Cartola não pegaria um uber na Mangueira

Palácio do Samba, sede da Mangueira, na Visconde Niterói: insegurança faz taxistas e motoristas de aplicativo evitarem até a rua principal que margeia o morro (Foto: Oscar Valporto -09/03/2019

Táxis e carros do aplicativo não aceitam passageiros na rua que margeia a favela

Por Fernando Molica | ArtigoODS 16 • Publicada em 20 de abril de 2023 - 09:51 • Atualizada em 25 de novembro de 2023 - 13:41

Palácio do Samba, sede da Mangueira, na Visconde Niterói: insegurança faz taxistas e motoristas de aplicativo evitarem até a rua principal que margeia o morro (Foto: Oscar Valporto -09/03/2019

Ao sair, no início da noite de sábado, de uma ótima roda de samba numa das entradas do Morro da Mangueira, descobri que aquele lugar – Rua Visconde de Niterói, via movimentada que margeia toda a parte inferior da favela – era um não lugar, inexiste para a Uber e para o Táxi Rio.

O aplicativo deixava claro que não enviava carros para aquela área, nenhum taxista cadastrado no programa desenvolvido pela prefeitura aceitou a corrida. O motivo, embora não explícito, era óbvio – o local é visto como perigoso e, portanto, deveria ser evitado.

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Para quem não conhece o Rio vale dizer que a Visconde de Niterói é uma rua paralela à linha ferroviária, trata-se de importante ligação entre a Zona Norte e o Centro, muito utilizada por carros e ônibus. Fica entre a comunidade e o muro da estrada de ferro. Não pode ser considerada um lugar ermo.

A preocupação de taxistas e de motoristas do aplicativo é explicável. O morro – berço e sede da Estação Primeira de Mangueira, uma das maiores instituições culturais do país – é um dos que há décadas servem de palco para a lucrativa política de segurança pública criada e mantida para perpetuar o tráfico de armas, drogas e munição. Uma lógica que prevê eventuais e sangrentos confrontos entre quadrilhas e entre estas e policiais.

Palácio do Samba, sede da Mangueira, na Visconde Niterói: insegurança faz taxistas e motoristas de aplicativo evitarem até a rua principal que margeia o morro (Foto: Oscar Valporto -09/03/2019
Palácio do Samba, sede da Mangueira, na Visconde de Niterói: insegurança faz taxistas e motoristas de aplicativo evitarem até a rua principal que margeia o morro (Foto: Oscar Valporto -09/03/2019

Dados oficiais, do Instituto de Segurança Pública, revelam que a quantidade registrada de crimes na Mangueira e em bairros vizinhos (Caju, São Cristóvão e Vasco da Gama) não difere muito da verificada em outros locais da cidade (com exceção dos enclaves mais ricos). Entre janeiro de 2022 e fevereiro de 2023 por lá houve 305 roubos de veículos, contra 265 em Maracanã, Praça da Bandeira e parte da Tijuca, áreas que ficam bem perto da favela, do outro lado da linha do trem. Na soma de todos os tipos de roubo, Mangueira e vizinhos chegaram a 1.865, abaixo dos 2.225 ocorridos do lado de lá.

Os assassinatos foram bem maiores na favela e seus arredores em comparação aos ocorrido no outro grupo de bairros, que, juntos, formam outra Cisp (Circunscrição Integrada de Segurança Pública) – 14 contra 5. Houve quase um empate nas tentativas de homicídio – 11 contra dez. Vale registrar que em outra Cisp – que reúne Catete, Cosme Velho, Flamengo, Glória e Catete, todos na Zona Sul – houve, no mesmo período, 14 desses crimes (e 1.883 roubos).

Vista assim de longe, Mangueira pode parecer um céu no chão ou uma sucursal do inferno, depende de quem vê. Observada de perto, da varanda do Bar do Élcio debruçada na Visconde de Niterói, a Mangueira é uma ladeira asfaltada, cheia de prédios, de pessoas que sobem e descem o morro com crianças, que levam cachorros para passear. Uma área pobre, que ocupa o 94º lugar entre os bairros listados no Índice de Desenvolvimento Humano da cidade.

Seria irresponsável negar que as mesmas vielas abrigam bandidos bem armados e que a qualquer hora uma disputa entre quadrilhas ou, mais provavelmente, uma incursão policial pode acabar com aquela paz aparente. Um risco criado, estimulado e mantido por projeto político-institucional criado para impedir mudanças, para manter a Mangueira e outras favelas na mesma pobreza.

Não dá para condenar os motoristas que evitam pegar passageiros na entrada da favela, mas também não é possível achar normal que os habitantes da favela tenham que conviver com mais esta forma de exclusão, que institucionaliza ainda mais o fosso entre moradores da cidade – imagine você, leitor/leitora, não poder, agora ou numa emergência, chamar um uber ou um táxi na porta de sua casa.

No Terreiro de Mangueira – nome da roda -, tive a experiência pra lá de emocionante de ouvir sambas de Cartola, Nelson Cavaquinho e Nelson Sargento dentro da comunidade em que foram compostos, na favela que tanto os inspirou. É inevitável lembrar que eles caminharam por ali, naquela rua, diante de algumas daquelas casas que, sábado, pareciam participar do mesmo coro. Cartola, o Divino Cartola, não conseguiria pegar um uber hoje, na saída da comunidade em que morou por tantos anos. Nem ele nem as mulheres e homens, jovens e velhos, trabalhadores de tanto valor, com o mesmo sangue nas veias.

Fernando Molica

É carioca, jornalista e escritor. Trabalhou na 'Folha de S.Paulo', 'O Estado de S.Paulo', 'O Globo', TV Globo, 'O Dia', CBN, 'Veja' e CNN. Coordenou o MBA em Jornalismo Investigativo e Realidade Brasileira da Fundação Getúlio Vargas. É ganhador de dois prêmios Vladimir Herzog e integrou a equipe vencedora do Prêmio Embratel de 2015. É autor de seis romances, entre eles, 'Elefantes no céu de Piedade' (Editora Patuá. 2021).

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