O “guarda da esquina” ganha nome e endereço

Manifestante protesta contra os desmandos do governo brasileiro. Foto Hans Lucas via AFP

Incentivados por falas e ações do presidente, militantes transformam o discurso de ódio em prática e empurram o Brasil ladeira abaixo

Por Agostinho Vieira | ArtigoODS 16 • Publicada em 13 de setembro de 2022 - 09:14 • Atualizada em 30 de janeiro de 2024 - 14:56

Manifestante protesta contra os desmandos do governo brasileiro. Foto Hans Lucas via AFP

Há pouco mais de cinquenta anos, no dia 13 de dezembro de 1968, o então presidente Costa e Silva decidiu impor ao país um dos capítulos mais tristes da sua história. O Ato Institucional número 5 (AI-5), entre outras coisas, suspendia por dez anos os direitos políticos de qualquer cidadão, proibia manifestações, censurava previamente jornais, revistas, filmes, músicas e dava ao mandatário o poder de legislar por decretos. A única voz a se levantar contra as novas regras de exceção foi a do udenista e então vice-presidente Pedro Aleixo: “Presidente, o problema de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país. O problema é o guarda da esquina”, profetizou.

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A advertência de Pedro Aleixo, infelizmente, continua atual como nunca. E, tanto em 1968 quanto em 2022, ela não trata especificamente de guardas e de esquinas. Ela fala sobre o machista, o estuprador, o homofóbico, o preconceituoso, o autoritário, o truculento, o cruel e o desumano que habitam em cada um de nós. São duas as diferenças que separam o dezembro de 1968 do setembro de 2022. A primeira, óbvia: hoje não temos um AI-5. Não por falta de vontade do presidente da vez ou dos insistentes pedidos feitos  em cartazes que sonham com “tradição, família e propriedade”. O que falta são condições políticas, ainda. No lugar do Ato Institucional temos o discurso do ódio, o preconceito e as mentiras espalhadas nos palanques e nas redes sociais: “Vamos fuzilar a petralhada”.

A segunda diferença é que os “guardas da esquina” agora têm nome e endereço. Já tinham antes, é claro, mas o AI-5 e a censura impediam que se tornassem conhecidos. Hoje, o assassino truculento Jorge Jose da Rocha, o assassino cruel Rafael de Oliveira e o empresário desumano Cassio Cenali ganham destaque nos jornais:

Julho de 2022, Foz do Iguaçu – O agente penitenciário Jorge José da Rocha Guaranho invadiu a festa de aniversário de 50 anos do guarda municipal Marcelo Arruda aos gritos de “mito”, ameaçou os presentes e saiu. Voltou mais tarde e matou o aniversariante, que era militante do PT.

Julho de 2022, Brasília – O juiz federal Renato Borelli, que decretou a prisão do ex-ministro da Educação Milton Ribeiro, acusado de corrupção, foi alvo de um ataque. O carro do juiz foi atingido por fezes de animais, ovos e terra quando saia de casa em direção ao trabalho.

Setembro de 2022, Confresa (a 1.160 km de Cuiabá) – O agricultor Rafael de Oliveira, de 24 anos, confessou ter matado a facadas o colega de trabalho Benedito Cardoso dos Santos, de 44 anos, após uma briga política. Rafael, apoiador do atual presidente, tentou decapitar a vítima e ainda filmou o corpo.

Setembro de 2022, Itapeva, São Paulo – O empresário Cassio Cenali grava um vídeo humilhando e ameaçando a diarista Ilza Ramos Rodrigues: “Ela é Lula. A partir de hoje não tem mais marmita. A senhora peça para o Lula agora, beleza?”

Estes não são os únicos casos, certamente. Histórias semelhantes estão acontecendo neste momento em vários pontos do país. Em Goiás, na semana passada, um PM atirou em um fiel da Igreja Congregação Cristã por divergências políticas. A vítima teria cometido a insanidade de dizer que não achava certo um pastor recomendar que se votasse no candidato A ou B. Também na semana passada, o candidato a deputado federal pelo PSOL Guilherme Boulos foi ameaçado com uma arma enquanto fazia campanha no centro de São Paulo.

Em setembro de 2018, antes das eleições daquele ano, aqui no #Colabora, escrevi um artigo sobre essa mesma história do Pedro Aleixo, do guarda esquina e dos riscos que ameaçavam o nosso futuro. Passados quatro anos, posso dizer com sinceridade: errei, errei feio. Tudo foi muito pior do que o meu pavor pré-eleitoral foi capaz de imaginar. Falava sobre aquecimento global, Acordo de Paris, descarbonização da economia, o descaso com a Amazônia. Temas que sequer fizeram parte de qualquer discussão ou debate. Os “guardas da esquina” derrubaram quilômetros de floresta Amazônica sem nenhuma preocupação. Nada aconteceria e nada aconteceu.

No texto de 2018, eu perguntava: “Se um candidato se sente no direito de dizer que não vai estuprar uma deputada porque ela não merece, e de chamar um reconhecido torturador de herói, o que esperar do guarda da esquina? Se a Constituição não vale nada, por que respeitá-la?” Há quem diga que não existe grande diferença entre os candidatos, que muitos são igualmente ruins e radicais, faces de uma mesma moeda. Não é verdade. Há uma linha que não poderia e não deveria ser ultrapassada. Ela foi, e muito. Como diria a filósofa Hannah Arendt: “Vivemos tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam a esperança”.

Agostinho Vieira

Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Foi repórter de Cidade e de Política, editor, editor-executivo e diretor executivo do jornal O Globo. Também foi diretor do Sistema Globo de Rádio e da Rádio CBN. Ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1994, e dois prêmios da Society of Newspaper Design, em 1998 e 1999. Tem pós-graduação em Gestão de Negócios pelo Insead (Instituto Europeu de Administração de Negócios) e em Gestão Ambiental pela Coppe/UFRJ. É um dos criadores do Projeto #Colabora.

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