Saudades do lixão: a crise do Rio contada por catadores

Lixão na Região Metropolitana do Rio: catadores sentem falta da fonte de sustento e reclamam de abandono do poder público (Foto: Casa Fluminense)

Na Região Metropolitana, o fechamento oficial deixou uma legião de trabalhadores sem sua fonte de sustento

Por Casa Fluminense | ODS 6 • Publicada em 21 de setembro de 2022 - 15:26 • Atualizada em 29 de novembro de 2023 - 09:24

Lixão na Região Metropolitana do Rio: catadores sentem falta da fonte de sustento e reclamam de abandono do poder público (Foto: Casa Fluminense)

(Luize Sampaio*) – Proibido desde 2010, os lixões ainda são uma paisagem comum nas periferias da Região Metropolitana do Rio. Entre os mais conhecidos está o Lixão de Gramacho, situado em Duque de Caxias, considerado o maior da América Latina. Mas há também registros de grandes espaços como esse em outros pontos como: Lixão de Itaoca, em São Gonçalo; Lixão do Morro do Céu, Niterói; e na capital no Lixão da Maré e Praça do Lixão no Rio das Pedras.

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Tecnicamente, todos esses espaços estão desativados ou então não são considerados pelo governo como lixões. Porém, na realidade, eles permanecem vivos, e ainda, lotados de catadores e muita pobreza. Para entender como se dá a vida de quem precisa do lixo, conversamos com moradores e catadores que lidam diariamente com esse desamparo.

Apesar de ter sido aprovado em 2010, o Plano Nacional de Resíduos Sólidos, lei n° 12.305, que obrigava o fechamento dos lixões, só foi regulamentado esse ano. Ou seja, só depois de 12 anos, a lei ganhou suas regras e com isso também alterações. Atualmente, apenas seis dos 22 municípios da Região Metropolitana do Rio possuem Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (PMGIRS) conforme a lei do Plano Nacional de Resíduos Sólidos.

Quando foi aprovado, o plano previa a erradicação de aterros irregulares até 2014 mas agora, sua regulamentação esticou o prazo para até 2024. Ainda há hoje cerca de 3 mil lixões em todo o país. Outra resolução do plano dizia sobre a valorização dos catadores. Mas, em todas as partes do Rio, há relatos parecidos de descaso, eles se sentem abandonados pelo poder público.

Maria José, 63 anos, lamenta fechamento do Lixão de Itaoca, em São Gonçalo: "esqueceram de nós" (Foto: Luize Sampaio / Casa Fluminense)
Maria José, 63 anos, lamenta fechamento do Lixão de Itaoca, em São Gonçalo: “esqueceram de nós” (Foto: Luize Sampaio / Casa Fluminense)

Uma vida toda no lixão

Segundo moradores, no dia 17 de julho completaram 10 anos do fechamento do Lixão de Itaoca, localizado próximo ao Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo. O lixão fica a cerca de 10 quilômetros do centro do município, mas parece outra cidade. São aproximadamente 100 pessoas residentes no espaço, com casas improvisadas, sem saneamento, transporte ou apoio da prefeitura. Essa realidade faz com que senhoras como Maria José, de 63 anos, sonhem com a retomada de atividades do espaço.

“Sinto muitas saudades do lixão, minhas crianças foram todas criadas com esse meu trabalho, queria muito que voltasse a funcionar. Era uma festa, passamos dia e noite lá trabalhando, agora não temos mais nada. Esqueceram da gente”, contou a catadora.

Marcinha criou os filhos com a renda do seu trabalho no lixão: catando lixo pela cidade (Foto: Luize Sampaio / Casa Fluminense)
Marcinha criou os filhos com a renda do seu trabalho no lixão: catando lixo pela cidade (Foto: Luize Sampaio / Casa Fluminense)

Márcia Ribeiro, conhecida na região como Marcinha, começou a trabalhar no lixão aos 12 anos. A catadora conheceu seu atual esposo lá e inclusive se casaram no campo ao lado do lixão. Juntos há 21 anos, o casal tem três filhos. Desde o fechamento do lixão a família sobrevive do que consegue recolher as ruas da cidade e do Auxílio Brasil, que terminará em dezembro. Quando existia o Lixão, a família conseguia por semana cerca de 300 reais.

