogios que fazem a gente crescer”, orgulha-se Vieira, antes de finalizar: “Quero continuar fazendo o que eu faço porque estou atingindo muita gente. E tem muita coisa boa para fazer.”
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Jornalista e pesquisadora do Rio de Janeiro. Tem experiência na cobertura sobre Direitos Humanos, diversidade e gênero. Também produtora e roteirista de campanhas e minidocumentários com essas temáticas. Contribuiu com veículos como Folha de S. Paulo, Extra, O Globo, GloboNews e UOL.
Que maravilhosa e efusiva alegria senti ao ver essa reportagem sobre o professor Vieira aos 93 anos, ainda em atividade.
Fui seu aluno na UniRio nos idos dos anos 88-91 quando eu era da Banda de Música da Brigada de Infantaria Paraquedista, na Vila Militar, Rio de Janeiro, e com ele aprendi sobre a importância da manutenção efetiva e prática dos instrumentos musicais de bandas que passariam a ter dezenas de anos funcionando a contento, leia-se sustentabilidade. Com esse conhecimento adquirido com o Mestre Vieira, montei oficinas nas bandas por onde passei como Mestre e Regente de Música, a saber: Banda Paraquedista no Rio de Janeiro; Banda do 2⁰ Batalhão de Fronteira, em Cáceres-MT; Banda do 11⁰ Batalhão de Infantaria de Montanha em São João del-Rei-MG e sendo transferido para o QGEx em Brasília, na SGEx/ CDocEx/Seção de Musicologia, onde fui Chefe dessa Seção, passei a dar aulas sobre o que aprendi com o Mestre Vieira a músicos voluntários das bandas do Exército no DF, e estes montariam oficinas locais em suas Unidades, a exemplo, na época, na PE. Esse projeto criado em parceria com DLog/SGEx-CDocEx-SecMusicologia me levou a muitas Regiões Militares no Brasil para ministrar a músicos voluntários de suas respectivas bandas militares locais e a maioria montou oficinas para apoiar as respectivas bandas de suas Unidades.
Meus parabéns pela excelente reportagem sobre o
magnífico trabalho desse ícone músico-profissional conhecido como Mestre Vieira, meu eterno professor. Muito obrigado Mestre Vieira. Feliz daquele que transmite o que sabe e aprende com o que ensina. (Cora Coralina)
Belíssimo documentário, parece um filme, eu tinha 13 anos e fiz o curso de manutenção de instrumentos de sopro com o Maestro dos instrumentos “Vieira” na cidade de Belo Jardim Pe. Luiza Souto Parabéns