‘Você é uma vergonha’ e ‘mimimi’: ofensas a candidatas reproduzem falas de Bolsonaro

Simone Tebet e Soraya Thronicke recebem milhares de menções misóginas no Twitter após o primeiro debate na TV

Por Revista AzMina | ODS 16ODS 5 • Publicada em 26 de setembro de 2022 - 09:08 • Atualizada em 29 de novembro de 2023 - 09:21

(Arte: Revista AzMina)

(Lu Belin*) – As candidatas à Presidência da República Simone Tebet (MDB) e Soraya Thronicke (União Brasil) foram alvo de 6.661 mil ofensas no Twitter em apenas dois dias. Expressões como “você é uma vergonha” aparecem em 1.050 tweets no levantamento do MonitorA**, projeto desenvolvido por AzMina, InternetLab e Núcleo Jornalismo.

Foram analisados quase 10 mil tweets que mencionaram as candidatas nos dias 28 (domingo) e 29 de agosto (segunda-feira). No domingo (ou no dia 28), foi exibido o primeiro debate entre presidenciáveis, promovido por um pool de veículos de imprensa composto por Band, TV Cultura, UOL e Folha de São Paulo. Os resultados mostram que os ataques às duas trazem algumas diferenças com relação às demais candidatas monitoradas pelo projeto.

No caso do pós-debate, a narrativa de envergonhar ou intimidar uma mulher repete a frase dita pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) à jornalista Vera Magalhães na noite de domingo. Duas semanas depois, no dia 13 de setembro, a mesma expressão foi usada pelo deputado Douglas Garcia (Republicanos-SP) para assediar Magalhães novamente, após o debate entre candidatos ao Governo do Estado de São Paulo.

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No Twitter, aparecem variações como “que vergonha você é para o MT”, “a senhora é uma vergonha no Senado” e “você envergonha as mulheres”, que inferiorizam ou desvalorizam as candidatas. Parte dos ataques que questionam a representação das senadoras usam o próprio gênero para autorizar a crítica: “sou mulher e você não me representa, você é uma vergonha para as mulheres”.

O apelo à vergonha não é novidade nos discursos misóginos, segundo Sarah Sobieraj, presidente do Departamento de Sociologia da Universidade de Tufts, nos Estados Unidos, e professora associada do Berkman Klein Center for Internet and Society, de Harvard. Em artigo científico de 2017, a partir de 40 entrevistas em profundidade com mulheres com presença digital, ela identificou o shaming [envergonhar] como uma das três principais materializações de violência de gênero online, somado ao descrédito e à intimidação – principalmente de cunho sexual. O estudo explica: “As tentativas de humilhação pública exploram regularmente padrões duplos sobre o comportamento sexual e a aparência física das mulheres para manchar os alvos”.

Enquanto a intimidação explora o medo de estupro e violência física, o descrédito aparece no emprego de estereótipos sexistas que desvaloriza as ideias e contribuições da mulher. “Muitas vezes ela é descrita como incapaz de uma opinião ou perspectiva imparcial porque ela é uma cadela, uma idiota, emotiva, precisa transar, uma loira burra, uma prostituta ou sofrendo de TPM, para dar alguns exemplos”, complementa Sobieraj.

No caso das eleições brasileiras, o descrédito aparece não só nos mais de 500 tweets que chamam as candidatas de incompetentes, despreparadas, incapazes, insignificantes, oportunistas, aproveitadoras, burras ou idiotas. Consiste, também, em taxar de vitimistas as que falam em feminismo ou citam questões como igualdade de gênero e combate à violência contra a mulher.

Quase mil (993) tweets usam mimimi, vitimismo ou mimizenta para ofender ou deslegitimar as candidatas, frequentemente comparadas a mulheres que desafiam estereótipos de feminilidade na política – Margaret Thatcher e Angela Merkel, por exemplo. Nem mesmo a ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), que costuma ser alvo do mesmo tipo de ataque, escapa de ser usada como figura que não “fazia drama”: “pelo menos a Dilma não fazia mimimi”.

