Por Adriana Barsotti | ODS 1 • Publicada em 11 de maio de 2018 - 08:35 • Atualizada em 28 de outubro de 2021 - 21:02

Reportagem: Adriana BarsottiImagens e Vídeos: Yuri FernandesDesign: Raquel Cordeiro

Por Adriana Barsotti | ODS 1 • Publicada em 11 de maio de 2018 - 08:35 • Atualizada em 28 de outubro de 2021 - 21:02

Reportagem: Adriana BarsottiImagens e Vídeos: Yuri FernandesDesign: Raquel Cordeiro

Rio Fortuna

Existe um lugar onde a educação é 100% pública, o transporte escolar é gratuito, a delegacia fecha na hora do almoço, o prefeito é professor de filosofia e quase dá para contar nos dedos o número de famílias dependentes de auxílio social: 12 não têm moradia e 18 recebem cestas básicas. O IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) é 0,806, equivalente ao de Montenegro, das belíssimas paisagens do filme “Casino Royale”, do 007. O número de pessoas extremamente pobres é traço e o de pobres – que recebem até US$ 5,5 por dia – representa apenas 0,37% da população local, estimada em 4.606 habitantes. Ou seja, há apenas 17 habitantes vítimas da pobreza, segundo dados do Atlas do Desenvolvimento Humano. Esse lugar se chama Rio Fortuna e é o primeiro município mais rico em renda familiar e o terceiro em renda per capita de Santa Catarina.

Indicadores da vulnerabilidade social

1
1,13% de crianças de 6 a 14 anos fora da escola

1
0,32% de pessoas de 15 a 24 anos que nem estudam nem trabalham

3
2,94% de mulheres de 10 a 17 anos que tiveram filhos

4
4,4% de mães chefes de família sem fundamental e com filho(s) menor(es), do total de mães chefes de família

0
0,13% de vulneráveis e dependentes de idosos

0
0% de crianças extremamente pobres

3,7% vulneráveis à pobreza

4

99% da população com banheiro e água encanada

97

Leu essa? A capital com o menor número de pobres do país

De acordo com dados do Censo de 2010, última aferição disponível, as famílias de Rio Fortuna viviam, em média, com R$ 5.310,87 mensais e, individualmente, com R$ 1.570,51 no local. Santa Catarina é o estado com o menor número de pobres no país: só 9,4% da população vivem com até US$ 5,5 por dia ou R$ 12,9 (a equivalência da moeda refere-se a 2016), como revelou a pesquisa Síntese dos Indicadores Socias do IBGE 2017.

Como se vive neste local tão distante da média dos indicadores do Brasil, país onde um quarto da população é vítima da pobreza? O produtor de leite Ambrósio Tenfen, de 59 anos, abriu as portas da sua propriedade, de 50 hectares, para a nossa série de reportagens “Extremos do Brasil” e nos ajudou a entender algumas particularidades de Rio Fortuna. Ele mantém 42 vacas, que produzem de 700 a 900 litros de leite por dia, ou seja, uma média de 19 litros por vaca por dia, equivalente ao patamar europeu e bem distante da média brasileira, de 4,4 litros de leite por animal, segundo dados do IBGE. Ele revela que seu lucro é de R$ 0,30 por litro de leite vendido. Faço as contas e chego ao rendimento mensal de R$ 7.200 no fim do mês supondo que ele produza uma média de 800 litros diários. Se produzir 900 litros, lucrará R$ 8.100.

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Entusiasmado, Ambrósio explica as técnicas que adota em suas terras: ele utiliza ordenhadeiras mecânicas, compra sêmen para inseminação artificial com o objetivo de melhorar a qualidade genética dos animais e se vale da silagem, método de fermentação de forragens para alimentar o gado em tempos de escassez das pastagens, como no inverno. Quantos funcionários trabalham em sua propriedade? A pergunta soa estranha a Ambrósio. Somente ele e sua mulher, Denilde, se encarregam de tudo. São 12 a 14 horas de trabalho diário. “Quando preciso de ajuda para a silagem, por exemplo, chamo um amigo. Depois, retribuo a ajuda trabalhando para ele”, explica singelamente.

