ODS 1
Debate sobre aborto na Câmara é dominado por fundamentalismo religioso
Na tribuna, 44% dos pronunciamentos atacam aborto, mesmo em casos já previstos em lei e apenas 1,3% defendem interrupção da gravidez
(Ester Pinheiro e Jane Fernandes*) – “Discípulas de Herodes”, “assassinas de bebês”, “covardes com sede de sangue”, estão entre as imagens evocadas por deputados federais conservadores para falar de pessoas que lutam pelos direitos reprodutivos no Brasil. Os discursos na Câmara refletem uma agenda antiaborto, mesmo quando ele é permitido por lei.
A Revista AzMina analisou 376 discursos sobre aborto proferidos na tribuna da Câmara dos Deputados de 2019 a 2023. Em lugar de representar e fortalecer os direitos das mulheres e meninas, quase metade das falas sobre o tema (44,4%) são explicitamente contrárias à interrupção da gravidez. Em 38,6% dos discursos, o assunto aparece é citado num contexto conservador. Independentemente do gênero de quem está proferindo, a maioria das falas se baseiam em crenças pessoais e moralidade.
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Reuniões das comissões e eventos na Câmara também são palco de defesa das agendas de cada parlamentar, mas a tribuna é um dos espaços mais cobiçados. Além da visibilidade pública dada pelos meios de comunicação da Casa – TV Câmara, Rádio Câmara, Agência Senado, Jornal Câmara -, os discursos rendem cortes de vídeos para divulgação nas redes sociais e aplicativos de mensagens, como Telegram e WhatsApp.
Seis parlamentares fizeram 30,4% (95) dos 312 discursos críticos ao aborto ou que citavam o procedimento em falas conservadoras no período analisado pela reportagem. A concentração das ocorrências neste pequeno grupo revela o quanto alguns deputados adotam a negação do direito ao aborto como causa.
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Veja o que já enviamosA linguista Jana Viscardi considera que a tribuna é um espaço privilegiado na construção da persona do político, do que ele quer mostrar aos eleitores e possíveis eleitores. Ela alerta que os grupos antidireitos definem os pontos centrais do debate, ignorando a autonomia das mulheres e os direitos reprodutivos, como se tudo se resumisse a concordar ou discordar. “Eu preciso me render à discussão pela lógica dos fundamentalistas, dos extremistas de direita? É preciso sair da pauta do aborto como questão de ‘a favor’ ou contra”.
Mandatos antiaborto
A deputada federal Chris Tonietto (PL-RJ) é a líder em discursos antiaborto. Foram 24 falas no período, sendo 20 direcionadas especificamente ao tema e 4 citações em pronunciamentos conservadores. Depois dela, os que mais atacam os direitos reprodutivos são Bia Kicis (PSL-DF), Eli Borges (Solidariedade-TO), Otoni de Paula (Bloco/PSC-RJ), Carlos Jordy (PSL-RJ) e Luiz Lima (PL-RJ).
Chris se apresenta no Instagram como pró-vida, expressão muito usada pelos que são contra a interrupção da gestação. Em seu discurso de posse em 2019, ela ressaltou o tema central do primeiro mandato: “Quero reafirmar aqui o meu compromisso moral em defesa da vida, desde a concepção, em defesa da família, dos valores cristãos, em combate ao aborto…”.
Entusiasta das expressões “discípulos de Herodes” e “patrulha ideológica dos Herodes da contemporaneidade”, a deputada coordena a Frente Parlamentar contra o Aborto e em Defesa da Vida. Segundo a narrativa bíblica, Herodes mandou matar todos os recém-nascidos de Belém, para impedir que Jesus, profetizado como rei da Judeia, pudesse sobreviver.
Criada em março de 2023 com 172 deputados e 10 senadores, uma das finalidades da Frente, comandada por Chris Tonnieto pela segunda legislatura consecutiva, é “acompanhar o processo legislativo, no Congresso Nacional, quanto às matérias referentes ao direito à vida e contra a legalização do aborto no Brasil”.
No período analisado, 2023 teve maior concentração de discursos sobre aborto (63% do total), motivada pela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 no Supremo Tribunal Federal (STF). A então presidente da corte, ministra Rosa Weber, deu voto favorável à descriminalização da interrupção voluntária da gestação até a 12ª semana, mas o julgamento foi suspenso e segue parado.
