ODS 1
Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares. Conheça as reportagens do Projeto Colabora guiadas pelo ODS 1.
Veja mais de ODS 1Às vésperas do mês da Consciência Negra, o Rio ganhou três novas estações de VLT – da Linha 3 que, finalmente, começou a cruzar a Avenida Marechal Floriano em direção à Central do Brasil. Os nomes das estações remetem às raízes africanas desta cidade: Santa Rita/Pretos Novos, Camerino/Rosas Negras, Cristiano Otono/Pequena África. Infelizmente, a celebração do mês – que culmina no Dia Nacional da Consciência Negra, 20 de novembro, data da morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, em 1695 – foi ignorada pelo prefeito Marcelo Crivella, mais preocupado com o calendário eleitoral, que o levou a entrar em acordo com concessionário do VLT, que chamara de “porcaria” meses atrás, a um ano das eleições municipais. Nem o prefeito, na inauguração do dia 26, nem a prefeitura, em qualquer manifestação, destacaram a herança africana que batiza as estações. Ela mereceu apenas registros burocráticos no material de divulgação.
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A própria construção dessa Linha 3 passou a fazer parte da saga de mais de 300 anos de escravidão do Brasil e do Rio de Janeiro, o maior porto do tráfico negreiro do mundo por onde desembarcaram, desde o século XVI, pelo menos dois milhões de crianças, mulheres e homens escravizados na África. O primeiro porto na cidade ficava na Praia do Peixe (atual Praça XV). Os escravizados, que passaram a chegar em número cada vez maior a partir do final do século XVII, eram levados para serem vendidos no mercado da Rua Direita (atual Primeiro de Março). Neste período, os muitos mortos na travessia ou logo após a chegada eram sepultados perto da Capela de Santa Rita, templo próximo ao mercado. Até 1774, foi ali na região do hoje Largo de Santa Rita o primeiro cemitério dos pretos novos – os recém-chegados da África. Foi também esta uma das razões pelas quais a construção da Linha 3 teve consultoria arqueológica. Foi também por isso que não foi surpresa a descoberta de fragmentos de ossos humanos e objetos de porcelana, vidro e cerâmica durante a obra.
A descoberta provocou a paralisação das obras por cinco meses diante do impasse entre arqueólogos, que desejavam escavações e remoção, e integrantes dos entidades do Movimento Negro que defenderam a preservação dos restos mortais onde haviam sido enterrados seus ancestrais. A negociação foi mediada pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e acabou prevalecendo a decisão de cancelar a pesquisa no Largo de Santa Rita e não permitir o salvamento arqueológico dos esqueletos humanos durante a instalação dos trilhos do VLT. As obras tiveram prosseguimento e ficou acertado que as estações receberiam denominações ligadas à herança africana e que a área do cemitério ganharia algum tipo de marcação paisagística. A parte do batismo das estações – por conta da concessionária – está valendo; a demarcação do cemitério, por conta dos órgãos públicos, ainda não aconteceu.
A estação Santa Rita/Pretos Novos fica logo depois do largo da igreja e do antigo cemitério. É a primeira da Marechal Floriano; a segunda – Camerino/Rosas Negras – fica logo depois da esquina com a Camerino. Também houve descobertas arqueológicas naquela região sem a mesma polêmica: arqueólogos encontraram estruturas da antiga Igreja de São Joaquim, erguida em 1758 e demolida em 1903, durante a construção da Marechal Floriano, e algumas ossadas, na área onde existiram a nave e o altar-mor. As Rosas Negras, que batizam a estação, eram integrantes de um movimento de mulheres que lutou contra a escravidão e pelos direitos dos negros entre o fim do século XIX e o início do século XX.
Apesar da estação na Praça Cristiano Ottoni ter sido batizada de Pequena África, o caminho da herança africana no Rio não segue a linha do VLT. Faz, na verdade, a curva na esquina da Marechal Floriano com a Camerino, nome atual da antiga Rua do Valongo. Uma caminhada por ali leva ao antigo mercado dos escravos, onde hoje fica a Praça dos Estivadores, aos Jardim Suspensos do Valongo, onde estão as estátuas do antigo cais, e ao próprio Cais do Valongo, hoje Patrimônio da Humanidade, por onde passaram aproximadamente um milhão de escravos até 1831, quando o comércio transatlântico foi proibido. Nesta área da Saúde, Santo Cristo e Gamboa, ficava verdadeiramente a Pequena África, onde concentravam-se os descendentes dos negros escravizados no Rio de Janeiro. Nesta região, encontrou-se, em 1997, o segundo Cemitério dos Pretos Novos, na Rua Pedro Ernesto – hoje sede do Instituto Pretos Novos.
A Estação Pequena África do VLT fica numa área que, até meados do século XIX, fazia parte do Campo de Santana – ficava por ali também a igreja que dava nome ao campo e foi demolida para a construção da Estação Ferroviária Pedro II, que teve como primeiro diretor exatamente Cristiano Ottoni, hoje nome da praça. Mas a estação não deixa de ter relação com a escravidão dos africanos: ao desembarcar, a paisagem é dominada pela Central do Brasil e pelo Morro da Providência, onde nasceu, em 1897, a primeira favela do Rio de Janeiro. O morro foi ocupado por ex-escravos que haviam lutado na Guerra de Canudos e foram dispensados pelo vizinho Ministério da Guerra sem o soldo prometido. Favela era o nome de um morro em Canudos, assim batizado por conta da faveleira, planta da Caatinga. No calendário municipal do Rio de Janeiro, 4 de novembro, dia de publicação desta crônica, é oficialmente Dia da Favela – nesta data, em 1900, pela primeira vez a favela foi chamada de favela, numa correspondência do chefe de polícia ao prefeito sobre a ocupação do Morro da Providência e a necessidade de “limpar” a área. Não deixa de ser mais uma lição para ser lembrada no mês da Consciência Negra.
Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Está de volta ao Rio após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. É criador da página no Facebook #RioéRua, onde publica crônicas sobre suas andanças pela cidade.