Cai a lenda do “grande produtor rural”, recorrente no imaginário de um habitante das grandes cidades. Aliás, Ambrósio é um pequeno proprietário, segundo a classificação fundiária do Incra (Instituto de Colonização e Reforma Agrária). Sua propriedade tem 3,5 módulos fiscais, cujas medidas no Brasil variam conforme o município. Em Rio Fortuna, cada módulo tem 14 hectares. As pequenas propriedades têm de um a quatro módulos. “Quando se fala em pequeno produtor no Brasil se pensa num pobre coitado, de chapéu de palha”, afirma o engenheiro agrônomo João Paulo Dornelles Reck, da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri), citando outro mito. “Não é o que acontece aqui em Rio Fortuna, onde são empregadas técnicas modernas, os produtores têm renda e estão atentos ao mercado“, argumenta.

Outra característica do município, na contramão da concentração da exploração dos produtos agrícolas por uma única empresa, é a distribuição da atividade econômica e da renda. São 808 propriedades rurais e 700 famílias trabalhando nelas. Daí a falta de mão de obra. “Há muitos empreendedores na região. Não há mão de obra para contratar”, argumenta o engenheiro, que percorre as propriedades oferecendo capacitação e orientação. No caso de Rio Fortuna, praticamente toda a produção de leite, que é a principal atividade agropecuária do município, é comprada por seis laticínios do local. Atrás da produção de leite, estão a fumicultura e a piscicultura, que vem se destacando: Rio Fortuna produz hoje cem toneladas de peixe por ano.


Não há fila de espera nas creches e só 10% da população não têm carro


Quando se fala em pequeno produtor no Brasil se pensa num pobre coitado, de chapéu de palha


Para que quero saber o que acontece no Rio ou em São Paulo? Só assisto ao noticiário local


Quando precisamos de ajuda, chamamos os vizinhos. Depois, trabalhamos em troca para eles também


Cerveja é o produto que mais vendemos, mas só depois do expediente

Ambrósio é considerado uma das referências para os produtores locais e é por essa razão que Reck nos leva até sua propriedade. Apesar disso, ele não acessa a internet, não tem smartphone e só assiste ao noticiário local. “Para que quero saber o que acontece no Rio ou em São Paulo?”, devolve a pergunta. “Celular bom para a roça é esse aqui”, aponta para o aparelho, sem internet. Nas horas de lazer, ele e a mulher participam da vida comunitária da igreja. Único dos sete irmãos que é agricultor, pai de duas filhas e avô de quatro netos, o produtor rural poderia ir longe, mas seu sonho está bem próximo: viajar para o Paraná, onde tem parentes.

A distância do mundo virtual parece ser mais uma característica geracional em Rio Fortuna, onde há apenas 1,13% de crianças fora da escola e só 0,32% dos moradores de 15 a 24 anos – ou menos de 15 – não estudam nem trabalham. Formado em agronomia, o jovem Luiz Henrique Roecker, de 24 anos, está entre os 99,6% que trabalham ou estudam. Junto com os pais, Roseli e Luiz Gonzaga, de 48 e 53 anos, ele vive da produção de leite e do corte de eucalipto em Rio Fortuna. Vamos até a propriedade da família com a ajuda da engenheira agrônoma Marcela Padilha, da Epagri. Enfrentamos os 60% de estradas não pavimentadas para chegar até a casa dos Roecker. Recém-formado em Agronomia, Marcela explica, o jovem vem sendo considerado como exemplo para as novas gerações do município. Luiz Henrique tem smartphone, usa o Google, o WhatsApp, o Facebook e assiste a alguns vídeos no You Tube “para saber novas dicas sobre inseminação das vacas”, exemplifica ele. O sonho do jovem é um dia poder conhecer as fazendas leiteiras do Canadá e Estados Unidos que, para ele, são referência.

Seu amor pelo que faz está estampado na camiseta que usa, com a inscrição “I love” à frente do contorno de uma vaca. O modelo foi escolhido pelos alunos do curso que fez na Epagri, do qual saiu com o prêmio Amigo da Turma. O amor não é apenas declarado. O jovem diz que passou a dar nomes de gente às vacas. Só não batiza aquelas que serão destinadas ao corte para o consumo da família para “evitar criar laços”.

Não há instituições de ensino superior em Rio Fortuna, mas Luiz Henrique se valeu de transporte subsidiado pela prefeitura para ir estudar em Orleans, cidade vizinha. A produtividade da propriedade – de 43,5 hectares – aumentou com a sua formação e os cursos. Hoje, eles produzem de 5 a 6 mil litros por mês com as 16 vacas que estão em período de lactação – são 42 no total. A família vende a R$ 1,10 o litro de leite, o que garante um faturamento em torno de R$ 6.500 por mês, fora o corte de eucalipto. Quanto aos lucros, Roecker diz que estão registrados em planilha. “Estamos numa fase de muito investimento, a família está se capitalizando”, explica. Eles compraram recentemente um resfriador (de leite), novos animas e estão investindo no sombreamento das pastagens, que “melhora o bem-estar” das vacas, explica ele.