Em sua primeira abordagem do tema na tribuna, Tonietto afirmou que a ADPF foi proposta “para que a nossa bandeira seja manchada com sangue inocente”. Na opinião da deputada, o julgamento era a situação de maior gravidade já enfrentada no país. “Nós estamos diante de uma grande ameaça para a vida do nascituro, a vida do mais frágil dos seres, a vida desse bebezinho que ainda não tem voz”. Uma das estratégias dos grupos antiaborto é, por meio de apelo emotivo, nomear embriões ou feto como bebês.
Durante a polêmica discussão do PL 1904, também conhecido como PL do Estupro, a linguista Jana Viscardi discutiu o uso dos termos, com destaque para a diferença entre os binômios mãe/bebê e gestante/feto. “O fato de uma mulher estar gestante não implica que ela vá ser mãe. E o fato de um embrião ter sido gerado, não implica que ele se tornará feto, depois, um recém-nascido e, finalmente, um bebê”, concluiu.
Antifeministas no debate
As mulheres representam apenas 17,3% da Câmara dos Deputados nesta legislatura, mas proporcionalmente se pronunciam sobre o aborto com maior frequência. No período analisado por AzMina, as 19 parlamentares que abordaram o assunto fizeram 24,5% dos discursos contrários ao procedimento.
A deputada Bia Kicis (PSL-DF) tem uma pauta difusa em seu mandato, mas com destaque para a proibição do aborto, abordagem que costuma incluir em discursos conservadores. “Isso é uma vergonha! Querem falar de genocídio? Isto é genocídio: bebês assassinados no ventre de suas mães. Isso é genocídio!”, disse a parlamentar na tribuna, ao criticar a descriminalização do aborto até 24 semanas na Colômbia. Vale lembrar que genocídio é o “extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso”. Não faz sentido comparar o exercício dos direitos reprodutivos das mulheres à destruição de grupos de pessoas já nascidas.
Teresa Sacchet, doutora em Ciência Política e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), observa que os discursos antiaborto não soam espontâneos, mas resultado da articulação entre os políticos conservadores. “Há todo um repertório de ação, o uso dessas frases de efeito, da dramatização com frases que têm a intenção de comover.”
“É um discurso para ganhar adeptos a partir de imagens”, resume, referindo-se não apenas à construção de imagens a partir das palavras, mas também ao uso literal delas. Chris Tonietto subiu à tribuna com uma réplica de bebê de 24 meses para repudiar a liberação do aborto pela Corte Constitucional colombiana.
Corpo como incubadora
A desumanização da mulher, tratada praticamente como uma incubadora de fetos, chama atenção nos discursos antiaborto. No início de seu primeiro mandato (2019 – 2022), o deputado e pastor Eli Borges (PL-TO) disse: “ela apenas empresta seu corpo para que uma vida ali seja gerada e possa nascer, como todos nós tivemos o direito de nascer”. Em 2022, reforçou: “ela não é a proprietária, ela é apenas uma extensão, ela apenas empresta o seu corpo”.
Nos cinco anos analisados pela AzMina, Eli foi o homem que mais usou a tribuna para atacar os direitos reprodutivos, com foco na interrupção da gestação. Em licença do mandato desde 19 de junho de 2024, por um acordo com o suplente Pedro Júnior (PL-TO), o deputado pastor costuma fazer referências à Bíblia na sua argumentação.
As tentativas de desqualificar as mulheres aparecem ainda na associação da pauta antiaborto com ataques às lutas feministas. O deputado Carlos Jordy (PL-RJ) disse na tribuna: “Feminismo nunca ajudou o Brasil em nada, nunca ajudou a humanidade em nada! Gênero não existe. (…) Fora aborto! Fora feminismo! Fora gênero!”.
As falas de Eli Borges e Carlos Jordy evidenciam os principais elementos por trás da militância antiaborto. “Não é uma discussão pró-vida, é uma discussão pela manutenção do controle sobre os corpos das mulheres cis e de pessoas trans que engravidam”, analisa Jana Viscardi. Ela ressalta que é preciso impedir que conservadores escolham os termos do debate, pois eles diminuem e precarizam a discussão.
