Por Adriana Barsotti | ODS 1 • Publicada em 11 de junho de 2018 - 15:09 • Atualizada em 28 de outubro de 2021 - 22:01

Reportagem: Adriana BarsottiImagens e Vídeos: Yuri FernandesDesign: Raquel Cordeiro

Por Adriana Barsotti | ODS 1 • Publicada em 11 de junho de 2018 - 15:09 • Atualizada em 28 de outubro de 2021 - 22:01

Reportagem: Adriana BarsottiImagens e Vídeos: Yuri FernandesDesign: Raquel Cordeiro

Bastidores

“Anderson, tem freio essa bicha para descer esse negócio?”, pergunta o pastor Denis Silva, no banco do carona de uma moto, ao motorista, o “irmão Anderson”. Anderson e Denis estão percorrendo a estrada MA-008, que liga Paulo Ramos a Arame, no interior do Maranhão. O objetivo é chegar à Marajá do Sena, localizada no meio do caminho entre os dois municípios. “Anderson, estou com vontade de parar”, prossegue Denis. “Meu Jesus do céu, isso aqui dá um medo danado!”, exclama o pastor. “É, meus irmãos, como diz a irmã Vera, isso aqui é ladeira para macho nenhum botar defeito”. Os companheiros de viagem e de fé estão nos 23 km de terra do trecho final para alcançar o município mais pobre em renda do país. As cenas estão registradas em um vídeo a que assisti no YouTube um dia antes de Yuri Fernandes e eu embarcarmos para o Maranhão para darmos início à série de reportagens “Extremos do Brasil“.

Leu essas? Todas as reportagens da série “Extremos do Brasil

26 horas

na estrada

1168 km

percorridos

7 dias

de vigem

Era tarde demais. Já contratara o aluguel de um carro 1.6 no aeroporto de São Luís. Teria que ir na fé. “Posso trocar por um 4 x 4”, perguntei ao atendente da locadora assim que me apresentei para retirar o veículo. “Não temos”, ele respondeu. “Para onde vocês vão? Barreirinhas?”, referindo-se ao destino mais próximo do cartão-postal do estado, os Lençóis Maranhenses. “Não, para Marajá do Sena. Conhece?” Ele fez que não com a cabeça. Faria essa pergunta ainda para mais de dez pessoas durante o trajeto de 394 km que separam São Luís de Marajá do Sena. A resposta seria negativa invariavelmente. O máximo que consegui foi um GPS, que se mostraria extremamente útil até perdemos o sinal de satélite nos quilômetros finais da estrada, os mesmos registrados em vídeo pelo pastor Denis.

Vamos para Marajá do Sena. Conhece? Faria essa pergunta ainda para mais de dez pessoas durante o trajeto de 394 km que separam São Luís de Marajá do Sena. A resposta seria negativa invariavelmente

Nossa esperança era conseguirmos mais informações em Bacabal, nosso pouso para alcançar Marajá do Sena, distante quatro horas do município. Na recepção do hotel Ibis, também nunca ninguém ouvira falar. Vem o gerente, que sabia apenas que a estrada era “péssima” e nos advertiu que não havia hotéis mais próximos, confirmando a pesquisa que eu fizera no Google. Hotéis, de fato, não havia. Mas encontramos uma pousada inacabada em Lago da Pedra que seria o nosso abrigo caso não conseguíssemos ir a Marajá e voltar para Bacabal no mesmo dia.

Multiplicam-se o número de motociclistas sem capacete e, muitas vezes, carregando na garupa mulher e filhos

O máximo que consegui foi um GPS, que se mostraria extremamente útil até perdemos o sinal de satélite nos quilômetros finais da estrada

Descer de São Luís para Marajá do Sena é também decrescer nos indicadores. A capital do Maranhão registrava, em 2010, um IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) de 0,768, considerado alto (quanto mais perto de 1, mais desenvolvido), e renda per capita de R$ 805, oito vezes maior que a marajaense. Bacabal, no meio do caminho, também está no meio das estatísticas: tinha, em 2010, um IDHM de 0,600, considerado médio, e R$ 375 de renda per capita. Na estrada, o declínio nos números ganha vida. De uma estrada razoável, a BR-135, passamos a estradas secundárias, gradativamente em piores condições, à medida que avançamos.

Uma Assembleia de Deus a cada dez minutos

Na primeira hora, saindo de Bacabal, contamos uma Assembleia de Deus a cada dez minutos em pequenas localidades. Depois, ao longo da estrada, não há templos da Assembleia nem de igreja nenhuma. Multiplicam-se o número de motociclistas sem capacete e, muitas vezes, carregando na garupa mulher e filhos. De boiadas cruzando a estrada próxima a Paulo Ramos, município onde o abate de carne é permitido, o que avistamos perto de Marajá do Sena foi um burrinho em pele e osso, antecipando o cenário desolador que encontríamos na localidade. Há vestígios de queimadas.

E muitos, muitos buracos. Tratores trabalham na recuperação da MA-008, mas não o suficiente para evitar meu medo e espanto tal qual o do pastor Denis. No bairro Novo Marajá do Sena, a uns dez minutos para alcançar a cidade, nosso entrevistado, o funcionário público Cláudio Firmo da Costa, adverte que teremos que descer uma ladeira muito íngreme para alcançarmos o vale onde está a zona central. “Lá embaixo, alaga tudo quando chove”, ele avisa. Olho para o céu e vejo nuvens cerradas e cinzentas. Dois meses depois, a situação de calamidade se instauraria no município.