A família Roecker planta e cria o que come. Na horta, há batata, aipim, couve, laranja, pêssego, ameixa e fruta do conde, entre outras frutas e verduras. Galinhas e gado para consumo próprio também são criados por eles. A mãe cuida da horta e das vacas, junto com Luiz Henrique. O pai toca o corte de eucalipto. “Não precisamos de mais mão de obra”, afirma o jovem. “Quando precisamos, trocamos de dia com os vizinhos”, conta Luiz Fernando, referindo-se à política de “uma mão lava a outra”, recorrente no município e também citada por Ambrósio. As práticas sustentáveis estão presentes também no lixo: todo o material orgânico é utilizado como adubo na propriedade. A coleta de lixo reciclável é feita a cada dois meses na zona rural, onde vivem.

Na cidade, há cinco mercados, seis farmácias, um hospital, duas escolas da rede municipal e uma da rede estadual. Não há escolas particulares. O salário inicial de um professor do ensino fundamental é R$ 4 mil. O prefeito Lindomar Ballmann (PSD), formado em filosofia, conta que chegou a pensar em abrir uma creche em Rio Fortuna antes de entrar para a vida pública, mas desistiu. “Não há fila de espera aqui”, afirma. No município, não há linhas de ônibus – apenas transporte escolar. “Só 10% da população não têm carro”, afirma Ballmann. Os ônibus escolares cobrem uma área de 300 km2 . Para buscar crianças em áreas mais remotas, a prefeitura contrata carros que as levam até o ponto mais próximo na estrada a partir da qual poderão ser servidas pelos ônibus. Apenas 39,5% das vias públicas são pavimentadas no município, onde 65,74% da população é rural. Onde há pavimentação, entretanto, há calçadas acessíveis, com pisos táteis.

Não há bolsões de miséria no município, como mostram os indicadores sociais do IBGE. Existe uma carência de 12 moradias pelos dados oficiais, mas o prefeito, ao mesmo tempo que se orgulha disso, teme que a divulgação acabe provocando um crescimento desordenado, atraindo mais gente para o local. Ele também sabe de cor que entre 15 e 18 famíias recebem cestas básicas, distribuídas no município a quem têm renda inferior a um quarto do salário-mínimo. Cruzamos a rua e fomos até o Centro de Referência e Assistência Social da prefeitura em busca de mais dados. Constatamos que apenas 32 famílias são contempladas com o Bolsa-Família e que o valor destinado pelo governo federal a elas é de R$ 4.838 mensais (em Marajá do Sena, o outro extremo da nossa reportagem, é 50 vezes maior). As assistentes sociais sabem pelo nome quem são as quatro crianças de 6 a 15 anos que não tiveram sua situação escolar informadas pelos pais.

Qual seria o segredo do sucesso de Rio Fortuna? “Existe um fator cultural. A colonização foi predominantemente alemã, com refugiados de guerra que deixaram suas propriedades como herança para os filhos”, explica o prefeito. “Existe um padrão que se criou e está sendo mantido. A essa hora (são 11h), os bares estão vazios”, prossegue. A informação é confirmada por Dilnei Nack, de 45 anos, dono do Nack bar. Cerveja é o produto que mais vende, mas só “depois do expediente”.

Adriana Barsotti

É jornalista com experiência nas redações de O Estado de S.Paulo, IstoÉ e O Globo, onde ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo com a série de reportagens “A história secreta da Guerrilha do Araguaia”. Pelo #Colabora, foi vencedora do Prêmio Vladimir Herzog, em 2019, na categoria multimídia, com a série "Sem Direitos: o rosto da exclusão social no Brasil", em um pool jornalístico com a Amazônia Real e a Ponte Jornalismo. Professora Adjunta do Instituto de Arte e Comunicação Social (Iacs), na Universidade Federal Fluminense (UFF), é autora dos livros “Jornalista em mutação: do cão de guarda ao mobilizador de audiência” e "Uma história da primeira página: do grito no papel ao silêncio no jornalismo em rede". É colaboradora no #Colabora e acredita (muito!) no futuro da profissão.

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