O estado é laico; a Câmara, nem tanto
O apelo à religiosidade cristã é uma estratégia recorrente, especialmente em pronunciamentos sobre aborto e questões de gênero. A palavra “Deus” aparece centenas de vezes nos 376 pronunciamentos analisados. Em alguns momentos o nome está em agradecimentos, mas o termo também está nas falas como principal motivo para proibir a interrupção da gestação.
O deputado Otoni de Paula (MDB-RJ) leu na tribuna uma carta aberta endereçada ao então vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos-RS), quando ele deu uma declaração favorável ao aborto. “Por isso é que o aborto é um pecado tão grave. Não somente matamos a vida, mas nos colocamos acima de Deus. Os homens decidem quem deve e quem não deve viver”. E completou: “Sr. Vice-presidente, defenda a vida, e o Deus do céu o abençoará; defenda a morte dos inocentes, e esse mesmo Deus o arrancará desse lugar”.
Nos discursos de deputados da bancada evangélica, que Otoni de Paula integra, é comum atribuir um caráter pecaminoso ao aborto e com isso justificar a rejeição ao procedimento. Para Rodrigo Valadares (União-SE) esse é “um dos maiores pecados que um ser humano pode cometer”, enquanto o Sargento Gonçalves (PL-RN) convocou os “cidadãos de bem às ruas” contra a ADPF 422, afirmando que o “pecado da omissão é tão grave quanto o pecado da ação”.
Manobra de texto bíblico
Simony dos Anjos é pesquisadora em negritude, igreja evangélica e feminismo, doutoranda em antropologia, e também uma mulher evangélica. Ela explica não haver passagem bíblica que defina o aborto como pecado. “O que acontece é uma manobra teológica de transformar o mandamento do não matarás em um argumento genérico contra interrupção das gestações”. Simony lembra que Israel, um estado judeu, portanto não laico, tem leis sobre aborto muito mais flexíveis do que as brasileiras.
“Há uma interpretação do texto bíblico para garantir uma narrativa moralista sobre o corpo das mulheres e conseguir audiência com isso”. Simony aponta a criação de um pânico moral em torno do procedimento, que mobiliza pessoas religiosas, sobretudo fundamentalistas, com retorno em apoio político.
Feito para viralizar
Todas as táticas para comover e gerar identificação com os discursos na tribuna ganham força com a publicação de cortes dos vídeos nas redes sociais. A estratégia é usada por dezenas de deputados, incluindo Chris Tonietto, Bia Kicis, Eli Borges, Carlos Jordy e Luiz Lima, cinco dos seis líderes em falas antiaborto.
A linguista Jana Viscardi percebe nessas plataformas digitais um elemento central na construção da persona desses políticos. “O discurso acontecia mais focado naquele público, e aparecia muito menos do que hoje, que o sujeito já faz o discurso pensando nos cortes que vai fazer para viralizar nas redes”, diz, considerando a mudança de estratégia após a popularização das redes sociais.
O deputado Luiz Lima não costuma colocar a palavra aborto nos títulos das postagens, e, nos seus discursos na tribuna, o procedimento geralmente é citado em pronunciamentos sobre outros temas. Seja em críticas ao atual presidente da República (desde a pré-candidatura) ou na abordagem de problemas do Rio de Janeiro, ele frequentemente comenta a reprovação do direito ao aborto.
Com dois milhões de seguidores, Bia Kicis é a líder em público no Instagram – entre os seis deputados com mais falas antiaborto. Para guiar sua audiência pelas quase 20 mil publicações, a deputada posta os vídeos numa moldura com títulos enormes. As postagens condenando o aborto aparecem como resposta às discussões do momento, a exemplo da ADPF 422, ou partindo de temas diversos, como aconteceu em seu discurso de aniversário.
Discursos radicais atrapalham diálogo
Enquanto parlamentares antidireitos muitas vezes inserem o repúdio ao aborto em discursos sobre qualquer tema, representantes da bancada progressista raramente se pronunciam de forma direta sobre o tema. Nos cinco anos analisados por AzMina, apenas cinco dos 376 discursos defenderam a interrupção voluntária da gestação.
A cientista política Teresa Sacchet considera que ao buscar continuamente a comoção dos ouvintes, os parlamentares antiaborto também desejam constranger posicionamentos contrários. “Você caracteriza pessoas a partir desses termos e torna muito mais difícil o diálogo.”