(Infografia: Revista AzMina)

Reação em cadeia

As ofensas misóginas que vêm principalmente de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro incorporam a retórica de seu grupo político. Parte significativa dos tweets que atacam as candidatas menciona jornalistas. Em 31% das publicações ofensivas, há menção a Vera Magalhães, mas, em alguns, os usuários também criticam outros nomes como Míriam Leitão e Eliane Cantanhêde, que publicaram tweets em solidariedade à colega. Magalhães é diretamente atacada com adjetivos pejorativos e trocadilhos em pelo menos 215 tweets.

Além disso, algumas postagens se repetem, com o mesmo texto e alterações mínimas de grafia, ou somente com mudanças de emojis, indicando uma atuação coordenada para intimidar e constranger as presidenciáveis.

Frequentemente, os usuários ainda questionam a atuação das duas senadoras na CPI da Covid. Elas são acusadas de omissão em relação a supostos ataques misóginos a duas mulheres ouvidas na investigação: as médicas Nise Yamaguchi e Mayra Pinheiro, esta última agora candidata a deputada federal pelo PL do Ceará.

A relação com os demais presidenciáveis também ajuda a entender o panorama onde os ataques se inserem. Entre os 2.390 tweets que mencionam outros candidatos, 55% citam Jair Bolsonaro textualmente ou em hashtags, indicando que as agressões verbais às presidenciáveis também podem ser uma forma de ativismo eleitoral.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é mencionado em 303 tweets, muitas vezes de maneira ofensiva, com apelidos e hashtags como #luladrão, recorrentes nas atuações digitais dos grupos bolsonaristas.

(Infografia: Revista AzMina)

Ataques em sequência

Nos dois dias analisados pela equipe do MonitorA, 63.863 tweets mencionaram as @s de Simone Tebet e Soraya Thronicke. Entre eles, 9.952 trazem palavras consideradas potencialmente ofensivas (veja a metodologia de análise ao final da matéria), e foram analisadas uma a uma por uma equipe de jornalistas e pesquisadoras.

Em uma eleição onde o voto feminino será decisivo e vem sendo disputado por todas e todos que pleiteiam a presidência, o gênero é pauta central, e serve, também, como ferramenta de desdém e crítica às poucas mulheres na corrida.

Mais de 35,7% das ofensas identificadas nos tweets são misóginas e outras 30,3% chama as candidatas de ridícula, patética, mentirosa, hipócrita, falsa, pilantra, imoral, cara de pau, aproveitadora, idiota e imbecil.

São recorrentes as tentativas de desqualificação, descrédito intelectual e ofensas morais, além de tweets que demonstram “nojo” ou que desumanizam as candidatas. Neste caso, o que mais aparecem são as palavras “jumenta” e “onça”.

Para Soraya Thronicke, 10,67% (278) das menções usam as palavras traíra ou traidora. A candidata apoiou Jair Bolsonaro em 2018, e agora compete com ele pela presidência. Outros 171 tweets questionam sua competência ou preparo, enquanto 161 usam as palavras fraca ou fracassada.

Para Simone Tebet, um número significativo de tweets (273) demonstra um discurso hostil ou violento, mas sem empregar nenhum termo específico. São 169 os posts que a chamam de despreparada ou desqualificada, enquanto 113 incluem fraca ou fracassada.

Diferente do que o MonitorA notou ao analisar ataques a quase cem candidatas na primeira semana de campanha, referências às políticas como louca ou maluca foram pouco frequentes. Psicofobia e capacitismo, etarismo e ideologia política somam pouco mais de 2% das publicações.

