Aplicativo abre horizontes culturais para pessoas com deficiência

A adolescente Isabela Glycério com seu celular com o aplicativo Vem Cá: acesso a produções e eventos culturais para pessoas com deficiência (Foto: Divulgação / Escola de Gente)

Iniciativa premiada nacional e internacionalmente amplia recursos de acessibilidade de dispositivos móveis e promove 'match' entre eventos e usuários

Por Micael Olegário | ODS 10ODS 12 • Publicada em 15 de setembro de 2023 - 09:04 • Atualizada em 12 de outubro de 2023 - 21:10

A adolescente Isabela Glycério com seu celular com o aplicativo Vem Cá: acesso a produções e eventos culturais para pessoas com deficiência (Foto: Divulgação / Escola de Gente)

“Cheguei ao ponto de nem querer ir a eventos com minha família por não terem audiodescrição”, conta Isabela de Ipanema Almeida Glycerio, 14 anos, cega desde o nascimento. Moradora da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, Bela, como é chamada pela família, encontrou no aplicativo Vem Ca uma maneira de ter acesso a um universo de produções e eventos culturais, com os quais antes seu contato era limitado por conta da deficiência dos lugares e conteúdos. “O Vem Cá é fundamental para nós, pois, com ele, restabelecemos a inclusão na nossa família, garantindo a participação de todos juntos de forma completa”, comemora Verônica Oliveira de Almeida, mãe de Isabela.

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Premiado quatro vezes na Zero Project Conference, organizada pelas Nações Unidas (ONU), como um dos projetos mais inovadores do mundo em inclusão e acessibilidade, o Vem Ca foi criado em 2019 pela Escola de Gente, organização não governamental que atua com comunicação inclusiva. Em linhas gerais, o aplicativo funciona como uma plataforma onde pessoas com deficiência podem selecionar até 12 recursos de acessibilidade e buscar eventos ou produções culturais e artísticas que oferecem estes recursos. Entre as opções disponíveis estão: assento acessível, audiodescrição/guia acessível, banheiro acessível, elevador/rampa, gratuidade, legenda, Libras, Libras tátil, linguagem simples, piso tátil, publicações acessíveis e visita tátil.

tínhamos muita dificuldade de encontrar eventos como peças de teatro e exposições com acessibilidade para a Bela. O uso do Vem Cá foi um divisor de águas para Bela e nossa família

Verônica Oliveira de Almeida
Profissional de marketing

Um dos pontos que levou o Vem Ca a ser premiado em diferentes eventos e celebrado por Isabela e Verônica, como instrumento de transformação e porta para novos horizontes, é a forma como o aplicativo foi concebido e funciona. De acordo com o diretor de Planejamento e Gestão da Escola de Gente, Gabriel Ligabue, a iniciativa amplia os recursos dos sistemas operacionais de dispositivos móveis, sejam Android ou iOS.

Uma pessoa cega ao usar um celular possui acesso aos recursos de acessibilidade celular, no entanto, aponta Ligabue, esses recursos são limitados e não oferecem, por exemplo, a audiodescrição de imagens e animações. “A acessibilidade nativa, como a gente chama, é muito difícil de encontrar e o papel do Vem Cá é crescer e ampliar nesse sentido”, explica.

Ao contar com audiodescrição, com janelas de Libras em determinadas telas e um layout simplificado, o Vem Cá facilita o uso do aplicativo para pessoas com deficiência. Tudo isso, sem considerar o que Gabriel Ligabue define como possibilidade de “match” entre pessoas e eventos culturais e que é o objetivo do aplicativo.

Sobre esses elementos, o especialista lembra que a acessibilidade não atende apenas pessoas com deficiência, mas também refugiados que podem não entender muito bem um idioma e idosos, por exemplo. “O nosso entendimento é que todas as pessoas, independente de suas características pessoais, são seres humanos e, portanto, têm igual valor”, destaca Ligabue.

O aplicativo vive da acessibilidade das pessoas. Ele acontece se quem faz (eventos e conteúdos acessíveis) colocar ali. O Vem Cá é um meio, é preciso que as empresas alimentem a plataforma

Marcos Lima
Jornalista

O diretor da Escola de Gente lembra que o aplicativo também pode ser usado para buscar eventos com entrada gratuita. “Em um país com tal desigualdade, como tem o Brasil, a gratuidade também é uma forma de acessibilidade”, afirma. Atualmente, o Vem Ca já atingiu a marca de 17 mil downloads em todo o Brasil e conta com uma média de 600 pessoas usuárias recorrentes.