Seguimos em frente, recusando o convite de Cláudio para almoçarmos em sua casa e contendo nossa vontade de dizer sim. O impoderável se aproximava, mas ainda não estava de todo convencida. Tinha achado o pastor Denis um pouco exagerado em seus temores. No vídeo postado por ele no dia 27 de junho de 2017 no You Tube, não se tem a dimensão da inclinação da ladeira. Agora, o mesmo medo se apoderava de mim, ao volante de um Sandero 1.6. “Yuri, vamos continuar?”, perguntei, em busca de apoio moral e torcendo para que a resposta fosse sim. “Sim!”, ele respondeu. “Agora que a gente chegou até aqui…”.

Engatei a primeira, mas nem a marcha mais contida foi capaz de evitar as ligeiras derrapagens. No caminho, apenas motos e um pau de arara venciam os obstáculos sem sobressaltos. Aos trancos e barrancos – literalmente – chegamos e cumprimos nosso objetivo, como vocês puderam ler aqui. Felizmente, o algoritmo do YouTube não me sugerira antes da viagem um vídeo publicado posteriormente pelo pastor Denis, em que um carro não consegue vencer a estrada e os ocupantes têm que seguir a pé.

Exatamente um mês depois, partíamos rumo ao nosso outro ponto da série “Extremos do Brasil”, Rio Fortuna, em Santa Catarina. O município está em várias listas: figura entre os que têm as maiores rendas per capita e domicilar do país e está entre as melhores cidades para se viver no Brasil. A despeito de tantas referências, ela compartilha com Marajá do Sena o ostracismo. Na locadora do aeroporto em Florianópolis, pergunto ao encarregado de fazer a vistoria no carro antes de partirmos se a estrada até lá é boa. Uma pergunta muito mais protocolar do que investigativa, afinal eu já verificara todas as coordenadas antes de embarcarmos e estava segura que não haveria nenhum sobressalto no caminho. “Não conheço. Fica aonde?”, ele devolveu. Em Florianópolis, uma das escalas para a nossa reportagem, nossos entrevistados também ignoravam a pequena cidade, de apenas quatro mil habitantes, tão pródiga nos números.

Nos 190 km que separam a capital da cidade, partindo da BR-101 e seguindo por duas estradas estaduais, os extremos saltam aos olhos. As condições das rodovias fazem o carro de categoria econômica 1.0 parecer mais potente. O caminho é sinalizado por placas, o que torna o GPS dispensável. Dentro do prazo previsto, chegamos ao único hotel da cidade, o Rio Fortuna. Aí os extemos começam a se embaralhar. O hotel abriga também o único restaurante da cidade – além dele, apenas lanchonetes e uma pizzaria. É hora do almoço: a família de proprietários está sentada em uma mesa que comporta três gerações. A neta está com o uniforme da escola pública: não há ensino particular no município, como você pôde conferir na reportagem feita na cidade. Caminhoneiros estacionam seus veículos na rua em frente, entram e se servem. A desigualdade é muito sutil no município onde a renda per capita é de R$ 1.570.

Outro ponto em comum entre os extremos: não se vive à sombra do fantasma da violência. A vida transcorre pacata, dia após dia. À noite, tenho dificuldade de pegar no sono: uma vaca muge intermitentemente

Ansiosos, fazemos o check-in e avisamos na recepção que vamos dar uma volta pela cidade antes do almoço. Não demoramos mais que dez minutos de carro. Todo o comércio está fechado

Ansiosos, fazemos o check-in e avisamos na recepção que vamos dar uma volta pela cidade antes do almoço. Não demoramos mais que dez minutos de carro. Todo o comércio está fechado. Há uma rua principal, com via de mão dupla de ambos os lados e dividida por um canteiro gramado. Fora ela, há poucas ruas secundárias, pelas quais transitamos em busca de personagens. Nada. Voltamos para o hotel. Recebemos a explicação que tudo para na hora do almoço. Inclusive verificaríamos depois que a própria delegacia fecha as portas. Outro ponto em comum entre os extremos: não se vive à sombra do fantasma da violência. A vida transcorre pacata, dia após dia. À noite, tenho dificuldade de pegar no sono: uma vaca muge intermitentemente.

Na conversa com os entrevistados, relatamos os contrastes que vimos em Marajá do Sena. Eles ouvem as histórias com atenção. Fazem perguntas. O universo é bem distante do cotidiano a que estão acostumados. Apesar da boa renda, não viajam. Só conhecem outras realidades pela televisão. Trabalham duro em suas propriedades, de sol a sol, de fato, sem clichês. No caminho de volta, na estrada, um desejo não me sai da cabeça: levar moradores de um ponto a outro nos Extremos do Brasil, os de Marajá do Sena para conhecerem Rio Fortuna e vice-versa. Abandono a racionalidade de repórter e me deixo levar pela ideia do jovem agricultor Luiz Henrique Roecker se encontrando com a família de Eva Gonçalves da Silva, nossos personagens nos dois extremos. Espero que este não seja um ponto final.

Adriana Barsotti

É jornalista com experiência nas redações de O Estado de S.Paulo, IstoÉ e O Globo, onde ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo com a série de reportagens “A história secreta da Guerrilha do Araguaia”. Pelo #Colabora, foi vencedora do Prêmio Vladimir Herzog, em 2019, na categoria multimídia, com a série "Sem Direitos: o rosto da exclusão social no Brasil", em um pool jornalístico com a Amazônia Real e a Ponte Jornalismo. Professora Adjunta do Instituto de Arte e Comunicação Social (Iacs), na Universidade Federal Fluminense (UFF), é autora dos livros “Jornalista em mutação: do cão de guarda ao mobilizador de audiência” e "Uma história da primeira página: do grito no papel ao silêncio no jornalismo em rede". É colaboradora no #Colabora e acredita (muito!) no futuro da profissão.

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