ODS 1
RioéRua – Harmonia na resistência negra
No mês da Consciência Negra, lembranças da Revolta da Vacina, liderada por Prata Preta, capoeirista e adepto do candomblé
Neste mês de celebração da Consciência Negra, completou-se 125 anos da Revolva da Vacina, uma insurreição popular no Rio de Janeiro para contestar a vacinação obrigatória contra a varíola. As manifestações foram violentamente reprimidas pelo governo e o foco da resistência foi na Praça da Harmonia, onde a comunidade negra da Pequena África – Santo Cristo, Saúde, Gamboa – montou uma barricada sob a liderança do estivador Horácio José da Silva, capoeirista conhecido como Prata Petra – hoje nome de bloco de Carnaval da região.
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Veja o que já enviamosVoltemos no tempo para novembro de 1904, apenas 15 anos após o golpe militar que derrubou a monarquia, 16 de depois do fim oficial da escravidão. O presidente Rodrigues Alves nomeou como prefeito do Distrito Federal, o engenheiro Francisco Pereira Passos, encarregado de fazer uma reforma urbana no Rio de Janeiro, que sofria com o crescimento desordenado, a falta de saneamento e uma consequente série de surtos de doenças. Em janeiro de 1904, pouco mais de um ano após assumir, Pereira Passos começou sua maior obra – a construção da Avenida Central, futura Rio Branco – de onde foram removidos à força centenas de famílias de trabalhadores pobres, que moravam em sobrados, cortiços e cabeças-de-porco. O bota-abaixo do prefeito poida ser sucesso entre a elite, mas era alvo do descontentamento popular.
No ano anterior, 1903, assumira a Diretoria-Geral de Saúde Pública, o médico, bacteriologista e sanitarista Oswaldo Cruz, com a missão de melhorar o saneamento e acabar com a epidemias de doença no Distrito Federal: febre amarela, malária, tifo, peste bubônica e varíola. O jovem Oswaldo Cruz, 32 anos em 1904, tomou medidas radicais: criou um exército de mata-mosquitos, com autoridade par a invadir casas atrás de insetos transmissores; na caçada aos ratos transmissores da peste, o governo passou a pagar pelos roedores o que causou conflitos nas ruas e mais invasões de casas, não só pelos caçadores mas também pelos agora já temidos agentes da saúde pública – naturalmente, como sempre na história deste país, as casas invadidas eram as de pessoas pobres.
Mas a medida sanitária mais polêmica de Oswaldo Cruz foi tornar obrigatória a vacinação contra varíola – o que fez com que parte da alta sociedade ficasse do mesmo lado dos pobres: a obrigatoriedade da vacina era para todos e vinha garantida por medidas punitivas para quem recusasse. A apresentação de comprovantes de vacinação passava a ser condição para matrículas em escolas, admissões em empresas e no serviço público e até casamentos. Estamos em 1904: o próprio princípio da vacinação era polêmico. Pais ricos e pobres rejeitavam a ideia de ver suas mulheres e filhas mostrarem o braço ou a virilha para estranhos para serem vacinadas. Entre os negros adeptos do candomblé, havia, além de uma desconfiança dos médicos brancos, a certeza que Omulu, orixá da saúde e também da peste, era o responsável pela doença e só ele podia promover a cura.
Nunca é só pelos 20 centavos ou pela vacina: havia insatisfação com o governo com a alta do custo de vida, a crise habitacional com as remoções e disputas políticas – Rodrigues Alves era o terceiro presidente civil e o terceiro presidente paulista, o terceiro representante da elite cafeicultora no comando da jovem República do Brasil. Em 10 de novembro de 1904, a recém-criada Liga contra a Vacinação Obrigatória organizou uma manifestação e o pau quebrou no Largo de São Francisco: estudantes enfrentaram as forças policiais, apanharam e muitos foram presos. No dia seguinte, o motim se espalhou pelo Centro da Cidade: bondes incendiados, trilhos arrancados, lojas depredadas, linhas telefônicas cortadas iluminação pública destruída. Os conflitos se estenderam pela região da Pequena África com resultados semelhantes: a sede do Moinho Fluminense -primeira fábrica de moagem de trigo do país, inaugurado anos antes – foi depredada pelos manifestantes,
No meio da confusão, com Exército e Marinha chamados para socorrer a polícia porque até delegacias haviam sido depredadas e invadidas, desencadeou-se uma tentativa de golpe, tramado pelo Clube Militar e liderado pela Escola Militar da Praia Vermelha. Os golpistas organizados levaram chumbo das forças governistas e a repressão contra os revoltosos desorganizados – trabalhadores e estudantes – aumentou. Àquela altura, Prata Preta já havia organizado uma barricada em torno da Praça da Harmonia, com a madeira retirada dos restos da demolição do antigo Mercado da Harmonia, inaugurado em 1857 e demolido 44 anos depois. Na esquina da ruas Sacadura Cabral e Pedro Ernesto, os amotinados de Prata Preta montaram um falso canhão: um poste de luz derrubado que, de longe, parecia uma arma de guerra.
Após a derrota dos golpistas, a agitação começou a diminuir e a Praça da Harmonia tornou-se o centro da resistência da Revolta da Vacina – eram, ali, quase todos negros, todos pobres. Uma semana depois do começo dos conflitos, houve o ataque final de militares e policiais às barricadas da praça – a história registra que Prata Preta, armado com revólveres e navalhas, matou um soldado e mandou outros três para o hospital antes de ser preso. No comando da resistência, já era chamado de Zumbi da Saúde. Horácio José da Silva foi deportado para o Acre e nunca mais se ouviu falar dele. A história oficial da Revolta da Vacina registra 23 mortos, 67 feridos e 950 presos – muitos deles com o mesmo destino de Prata Preta, o Acre. Depois da derrota dos revoltosos, a passou por uma reforma, ganhou um quartel do Polícia Militar e foi batizada como Praça Coronel Assunção, em homenagem a herói da Guerra da Paraguai e ex-comandante da corporação.
No mês da Consciência Negra, recordar é preciso: em 1904, a capoeira era proibida por lei, o culto às religiões africanas também. Resistir também: ninguém sabe que a Praça da Harmonia, ainda hoje com os prédios do Moinho Fluminense (de 1887) e do quartel da PM (de 1908), tem outro nome, pois o que vale é o nome escolhido pela população. Prata Preta virou nome de bloco, é lembrado anualmente – suas barricadas e seu canhão falso já viraram alegorias na festa. Se Zumbi é referência de Consciência Negra pelo resistência e organização do Quilombo dos Palmares do século XVII, o capoeirista Prata Preta é um símbolo carioca negro, de uma cidade que resiste ao autoritarismo ao cultivar o melhor de sua história e sua cultura.
Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade