ODS 1
Governo investe menos de R$ 5 por dia em crianças e adolescentes
Estudo do IPEA revela que, entre 2016 e 2019, país alocou apenas 3% do orçamento em uma parcela da população que deveria ser tratada com ‘absoluta prioridade’
Não há revelação mais clara da alma de uma sociedade do que a forma como ela trata as suas crianças. Poética e verdadeira, a frase de Nelson Mandela, Nobel da Paz, já foi dita, escrita e repetida milhares de vezes. Mas, raramente, foi ouvida, assimilada e posta em prática como deveria. Um estudo detalhado feito pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), em parceria com o Unicef, traduziu em números o valor que a sociedade brasileira vem dando às crianças, aos adolescentes e aos jovens. Entre 2016 e 2019, pouco mais de 3% do Orçamento Geral da União (OGU), cerca de R$ 90 bilhões, foram gastos ou investidos nesse segmento da população. Quando se divide o montante pelos cerca de 51 milhões de brasileiros e brasileiras menores de 18 anos chegamos à inacreditável soma de R$ 5 por dia. Equivalente a uma passagem de trem, de ida, sem volta. Inferior à quantia que marca a linha de extrema pobreza para países de baixa renda, que é de US$ 1,90 por dia.
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Os números do levantamento revelam não apenas o rotineiro pouco caso com crianças e adolescentes no Brasil, mas também a falta de transparência e o desrespeito à Constituição. O artigo 227 da Carta de 1988 é o único que usa a expressão “absoluta prioridade” para tratar de um determinado tema: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de coloca-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Ou seja, se fosse possível fazer uma fila única com os 220 milhões de brasileiros, não há dúvida nenhuma sobre quem estaria na frente da fila e quem deveria ser priorizado.
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Veja o que já enviamosSobre a falta de transparência e a dificuldade de achar as crianças no OGU, a economista Enid Rocha, doutora em ciência sociais e uma das responsáveis pela pesquisa, conta que o trabalho foi árduo e envolveu vários setores e especialistas do IPEA: “Foram analisadas cerca de quatro mil rubricas orçamentárias para se chegar a esse valor. Um trabalho intersetorial enorme, para identificar, linha por linha, em todos os ministérios, as ações e projetos que beneficiam de alguma forma as crianças e os adolescentes”, explica.
Dos R$ 90 bilhões investidos, em média, a cada ano, cerca de R$ 78 bilhões ou 87% estão concentrados nos ministérios da Educação, Saúde e Assistência Social e Combate à Pobreza, leia-se Bolsa Família. Os técnicos do IPEA dividiram os montantes em três tipos: ampliados, específicos e indiretos. Os ampliados são os investimentos feitos em educação e saúde, por exemplo, que, de forma ampliada, beneficiam crianças e adolescentes. Os específicos, como o nome diz, são os que atingem diretamente esse segmento. E os indiretos são os programas de transferência de renda que, apesar de focarem nas famílias, têm um impacto muito grande na vida dos jovens.
Os dados da pesquisa foram apresentados durante o Seminário “Políticas públicas para a garantia dos direitos na primeira infância”, promovido pela Rede Nacional Primeira Infância (RNPI). Durante os debates, Enid Rocha lembrou que, antes da pandemia, quase um quarto dessa população de crianças e adolesceste (13 milhões de indivíduos) já estava abaixo da linha de pobreza. Dados do IPEA mostram que as famílias com crianças e adolescentes foram as mais impactadas pela crise sanitária, pois ficaram sem acesso a serviços básicos, como aulas presenciais, consultas médicas, programas de imunização e creches. Sem falar no aumento da violência doméstica. Logo, é de se esperar que as análises futuras, pós-pandemia, venham com dados ainda mais alarmantes.
O custo da inação para crianças
Quando os legisladores, apoiados pela sociedade civil, escreveram o artigo 227 da Constituição, aquele da “absoluta prioridade”, já sabiam que, além de ser o certo a se fazer, era o caminho que poderia maximizar os resultados dos investimentos públicos. O americano James Heckman, Nobel de Economia e estudioso do assunto, assegura que, cada dólar investido na primeira infância, de 0 a 6 anos, dará um retorno de 14 centavos por ano. É o melhor investimento que alguém pode fazer na vida: “Até os 5, 6 anos, a criança aprende em ritmo espantoso, e isso será valioso para toda a vida. Infelizmente, é uma fase que costuma ser negligenciada. Famílias pobres não recebem orientação sobre como enfrentar o desafio de criar um bebê, faltam boas creches e pré-escolas e, sobretudo, o empurrão certo na hora certa”, explicou Heckman em entrevista à revista Veja, em 2017.
Ok. Temos um bom artigo na Constituição e base científica que justiça a “absoluta prioridade”. Mas não estamos fazendo o dever de casa. E daí? Há alguns anos, os economistas Daniel Santos e Jaqueline Natal, da USP, vêm pesquisando o custo de não se fazer nada. A pergunta básica é: o que o Brasil perde por não investir na primeira infância? Os pesquisadores trabalharam com três hipóteses. No primeiro cenário não seriam feitas grandes mudanças em relação a realidade que temos hoje. Seria, basicamente, um custo de manutenção. No modelo 2 haveria um investimento maior em infraestrutura. Já na terceira hipótese haveria um aporte maior de recursos e a garantia de que todas as crianças do país teriam oportunidades iguais de aprendizado e desenvolvimento.
O resultado é espantoso. Por não investir na primeira infância como deveria, o Brasil vem deixando de ter um crescimento adicional e anual do PIB que varia de 2 a 5 pontos percentuais. Algo entre R$ 40 bilhões e R$ 100 bilhões por ano. A análise considera apenas os benefícios econômicos, os ganhos de renda futuros de cada uma dessas crianças. Sem levar em conta todos os outros benefícios para o país, que são muitos. Surpreso? Imagino que não. Como disse Mandela, isso diz muito sobre a alma da nossa sociedade.
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Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Foi repórter de Cidade e de Política, editor, editor-executivo e diretor executivo do jornal O Globo. Também foi diretor do Sistema Globo de Rádio e da Rádio CBN. Ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1994, e dois prêmios da Society of Newspaper Design, em 1998 e 1999. Tem pós-graduação em Gestão de Negócios pelo Insead (Instituto Europeu de Administração de Negócios) e em Gestão Ambiental pela Coppe/UFRJ. É um dos criadores do Projeto #Colabora.