Recentemente, o aplicativo também foi vencedor do World Summit Awards Brasil 2023, nas categorias “Cultura e Patrimônio”, e na categoria especial de “Acessibilidades”, sendo selecionado para concorrer na etapa global da premiação, que busca promover os melhores e mais inovadores conteúdos digitais. Além disso, o Vem Cá foi considerado uma das iniciativas de destaque em acessibilidade na web durante o Link: Festival Digital de Acessibilidade, promovido em agosto pela Hand Talk, startup brasileira que atua como plataforma de tradução e interpretação de Libras (Língua Brasileira de Sinais).

Fotografia mostrando mão segurando celular, que está com a tela inicial do aplicativo Vem Cá aberta
O aplicativo Vem Ca na tela do celular: opções de acessibilidade e opções de eventos (Foto: Marcio Nunes / Divulgação)

Ponte entre pessoas e organizações

“Existem muitos espetáculos que você não aproveita da melhor forma, porque não tem acessibilidade”, afirma o jornalista Marcos Lima. Formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Marcos é palestrante e criador do canal “Histórias de cego”. Ele também foi um dos premiados no Link: Festival Digital de Acessibilidade, na categoria de Influencers de acessibilidade na web. Marcos participou do lançamento do Vem Cá em 2019, segundo ele, para que o aplicativo cresça e se consolide é essencial que entidades públicas e privadas divulguem seus eventos na plataforma.

“O aplicativo vive da acessibilidade das pessoas. Ele acontece se quem faz (eventos e conteúdos acessíveis) colocar ali. O Vem Cá é um meio, é preciso que as empresas alimentem a plataforma”. De acordo com Marcos, já há uma significativa parcela de eventos e conteúdos com acessibilidade e que ainda carecem de uma melhor divulgação. “Quando você não sabe, é como se não existisse”, acrescenta o jornalista.

Sobre sua experiência com o Vem Ca, a estudante Isabela Glycerio conta que o primeiro evento do qual ficou sabendo através da plataforma e participou, foi uma peça de teatro chamada “A Menina Kung-Fu”. “Era sobre a história de uma menina cega que queria aprender a lutar Kung-Fu, e os outros alunos videntes ficavam sendo preconceituosos, achando que ela nunca conseguiria lutar. Nessa peça, tive a maravilhosa audiodescrição feita pela Nara Monteiro”, relata a adolescente.

Antes de conhecer o aplicativo, Verônica conta que a filha preferia ficar em casa com os avós a ter de acompanhar um evento sem acessibilidade. “Até então, tínhamos muita dificuldade de encontrar eventos como peças de teatro e exposições com acessibilidade para a Bela”. Depois de começar a fazer o uso do aplicativo, a cultura também se tornou algo acessível para Isabela. “Já participamos de vários e a experiência é sempre fantástica”, afirma Verônica, formada em Administração e profissional da área de marketing. “O uso do Vem Cá foi um divisor de águas para Bela e nossa família”, acrescenta.

Fotografia colorida de auditório amplo com dois telões exibindo o aplicativo Vem Cá durante Zero Project Conference, em Viena, na Áustria
Apresentação do Vem Cá na Zero Project Conference, em Viena: premiação pela inovação em inclusão e acessibilidade (Foto: Divulgação)

Durante a pandemia, Gabriel Ligabue conta que a Escola de Gente sentiu a necessidade de acrescentar novas funcionalidades para o aplicativo. Inicialmente desenvolvido com recursos da Lei Rouanet de incentivo à cultura, a plataforma ganhou um banco de profissionais de acessibilidade. Através dele, pessoas com deficiência podem se cadastrar e ter seus currículos exibidos para diferentes empregadores.

Em breve, o Vem Ca também deve oferecer a possibilidade para que empresas e organizações possam anunciar vagas de emprego pelo aplicativo. “Uma das coisas que nós percebemos é que, quando uma empresa anuncia vaga para uma pessoa com deficiência, normalmente não anuncia de modo acessível e não atinge o principal interessado naquela vaga”, aponta Gabriel. Segundo ele, a ideia é ampliar ainda mais as funcionalidades do aplicativo e transformá-lo em uma praça pública virtual de interação entre pessoas com deficiência e pessoas típicas (como são chamadas as “pessoas sem deficiência”).

De acordo com o diretor de planejamento e gestão da Escola de Gente, o principal desafio enfrentado para que essa meta se concretize é o financiamento. Por se tratar de um aplicativo gratuito, o Vem Ca não pode ser monetizado e gera uma despesa anual de aproximadamente R$500 mil, recursos que muitas vezes não encaixam no orçamento de uma organização sem fins lucrativos como a Escola de Gente. “Apesar de eu poder ter um cronograma plurianual do que precisamos fazer, não temos o orçamento para colocar em prática”, explica Gabriel Ligabue. Além disso, todas as novas funcionalidades implementadas sempre passam pela avaliação de uma equipe de consultores que inclui pessoas com deficiências, entre outras diversidades de gênero e raça.

 

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Escreve sobre temas ligados a questões ambientais e sociais, educação e acessibilidade.

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