“Foi aqui o meu primeiro e único emprego, trabalhei durante todas as minhas gravidezes. Sem o lixo, o que recebo do governo não dá para o mês todo. Não tenho vergonha de pegar os resto do sacolão, mas mesmo assim ainda é muito difícil. Tem dias que estou em casa no silêncio e acabo chorando” afirmou Marcinha.

Em 2010, seis municípios da Região Metropolitana do Rio tinham coleta seletiva. 10 anos depois, em 2020, esse número chegou a nove. Segundo os dados mais atualizados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), 13 dos 22 municípios da RMRJ ainda não possuem coleta seletiva. No Leste Fluminense, de Itaguaí e São Gonçalo, por mais que existam catadores organizados em Cooperativas ou Associações, as cidades não contam com uma coleta seletiva oficial. Apenas em Mesquita e Niterói existe algum trabalho social por parte da prefeitura direcionado aos catadores. Esse tipo de fortalecimento era uma das exigências listadas no Plano Nacional de Resíduos Sólidos.

Do outro lado da Baía está o catador Vladimir Senna, 42 anos, que já se dedica à reciclagem há 24 anos. Cria do Complexo da Maré, ainda adolescente começou a acompanhar a sua mãe no trabalho, o Lixão de Gramacho. Com o fechamento do espaço, em 2010, ele voltou à sua favela. Na Maré, seu local de trabalho, se parece com muitos outros comuns nas favelas e periferias do estado do Rio. Um espaço que pertence a prefeitura mas que por ausência da gestão virou local de descarte desordenado do lixo de comunidades inteiras.

Essa é a mesma logística encontrada em outras favelas. Em Rio das Pedras existe a chamada Praça do Lixão, um espaço criado pela prefeitura onde no meio deveria ter sido construída uma praça, que nunca saiu do papel. O espaço hoje tem uma movimentação intensa de descarte de lixo. Moradores afirmaram que houve um aumento do número de pessoas trabalhando com reciclagem durante a pandemia, mesmo assim ainda é possível ver muito lixo jogado nas ruas e vielas.

Luiz Bernardo de Lima, 57 anos, mora há mais de 30 anos na comunidade. Ele começou a trabalhar com reciclagem durante a pandemia quando ficou desempregado. Luiz faz plantão em um dos principais pontos de descarte irregular de lixo da comunidade, para conseguir um valor suficiente para a sua sobrevivência e da família, ele chega a virar dois dias direto na busca por material no lixo.

“Tem muito lixo mas para a reciclagem é fraca, tem muita gente catando na favela toda. Tenho que sustentar oito pessoas com esse trabalho, mas devagarzinho a gente vai se virando, dá para comer mas não também para comer bem, né? Minha vida é essa, já me chamaram até de mendigo mas fico quieto quando escuto essas besteiras. Eu sei que se não fosse por a gente isso aqui ia estar uma bagunça”, completou o catador.

Na comunidade, é muito comum ver catadores empurrando carrinhos numerados, isso porque eles alugam esse transporte por uma diária de 40 reais, em um mês, os trabalhadores gastam cerca de 800 reais só com aluguel.

Luiz Bernardo recolhe lixo de aterro irregular e vende para reciclagem (Foto: Luize Sampaio / Casa Fluminense)
Luiz Bernardo recolhe lixo de aterro irregular e vende para reciclagem (Foto: Luize Sampaio / Casa Fluminense)

Isso aqui é um lixão?

Nem sempre é simples identificar se uma área é um lixão, já que muitas favelas, bairros ou cidades sofrem com o descarte irregular e a falta de coleta seletiva.

Professora do Departamento de Engenharia Sanitária da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Elisabeth Ritter explica como o morador pode identificar no seu território se o espaço de despejo irregular pode ser considerado um lixão.

