RioéRua – Harmonia na resistência negra

O antigo prédio do Moinho Fluminense, depredado na Revolta da Vacina, mas ainda de pé na Praça da Harmonia: memórias de uma insurreição (Foto: Oscar Valporto)

No mês da Consciência Negra, lembranças da Revolta da Vacina, liderada por Prata Preta, capoeirista e adepto do candomblé

Por Oscar Valporto | ODS 11 • Publicada em 18 de novembro de 2019 - 10:18 • Atualizada em 18 de novembro de 2019 - 11:52

O antigo prédio do Moinho Fluminense, depredado na Revolta da Vacina, mas ainda de pé na Praça da Harmonia: memórias de uma insurreição (Foto: Oscar Valporto)
O antigo prédio do Moinho Fluminense, depredado na Revolta da Vacina, mas ainda de pé na Praça da Harmonia: memórias de uma insurreição (Foto: Oscar Valporto)
O antigo prédio do Moinho Fluminense, depredado na Revolta da Vacina, mas ainda de pé na Praça da Harmonia: memórias de uma insurreição (Foto: Oscar Valporto)

Neste mês de celebração da Consciência Negra, completou-se 125 anos da Revolva da Vacina, uma insurreição popular no Rio de Janeiro para contestar a vacinação obrigatória contra a varíola. As manifestações foram violentamente reprimidas pelo governo e o foco da resistência foi na Praça da Harmonia, onde a comunidade negra da Pequena África – Santo Cristo, Saúde, Gamboa – montou uma barricada sob a liderança do estivador Horácio José da Silva, capoeirista conhecido como Prata Petra – hoje nome de bloco de Carnaval da região.

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Voltemos no tempo para novembro de 1904, apenas 15 anos após o golpe militar que derrubou a monarquia, 16 de depois do fim oficial da escravidão. O presidente Rodrigues Alves nomeou como prefeito do Distrito Federal, o engenheiro Francisco Pereira Passos, encarregado de fazer uma reforma urbana no Rio de Janeiro, que sofria com o crescimento desordenado, a falta de saneamento e uma consequente série de surtos de doenças. Em janeiro de 1904, pouco mais de um ano após assumir, Pereira Passos começou sua maior obra – a construção da Avenida Central, futura Rio Branco – de onde foram removidos à força centenas de famílias de trabalhadores pobres, que moravam em sobrados, cortiços e cabeças-de-porco. O bota-abaixo do prefeito poida ser sucesso entre a elite, mas era alvo do descontentamento popular.

No ano anterior, 1903, assumira a Diretoria-Geral de Saúde Pública, o médico, bacteriologista e sanitarista Oswaldo Cruz, com a missão de melhorar o saneamento e acabar com a epidemias de doença no Distrito Federal: febre amarela, malária, tifo, peste bubônica e varíola. O jovem Oswaldo Cruz, 32 anos em 1904, tomou medidas radicais: criou um exército de mata-mosquitos, com autoridade par a invadir casas atrás de insetos transmissores; na caçada aos ratos transmissores da peste, o governo passou a pagar pelos roedores o que causou conflitos nas ruas e mais invasões de casas, não só pelos caçadores mas também pelos agora já temidos agentes da saúde pública – naturalmente, como sempre na história deste país, as casas invadidas eram as de pessoas pobres.

Batalhão da PM na Praça da Harmonia: inaugurado em 1908 na praça reformada que havia sido batizada com nome que nunca pegou (Foto: Oscar Valporto)
Batalhão da PM na Praça da Harmonia: inaugurado em 1908 na praça reformada que havia sido batizada com nome que nunca pegou (Foto: Oscar Valporto)

Mas a medida sanitária mais polêmica de Oswaldo Cruz foi tornar obrigatória a vacinação contra varíola – o que fez com que parte da alta sociedade ficasse do mesmo lado dos pobres: a obrigatoriedade da vacina era para todos e vinha garantida por medidas punitivas para quem recusasse. A apresentação de comprovantes de vacinação passava a ser condição para matrículas em escolas, admissões em empresas e no serviço público e até casamentos. Estamos em 1904: o próprio princípio da vacinação era polêmico. Pais ricos e pobres rejeitavam a ideia de ver suas mulheres e filhas mostrarem o braço ou a virilha para estranhos para serem vacinadas. Entre os negros adeptos do candomblé, havia, além de uma desconfiança dos médicos brancos, a certeza que Omulu, orixá da saúde e também da peste, era o responsável pela doença e só ele podia promover a cura.