Sâmia Bonfim (PSOL-RJ), Talíria Petrone (PSOL-RJ) e Zacharias Calil (União-GO) foram os autores das falas favoráveis ao aborto entre 2019 e 2023. As deputadas são defensoras do direito à interrupção da gestação, enquanto o deputado fez uma defesa pontual, direcionada a um caso específico.
A favor de meninas, mulheres e pessoas que gestam
Talíria subiu à tribuna, em 2019, para cobrar do Ministério da Saúde a compra de misoprostol, medicamento utilizado na realização do aborto legal. “Este é mais um ataque deste Governo aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Também é um ataque à saúde das mulheres, num país que violenta sexualmente mais de 20 mil mulheres por ano”.
Nos demais casos, a defesa do aborto ocorreu a partir de episódios específicos. Sâmia e Talíria demonstraram indignação com a decisão judicial que retardou a interrupção da gestação de uma menina de 11 anos, vítima de estupro. Segundo a lei brasileira, abaixo de 14 anos não há consentimento para sexo, configurando automaticamente estupro de vulnerável.
Em 2022, o deputado Dr. Zacharias Calil, que é médico, ocupou a tribuna para ressaltar os riscos dessa criança seguir com a gravidez: “Acho que essa juíza não teve o bom senso de entender a idade dessa criança e de que colocaria em risco as duas vidas”. Mas, em 2024, ele usou o espaço para condenar a assistolia fetal, chamando de feticídio o método recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para interromper gestações acima de 22 semanas.
Sâmia também discursou em alerta à possibilidade da bancada antiaborto colocar em votação o Estatuto do Nascituro (PL 434/2021). “Esse projeto, que alguns dizem supostamente defender crianças, é, na prática, um retrocesso e um aceite à lógica da cultura do estupro em nosso país”.
Debate interditado
A deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) foi vítima de uma campanha de desinformação em 2006, quando relatou um projeto de lei para garantir o atendimento dos casos de aborto legal no SUS. Atualmente, ela não vê espaço para um debate real no Congresso. Os principais motivos são o perfil extremamente conservador predominante na Casa e o tratamento do aborto como pauta religiosa, quando, na verdade, é um tema de saúde pública.
“Não vejo chance da gente avançar, a maioria fica na defensiva nesse tema. Poucas são as mulheres, ou mesmo homens, que enfrentam”, disse Jandira. Quando entrevistamos Jandira, ela e outros parlamentares progressistas, além de movimentos feministas, lutavam para tirar da pauta o PL 1904/2024, que pretende equiparar a homicídio o aborto de fetos acima de 22 semanas.
A análise de Jandira é a mesma da deputada Dandara (PT-MG), que vê um debate superficial, que está mais interessado em criar cortinas de fumaça e manipular a sociedade. E o enfrentamento é ainda mais complexo para a bancada feminina, que também é alvo de várias formas de ataque. “Toda vez que tem uma crise política, um acirramento das disputas, são os direitos das mulheres que viram vidraça e objeto de barganha”.
*Jane Fernandes, editora assistente da Revista AZMina, é jornalista formada pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Facom-UFBA) e pós-graduada em Marketing pela Unifacs. Na mídia impressa, atuou como repórter, chefe de reportagem e editora, dividindo sua trajetória entre os jornais A Tarde e Correio*; Ester Pinheiro é jornalista com mestrado em Estudos de Gênero pela Universidade Complutense de Madrid, faz cobertura de temas diversos com um recorte crítico de gênero para meios nacionais e internacionais
**Esta reportagem tem apoio do International Women’s Media Foundation (IWMF) e do Women’s Equality Center (WEC) através do programa Saúde reprodutiva, direitos e justiça nas Américas.
***Os Direitos Sexuais e Reprodutivos na Revista AzMina são uma pauta transversal. Essa matéria faz parte de uma série de reportagens especiais sobre o Lobby Antiaborto no Brasil.
Revista AzMina
Revista AzMina: Tecnologia e informação contra o machismo e pela igualdade de gênero, com recortes de raça e classe. Jornalismo independente para combater os diversos tipos de violência que atingem mulheres cis e trans, homens trans e pessoas não-binárias