ODS 1
Sem direitos: sem Bolsa Família nem aposentadoria
Roberta da Silva está entre os 8% dos moradores do Sudeste que não têm nenhum benefício social dos governos
Roberta da Silva está entre os 8% dos moradores do Sudeste que não têm nenhum benefício social dos governos
O Sudeste é a região com menos sem direitos no país. Entre os cinco que deveriam ser assegurados, o direito à proteção social é o menos ameaçador na região: só 8,1% dos moradores dos quatro estados que a compõem estão excluídos dele. E foi justamente lá onde encontramos Roberta Ribeiro da Silva, de 40 anos, que vive com o neto de 6 anos, Davi Gustavo, na Favela de Antares, na Zona Oeste do Rio. Ela não recebe nenhuma bolsa social e a família tem renda domiciliar per capita de menos de meio salário-mínimo por mês.
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Desempregada, ela vende água no sinal em Santa Cruz. Compra 12 garrafas, “com direito a gelo”, por R$ 6 e revende cada uma por R$1, o que lhe garante um lucro de 50 centavos por unidade. Por mês, consegue entre R$ 400 e R$ 450. Antes disso, era vendedora de uma barraca de frutas em Santa Cruz: ganhava R$ 600, mas tinha que pagar R$ 200 para tomarem conta do seu neto. Achou mais vantajosa a venda de água, embora saiba que a incerteza a rondará com o término do verão, quando a procura pelo produto nas ruas cai. Roberta representa a categoria sem acesso à proteção social pela classificação do IBGE. Ela se soma aos outros sem direitos da nossa série de reportagens: sem direito à moradia adequada, à comunicação, à educação, ao saneamento e à vida.
A única vez que teve carteira assinada foi numa empresa de limpeza prestadora de serviços para o hospital Dom Pedro II, em Santa Cruz, onde ficou por 11 meses. O motivo da sua saída é recorrente na gestão pública de hospitais: o contrato foi rompido depois que a empresa foi acusada de desviar mais de R$ 48 milhões dos cofres públicos. Também já foi catadora no Lixão de Gramacho, que já foi considerado o maior da América Latina, desativado em 2012. “Só nunca roubei nem me prostituí”, conta a moradora da favela de Antares, que é evangélica e frequenta a Assembleia de Deus.
A comunidade teve início em 1974, como conjunto habitacional para moradores de favelas removidas, na época uma política oficial do Estado. A ideia é que fosse uma situação transitória, mas lá eles ficaram até hoje. A área foi crescendo e hoje há poucos traços do que teria sido um conjunto habitacional. Na área mais pobre, existe uma favela dentro da favela, denominada de Portelinha, batizada em homenagem à novela “Duas Caras”, da TV Globo, que foi ao ar em 2007.
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Veja o que já enviamosQuem nos mostra o local é Leonardo Ribeiro de Souza, vice-presidente da Associação dos Moradores e vigia em uma obra da prefeitura à noite. Ele se coloca à disposição dos habitantes, pedindo que o procurem. O abandono é visível, com valões a céu aberto e com barracos sem banheiro nem cozinha, construídos com restos de móveis martelados. Há apenas algumas casas emergenciais feitas pela ONG Teto, que faz mutirões com ajuda de voluntários para erguê-las em um fim de semana. Léo faz o que pode para melhorar as condições de vida em Antares. Neste momento, está envolvido com a criação de hortas comunitárias com restos de pneu servindo como vasos.
Roberta largou os estudos na quinta série, quando engravidou de sua primeira filha, aos 16 anos. Teve mais um, com 19 anos. Os dois lhe deram, ao todo, três netos. Ao abandonar a escola, enterrou seu sonho, que era entrar para a Marinha. Para complementar a renda, tentou se cadastrar no Bolsa Família. “Quando souberam que eu era a avó, e não a mãe do meu neto, me mandaram para a Vara de Infância, dizendo que eu tinha que obter a guarda dele”, explica. “Mas a mãe dele faz tudo que não presta. Ela desapareceu há um ano. Não tinha como me passar a guarda”, diz. E o pai? “Está preso por bater em mulher e não pagar pensão”.
Os eletrodomésticos em sua casa contrastam com sua situação de penúria. Ela tem geladeira, dois ventiladores, fogão, TV e tanquinho. Sua casa tem três cômodos e mais um banheiro. Tem uma cama de casal e uma de solteiro. Ela reconstitui a origem de cada peça. Um dos ventiladores foi montado por ela, juntando peças que encontrou “Achei uma carcaça, arrumei uma hélice e botei para girar”, conta. O fogão foi doado pelo ex-patrão, dono da barraca de frutas.
A geladeira ela conseguiu comprar quando foi demitida da empresa de limpeza. A TV foi presente para o neto, quando nasceu. Sem internet ou “gato net” nem dinheiro para comprar o aparelho conversor para a TV digital, eles costumam assistir a filmes em DVDs. “A gente vê os mesmos filmes, os mesmos desenhos, mas vê”, diz ela, com um sorriso nos lábios, driblando a própria sina. Por último, e o tanquinho? Ela viu um menino vendendo a peça por R$ 200. Ofereceu R$ 50 à vista e o resto foi pagando as prestações. Roberta nunca viveu com o pai de seus filhos. Começou a construir a casa com mil tijolos dados de presente pela madrinha e foi construindo o resto aos poucos.