Nunca é só pelos 20 centavos ou pela vacina: havia insatisfação com o governo com a alta do custo de vida, a crise habitacional com as remoções e disputas políticas – Rodrigues Alves era o terceiro presidente civil e o terceiro presidente paulista, o terceiro representante da elite cafeicultora no comando da jovem República do Brasil. Em 10 de novembro de 1904, a recém-criada Liga contra a Vacinação Obrigatória organizou uma manifestação e o pau quebrou no Largo de São Francisco: estudantes enfrentaram as forças policiais, apanharam e muitos foram presos. No dia seguinte, o motim se espalhou pelo Centro da Cidade: bondes incendiados, trilhos arrancados, lojas depredadas, linhas telefônicas cortadas iluminação pública destruída. Os conflitos se estenderam pela região da Pequena África com resultados semelhantes: a sede do Moinho Fluminense -primeira fábrica de moagem de trigo do país, inaugurado anos antes – foi depredada pelos manifestantes,

No meio da confusão, com Exército e Marinha chamados para socorrer a polícia porque até delegacias haviam sido depredadas e invadidas, desencadeou-se uma tentativa de golpe, tramado pelo Clube Militar e liderado pela Escola Militar da Praia Vermelha. Os golpistas organizados levaram chumbo das forças governistas e a repressão contra os revoltosos desorganizados – trabalhadores e estudantes – aumentou. Àquela altura, Prata Preta já havia organizado uma barricada em torno da Praça da Harmonia, com a madeira retirada dos restos da demolição do antigo Mercado da Harmonia, inaugurado em 1857 e demolido 44 anos depois. Na esquina da ruas Sacadura Cabral e Pedro Ernesto, os amotinados de Prata Preta montaram um falso canhão: um poste de luz derrubado que, de longe, parecia uma arma de guerra.

Em frene ao coreto, garoto brinca no busto do Coronel Assunção, na Praça da Harmonia, hoje local de concentração do bloco Prata Preta, homenagem líder da Revolta da Vacina (Foto: Oscar Valporto)
Em frene ao coreto, garoto brinca no busto do Coronel Assunção, na Praça da Harmonia, hoje local de concentração do bloco Prata Preta, homenagem líder da Revolta da Vacina (Foto: Oscar Valporto)

Após a derrota dos golpistas, a agitação começou a diminuir e a Praça da Harmonia tornou-se o centro da resistência da Revolta da Vacina – eram, ali, quase todos negros, todos pobres. Uma semana depois do começo dos conflitos, houve o ataque final de militares e policiais às barricadas da praça – a história registra que Prata Preta, armado com revólveres e navalhas, matou um soldado e mandou outros três para o hospital antes de ser preso. No comando da resistência, já era chamado de Zumbi da Saúde. Horácio José da Silva foi deportado para o Acre e nunca mais se ouviu falar dele. A história oficial da Revolta da Vacina registra 23 mortos, 67 feridos e 950 presos – muitos deles com o mesmo destino de Prata Preta, o Acre. Depois da derrota dos revoltosos, a passou por uma reforma, ganhou um quartel do Polícia Militar e foi batizada como Praça Coronel Assunção, em homenagem a herói da Guerra da Paraguai e ex-comandante da corporação.

No mês da Consciência Negra, recordar é preciso: em 1904, a capoeira era proibida por lei, o culto às religiões africanas também. Resistir também: ninguém sabe que a Praça da Harmonia, ainda hoje com os prédios do Moinho Fluminense (de 1887) e do quartel da PM (de 1908), tem outro nome, pois o que vale é o nome escolhido pela população. Prata Preta virou nome de bloco, é lembrado anualmente – suas barricadas e seu canhão falso já viraram alegorias na festa. Se Zumbi é referência de Consciência Negra pelo resistência e organização do Quilombo dos Palmares do século XVII, o capoeirista Prata Preta é um símbolo carioca negro, de uma cidade que resiste ao autoritarismo ao cultivar o melhor de sua história e sua cultura.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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