ODS 1
Mulheres Coralinas: a poética do empoderamento feminino no Cerrado
Projeto inspirado na obra e na trajetória de Cora Coralina e em outras autoras invisibilizadas impulsiona empreendedorismo e autonomia de mulheres na Cidade de Goiás
Com poesia também se faz uma revolução na emancipação feminina. Partindo dessa ideia visionária, um grupo de mulheres se mobilizou para a criação do Projeto Mulheres Coralinas e continua firme na condução dessa iniciativa, na Cidade de Goiás. Além de Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade, há duas décadas, essa é a terra natal da poetisa Cora Coralina, cuja obra e trajetória de resiliência e pioneirismo têm inspirado essa articulação em rede com enfoque em capacitação profissional, estímulo ao empreendedorismo, autonomia financeira e empoderamento.
Nos últimos sete anos, cerca de 500 mulheres da cidade já passaram pelos cursos promovidos pelo projeto que deu origem à Associação Mulheres Coralinas (As Coralinas), formada e fortalecida nesse processo de organização feminina. O bordado inspirado na poesia de Cora Coralina é considerado a mola propulsora da produção artesanal. Mas essa iniciativa também envolve outras frentes de capacitação como arte em cerâmica, gastronomia e confecção de bonecas. A instituição ainda promove atividades culturais incluindo palestras, recitais e outros eventos que estão fazendo a diferença não somente na vida das mulheres participantes, mas também nas de suas famílias. Vejam o exemplo envolvendo mãe e filha que apresentamos nesta reportagem.
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Veja o que já enviamosA casa onde funciona a sede do projeto começou a ser erguida em 2019. Lá, os espaços de convivência são atravessados por uma poética visível tanto nos tecidos bordados como sentida no mobiliário, nas peças decorativas, nos utensílios da cozinha ou no entorno da construção sombreada por árvores nativas do Cerrado. Esses ambientes acolhedores possibilitam a realização de cursos, oficinas e outras atividades voltadas à capacitação de mulheres em situação de vulnerabilidade social, com objetivo de gerar renda e autonomia financeira pelas perspectivas da economia solidária e da igualdade de gênero. Valores indissociáveis do respeito à dignidade humana, como liberdade, fraternidade e cooperação estão nos pilares dessas experiências desde as primeiras sementes plantadas.
Cozinha-escola inspiradora
“A cozinha é o espaço mais utilizado da casa”, relata Dinaira Francisco, secretária da Associação As Coralinas. Ela destaca que a construção vem sendo finalizada aos poucos, à medida que os recursos financeiros de editais e parcerias vão sendo assegurados. Um dos sonhos para o futuro é montar um café na área externa da casa, onde esse espaço se conectaria à cozinha-escola. A realização de cursos de capacitação por lá tem sido frequente e conta com parceiros locais importantes como o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG), a Universidade Estadual de Goiás (UEG) e o Ministério Público do Trabalho, dentre outras instituições.
Na aconchegante cozinha da casa, a reportagem do #Colabora acompanhou uma das atividades de capacitação com enfoque em gastronomia. Na ocasião, o professor Alcyr Viana, do IFG, realizou uma oficina de Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs), ensinando, na prática, como preparar alguns tipos de massas enriquecidas com espécies nativas do Cerrado. “Precisamos resgatar os sabores regionais”, reiterou o professor para as alunas, entre as demonstrações de como triturar, coar, misturar, refogar e rechear as massas usando espécies de PANCs do Cerrado.
Ele usou as plantas pimenta-de-macaco, rabo-de macaco e banha-de-galinha, dentre outras, além de frutas tradicionais da diversidade goiana como pequi e cagaita que trouxeram cores e sabores realmente diferenciados aos pratos preparados e degustados por todos os participantes durante o evento promovido na casa como parte da programação cultural da última edição do tradicional Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica), realizado entre 13 e 17 de junho na Cidade de Goiás.