“Um lixão se classifica por ter a disposição do lixo a céu aberto sobre o solo, sem nenhum controle ou cobertura do material, atraindo urubus, ratos, e dependendo das condições locais e do volume de lixo depositado, podem ter lagoas de chorume se formando sem nenhum controle” explicou a professora.

A engenheira sanitarista também apontou que os aterros sanitários são a melhor opção para lidar com o lixo urbano, já que minimizam os problemas da disposição dos resíduos no solo, através de sistema de impermeabilização de base, drenagem e tratamento do chorume.

Aterros sanitários de São Gonçalo, Paracambi, Nova Iguaçu e Itaboraí recebem o lixo de 16 dos 22 municípios da metrópole. Sergio Ricardo, fundador da ONG Baía Viva, explica os efeitos dessa logística.

“Grande cidades, populosas e poderosas, usam parte do seu orçamento para montar uma logística caríssima de levar até outros municípios mais pobres o seu lixo. Elas podiam ter usinas de reciclagem espalhadas em bairros principais, mas preferem usar essas carretas que vão cheias de lixo e voltam fazendo viagens vazias. Quem ganha dinheiro com lixo são essas transportadoras, quem perde é a população pobre ao redor dos espaços de descartes. Isso é uma das marcas da lógica do racismo ambiental”, apresentou Sergio.

Praça do Lixão, na favela de Rio das Pedras, Zona Oeste do Rio: espaço reservado para praça virou ponto de descarte irregular de lixo (Foto: Luize Samapaio / Casa Fluminense)
Praça do Lixão, na favela de Rio das Pedras, Zona Oeste do Rio: espaço reservado para praça virou ponto de descarte irregular de lixo (Foto: Luize Samapaio / Casa Fluminense)

Racismo ambiental: que cheiro é esse?

O chorume é um componente gerado pela matéria orgânica descartada de forma irregular fora de aterros. É um líquido escuro de mal cheiro que pode ser sentido, por exemplo, quando se passa da Avenida Washington Luiz próximo ao Jardim Gramacho.

O acúmulo de matéria orgânica em decomposição de forma irregular além de produzir chorume também cria uma nuvem de fumaça, formada pelo gás poluente metano que é 28 vezes mais poluente do que o gás carbônico (CO2). Um levantamento da organização Baía Viva calculou que o estado do Rio produz cerca de 8 milhões de litros de chorume por dia. Não há hoje dados oficiais disponíveis, por isso, o idealizador da ONG, em uma ação junto ao Ministério Público e às universidades do Rio, foi a campo estimar e quantificar o impacto desse poluente.

“Quanto disso é tratado? tem que perguntar para o Instituto Estadual do Ambiente (INEA) mas vivemos um apagão de dados de saneamento”, denuncia o ativista que alerta sobre os riscos a longo prazo da exposição do solo aos poluentes. “Quando você desativa um lixão, ele ainda fica pelo menos 20 anos emitindo 2 componentes: chorume e metano. Em vários pontos do Rio, é possível ver bairros cobertos de partículas de poluição atmosférica”, concluiu Sergio.

Além da poluição, o chorume também pode interferir na qualidade de água dos moradores ao redor do lixão, caso ele atinja o lençol freático. É comum que em áreas mais pobres, como ao redor dos lixões, por exemplo, a população utilize água do poço para consumo, que pode estar sendo poluída.

*Luize Sampaio, formada em jornalismo pela PUC-Rio, é repórter da Casa Fluminense

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A Casa Fluminense é um espaço permanente para a construção coletiva de políticas e ações públicas por um Rio mais justo, democrático e sustentável. Formada em 2013 por ativistas, pesquisadores e cidadãos identificados com a visão de um Rio mais integrado, acredita que a realização deste horizonte passa pela afirmação de uma agenda pública aberta à participação de todos os fluminenses e destinada universalmente a todo o seu território e população e não apenas - ou prioritariamente - para as áreas centrais da capital.

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