“Usamos a categoria “psicofobia e/ou capacistimo” para classificar comentários que colocam as candidatas no lugar de pessoas com transtornos psicológicos ou problemas psíquicos, além de comentários sobre deficiências físicas ou intelectuais. É comum que sejam feitas insinuações ou menções explícitas em que as candidatas são colocadas como “doentes”, “borderlines”, “bipolares” e “aleijadas”. Além disso, a demarcação da idade das candidatas é algo bastante presente. Em alguns momentos, Simone e Soraya são chamadas de “velhas”, como se a idade pudesse qualificar a atuação política das mulheres. Por fim, os ataques à ideologia política das candidatas as coloca como indignas de ocuparem o cenário público devido ao que acreditam politicamente. O fato de as candidatas terem debatido diretamente com os outros presidenciáveis pode explicar a menor quantidade de ofensas desse tipo nesta fase da pesquisa”, explica Fernanda Martins, antropóloga, diretora do InternetLab e uma das responsáveis pelo estudo.

(Infografia: Revista AzMina)

Gênero como argumento de ataque

No padrão misógino identificado na análise, pessoas de grupos minorizados são frequentemente atacadas por suas próprias identidades, cuja presença é indesejada em posições de poder, segundo a professora Sarah Sobieraj. O recurso aparece em uma série de tweets que usam termos como muié, mulherzinha ou mulher, entre aspas, de maneira pejorativa.

Para a pesquisadora, “a identidade é tão proeminente no abuso que os ataques são quase intercambiáveis entre mulheres de origens semelhantes. Há tão pouco envolvimento com as ideias e propostas das mulheres, que muitas vezes você nem consegue dizer de quem o agressor está falando, a menos que você olhe”.

A violência política de gênero é perigosa porque afasta as mulheres da política. “Eles [os ataques] criam um efeito de resfriamento. Se você é uma jovem que considera uma carreira na política, no ativismo e até mesmo no jornalismo, estes parecem cada vez mais trabalhos de alto risco que provavelmente é melhor evitar. Isso prejudica a todos – não apenas as pessoas que são atacadas”, explica a pesquisadora.

Cria-se, assim, uma atmosfera onde as candidatas precisam se defender e elaborar estratégias para tratar dos ataques, no lugar de fazerem o trabalho a que se propõem. É o que tem acontecido com jornalistas que cobrem política, mulheres que atuam na política institucional e candidatas. Em entrevista ao podcast Café da Manhã, da Folha de São Paulo, Vera Magalhães disse que, agora, anda acompanhada por um segurança profissional.

Via assessoria de imprensa, Simone Tebet afirmou que a campanha tem recebido agressões online e “lidado com cuidado” com todas. “Para assegurar a segurança digital da campanha, uma equipe especializada fica em alerta dia e noite. Quando detectamos a agressão ou fake news, elas são direcionadas para o portal do TSE imediatamente. Já conseguimos derrubar inúmeros perfis falsos e publicações violentas que tentam me atingir como mulher e como política”.

Já Soraya Thronicke afirma que as ofensas pioraram neste período de campanha eleitoral, e que grande parte delas são ataques pessoais, que colocam seu caráter em xeque. Segundo ela, o procedimento padrão é bloquear os perfis agressores. “A depender do teor, o conteúdo é encaminhado para a equipe jurídica verificar a necessidade de alguma medida judicial, ou mesmo para a equipe de segurança da Polícia Federal (PF) para análise de risco e a tomada de providências”, diz o comunicado enviado pela assessoria de imprensa.

*Lu Benin é jornalista, mestre em Comunicação e doutoranda pela Universidade Federal do Paraná, na linha de Comunicação e Política: pesquisa feminismo, direitos reprodutivos e conversação política em redes digitais

**O MonitorA é um observatório de violência política online contra candidatas(os) a cargos eletivos. O projeto é uma parceria entre a AzMina, o InternetLab e o Núcleo Jornalismo. A iniciativa é financiada por Luminate e Reset. A metodologia pode ser consultada aqui e aqui.

Revista AzMina

Revista AzMina: Tecnologia e informação contra o machismo e pela igualdade de gênero, com recortes de raça e classe. Jornalismo independente para combater os diversos tipos de violência que atingem mulheres cis e trans, homens trans e pessoas não-binárias

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