Ofício com identidade cultural
“Desde o início, pensamos em um ofício para as mulheres. E, como o bordado da cidade de Goiás não tinha uma identidade própria, começamos a pensar em apresentar Cora Coralina, com intuito de agregar valor ao trabalho delas. Assim, Cora foi o eixo inspiracional desse projeto”, afirma Dinaira Francisco, uma das fundadoras da Associação. Para ela, a poetisa sempre representou uma grande referência por ter sido discriminada durante a sua trajetória e por não ter desistido de provar o seu valor como mulher criativa e intelectual invisibilizada por tantos preconceitos arraigados naquele pedaço de Brasil rural.
Dinaira faz questão de enfatizar que Cora Coralina lançou luzes sobre aspectos da cultura local que não tinham sido valorizados antes da sua obra ganhar visibilidade, já na maturidade. Nessa direção, ela recorda a importância de poemas revolucionários como “Mulheres da Vida” que ao destacar a realidade das prostitutas “homenageia todas as mulheres que já foram discriminadas de alguma forma”.
Ao ler os poemas de Cora com as mulheres, Dinaira recorda que elas foram percebendo que a sua identidade tinha valor. “E a gente diz pra elas que não precisam ir embora para ganhar dinheiro. Podem ganhar aqui ajudando a fortalecer a nossa cultura”, observa.
Nascida na Cidade de Goiás, no final do século 19, Cora Coralinha só publicou seu primeiro livro – “O Poema dos Becos de Goiás e Estórias Mais” (Editora José Olympio) – em 1965, aos 76 anos depois de datilografar sua produção em uma máquina que ganhou de presente. Cora Coralina também ganhou fama como uma doceira que tinha como diferencial recitar os poemas que escrevia desde os 14 anos, enquanto vendia seus doces de frutas glaçadas, uma tradição que contribuiu para fortalecer na Cidade de Goiás, muito apreciada por moradores e turistas. A poetisa morreu em 1985, dando origem a um movimento de amigos e parentes para a criação da Casa de Cora Coralina, entidade que até hoje administra um Museu de mesmo nome para manter o seu legado literário.
Na Associação As Coralinas, as discussões recorrentes na casa sobre formas de associativismo, cooperativismo, leis de proteção às mulheres, dentre outros temas de interesse, geraram acesso à informação de várias formas. Segundo a secretária, das 150 mulheres que ingressaram nos dois primeiros anos do projeto, a metade aceitou entrar como associada em As Coralinas. Ao ser indagada se os esforços valeram a pena, Dinaira responde com firmeza e um sorriso entusiasmado: “A gente faz o trabalho que as nossas filhas terão mais facilidade de dar continuidade”.
“Elas já compreenderam que o direito à literatura é um direito que pertence a elas”, analisa Ebe Maria Lima Siqueira, professora da UEG, na área de Literatura Brasileira e também entre as idealizadoras e líderes do projeto. Ela já foi presidente da associação duas vezes, além de ser assídua participante das iniciativas em curso e dos planos de avanços futuros.
Apaixonada pela profissão que abraçou e também pela missão de fortalecimento e empoderamento feminino com intuito de gerar igualdade de direitos, ela conta que já apresentou outras poetisas e escritoras brasileiras às mulheres que frequentam as atividades realizadas na casa, juntamente com as demais líderes dessa iniciativa. Além de Cora Coralina, nomes de autoras de grande importância que também foram invisibilizadas historicamente como Leodegária de Jesus, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo são outras principais referências e inspirações.
A professora Elizete Maria de Lima, outra precursora do projeto, destaca a importância de estimular o sentimento de pertencimento das mulheres do Cerrado de Goiás por meio das atividades desenvolvidas nas ações de capacitação. “Entendemos a possibilidade de gerar fontes de subsistência com afetividade e conhecimento da terra. Isso é falar a linguagem do nosso bioma”, opina.
Ela reforça que nas atividades desenvolvidas são sempre reiteradas mensagens de estímulo e valorização das mulheres participantes, a partir dos seus modos de vida atravessados por saberes e fazeres únicos. “Elas têm um saber extremamente valioso. Uma sabedoria ancestral”, conclui a professora.