Com os R$ 400 mensais, ela compra uma cesta básica por R$ 250: tem arroz, feijão, açúcar e óleo. “Com o resto, compro leite, Mucilon, Nescau, coisas que criança gosta”, prossegue. “Roupa? A gente improvisa. No Natal, deram um tênis para o Davi e uma amiga deu uma sandália”. E nas horas de lazer? “Ou eu durmo ou fico vendo TV ou fico com minha comadre”, conta. Na saída, vejo um carro estacionado em seu terreno. “É de uma amiga que não tem garagem”, explica.
Compensação para a desigualdade
Coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa) e pesquisador com foco em desigualdade social, educação e mercado de trabalho, o economista Naércio Menezes Filho defende os programas de transferência de renda, como o Bolsa Família. “Eles são essenciais para compensar a desigualdade. Muitos não tiveram o acesso à educação no passado”, sustenta Naércio, um dos co-autores do artigo “Uma avaliação dos impactos macroeconômicos e sociais de programas de transferência de renda nos municípios brasileiros“, publicado na Revista Brasileira de Economia, da FGV.
O estudo avaliou os efeitos do Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada (que contempla idosos e pessoas com deficiência) – os dois maiores programas brasileiros de transferência de renda – sobre indicadores municipais de atividade econômica, educação e saúde. “Concluímos que eles têm impacto bastante forte sobre a economia local. Quando chega o Bolsa Família, ele gera consumo. O consumo acaba gerando empregos e aumentando a arrecadação com impostos”, sustenta. O artigo conclui que os dois programas estimulam o PIB e a renda per capita locais, mas verificou que o efeito do Bolsa Família afeta positivamente também os indicadores de educação e saúde, já que, entre suas condicionantes, está a frequência escolar e vacinação das crianças.
Apesar dos resultados positivos de tais programas, o pesquisador ainda enxerga dois problemas: as discrepâncias regionais e o valor dos benefícios. A região com o maior PIB brasileiro – o Sudeste – é a que está mais contemplada pela proteção social do Estado. Lá, somente 8,1% estão à margem dela. Nas regiões mais pobres, o Nordeste e o Norte, aumenta para 28,1% e 27,4% o índice de excluídos de tais programas e da Previdência Social. “Seria preciso haver uma busca mais ativa por parte das prefeituras em cadastrar as pessoas que se encaixam a receber tais programas”, aponta. “Mas sabemos que é difícil em zonas rurais, onde as prefeituras são menos capacitadas. No Norte, ainda há dificuldade de locomoção, tendo em vista ser uma região de floresta e muitos rios”.
No Brasil, não há linha oficial de pobreza, que seria o valor necessário para as famílias viverem dignamente. Existem linhas de pobreza administrativas, como o Programa Brasil sem Miséria, que considera a renda per capita de R$ 85 como pobreza extrema e R$ 170 como pobreza. Há Há também a linha do Benefício de Prestação Continuada, definida como o rendimento domiciliar per capita abaixo de 1⁄4 de salário mínimo. O programa contempla idosos e pessoas com deficiência.
Antes de encontrarmos Roberta, nossa personagem seria Neli Pereira, de 53 anos, mãe de três filhos – outros três foram assassinados pelo tráfico e pela polícia – e que cria um jovem de 15 anos. Sem aposentadoria nem trabalho fixo, ela sobrevive conseguindo a isenção da taxa e o agendamento da emissão de documentos para a população da favela no posto mais próximo do Detran ou no Poupa Tempo da Central do Brasil. “Cobro R$ 2 por cada agendamento, mas muitos dizem que vão voltar para me pagar e não pagam. Mas eu continuo fazendo porque gosto de ajudar”, revela ela, cujo sonho era ser assistente social. “As pessoas não têm paciência de esperar para serem atendidas pelo telefone. E a lan house cobra R$ 7”, revela Neli. Além dessa renda, vende garrafas pet para reciclagem por R$ 0,10 e latinhas de alumínio por R$ 3,80 o quilo. Juntando as duas fontes, elas não passam de R$ 300 por mês, o que daria R$ 150 de renda per capita familiar.
Neli está longe da idade de se aposentar e não conta com a ajuda nem dos ex-maridos nem dos filhos. Ela explica por que. “Meus três ex batiam em mim quando bebiam. O último enfiou minha cara na frigideira”, revela. “Hoje, se você apanha, separa. Na época, minha mãe dizia ‘Ruim com ele, pior sem ele’”. Já os três filhos que sobreviveram foram presos por envolvimento com o tráfico e só a filha “se endireitou”. Hoje “vende verdura, lençóis, antena da Claro”, conta. O filho que ela cria só estuda, por determinação dela. “Peguei para criá-lo com 4 anos. A mãe era usuária de drogas”.
Então por que Neli escapou de ser nossa personagem? Porque conseguiu, em novembro de 2018, se cadastrar no Bolsa Família e passou a receber R$ 90 mensais.
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Adriana Barsotti
É jornalista com experiência nas redações de O Estado de S.Paulo, IstoÉ e O Globo, onde ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo com a série de reportagens “A história secreta da Guerrilha do Araguaia”. Pelo #Colabora, foi vencedora do Prêmio Vladimir Herzog, em 2019, na categoria multimídia, com a série "Sem Direitos: o rosto da exclusão social no Brasil", em um pool jornalístico com a Amazônia Real e a Ponte Jornalismo. Professora Adjunta do Instituto de Arte e Comunicação Social (Iacs), na Universidade Federal Fluminense (UFF), é autora dos livros “Jornalista em mutação: do cão de guarda ao mobilizador de audiência” e "Uma história da primeira página: do grito no papel ao silêncio no jornalismo em rede". É colaboradora no #Colabora e acredita (muito!) no futuro da profissão.