Educação e empreendedorismo mudam trajetórias de mãe e filha
Filha de mãe solo que precisou trabalhar como diarista para sustentar dois filhos, Bianka Cristina Dias Alves, professora da rede municipal da Cidade de Goiás, foi a primeira integrante da família a concluir o ensino superior. Depois de se formar em Letras, na Universidade Estadual de Goiás (UEG), ela não parou de expandir horizontes profissionais pela busca de mais conhecimento. Já fez especialização em Educação Inclusiva e Especial, está cursando a segunda licenciatura em Pedagogia e, paralelamente, prestes a concluir uma especialização em Desenvolvimento Regional e Turístico. Futuramente, pretende fazer mestrado em Literatura e Educação.
Inspirada pela trajetória da filha, Beatriz Pereira Dias se encheu de energia para realizar o sonho de ser universitária, há muito tempo esquecido diante da luta pela sobrevivência familiar. Mas antes de entrar no IFG, em 2018, onde deve colar grau em setembro pela graduação em Licenciatura em Artes Visuais, ela teve que voltar à escola para concluir o ensino médio. Os desafios da nova realidade de aprimoramento educacional não pararam por aí. Porém, os resultados trouxeram novas perspectivas profissionais, segundo relata a filha orgulhosa das conquistas da mãe, que a partir de agora quer viver cada vez mais da nova profissão que abraçou.
“Ela foi muito determinada quando precisou se adaptar à nova vida de estudante universitária, principalmente durante a pandemia [da Covid-19], quando as aulas e outras atividades foram realizadas online, por meio de tecnologias de comunicação com as quais ela não tinha afinidade”, conta a jovem ao recordar os percalços enfrentados pela mãe. “Mas agora ela está muito feliz com esse novo momento”, acrescenta com entusiasmo.
O divisor de águas
A semente da virada de página da vida de ambas foi plantada a partir da participação no Projeto Mulheres Coralinas. “Essa proposta foi um impulso fundamental para nós duas. Funcionou como uma escada”, compara a professora Bianka. Depois de trabalhar em uma livraria vizinha à casa que sedia o projeto, a convite de uma das suas líderes, ela recorda que ingressou como associada, em 2018, tendo passado por uma capacitação em bordado, gastronomia, cerâmica e confecção de bonecas, frentes de atuação dessa iniciativa. A partir de então, passou a levar a mãe em palestras, recitais e outros eventos.
O gosto por aquela programação educativa e cultural trouxe forte motivação para ambas e sinalizou com potencialidades para novas descobertas profissionais. Um dos desdobramentos nesse caso foi torná-las empreendedoras. Sob encomenda, passaram a produzir almofadas, quadros e outras peças decorativas com bordados inspirados em paisagens naturais e nas poesias de mulheres emblemáticas da cidade.
Bianka enfatiza a importância de reconexão de ambas com os trabalhos manuais, culturalmente associados à vida das famílias desse município goiano. “Como Goiás é uma cidade reconhecida como Patrimônio Cultural, as pessoas que chegam querem conhecer os artistas locais”, ressalta a professora.
Motivadas pelo aumento da demanda, mãe e filha têm trabalhado em casa, cada uma com suas alternativas de agenda, e comercializado as peças por meio de um ateliê virtual lançado no ano passado. Bianka recorda que a primeira oportunidade de exposição presencial dos trabalhos ocorreu em uma feira montada na cidade durante a última edição do Fica. Nesse espaço, expositores locais de alimentos, bebidas e diversos tipos de produções artesanais puderam atrair a atenção de um público mais amplo. “Tínhamos receio de não vender nada. Mas não só vendemos, como conhecemos pessoas, divulgamos o nosso trabalho e ganhamos mais autoconfiança”, comemora.
Além da poética de Cora Coralina, a professora e empreendedora conta que tem sido fortemente inspirada pela poesia de Leodegária de Jesus, poetisa negra que embora tenha sido a primeira mulher a publicar um livro no estado de Goiás (Coroa de Lyrios, em 1906), viveu invisibilizada por preconceito racial. Bianka se encantou tanto com a produção dela que elaborou o seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) a partir da trajetória pessoal da autora que teve a sua obra desconhecida por muitas décadas.
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Elizabeth Oliveira
Jornalista apaixonada por temas socioambientais. Fez doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED), vinculado ao Instituto de Economia da UFRJ, e mestrado em Ecologia Social pelo Programa EICOS, do Instituto de Psicologia da UFRJ. Foi repórter do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro e colabora com veículos especializados, além de atuar como consultora e pesquisadora.