#RioéRua – Nos trilhos da herança africana

A Igreja de Santa Rita na linha do VLT: área em torno da antiga capela foi o primeiro cemitério de escravizados no Rio de Janeiro (Foto: Oscar Valporto)

No mês da Consciência Negra, a Linha 3 do VLT finalmente começa a circular e, apesar do esquecimento oficial, ajuda a lembrar a história da escravidão

Por Oscar Valporto | ODS 11 • Publicada em 4 de novembro de 2019 - 10:39 • Atualizada em 2 de março de 2023 - 20:16

A Igreja de Santa Rita na linha do VLT: área em torno da antiga capela foi o primeiro cemitério de escravizados no Rio de Janeiro (Foto: Oscar Valporto)

Às vésperas do mês da Consciência Negra, o Rio ganhou três novas estações de VLT – da Linha 3 que, finalmente, começou a cruzar a Avenida Marechal Floriano em direção à Central do Brasil. Os nomes das estações remetem às raízes africanas desta cidade: Santa Rita/Pretos Novos, Camerino/Rosas Negras, Cristiano Otono/Pequena África. Infelizmente, a celebração do mês – que culmina no Dia Nacional da Consciência Negra, 20 de novembro, data da morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, em 1695 – foi ignorada pelo prefeito Marcelo Crivella, mais preocupado com o calendário eleitoral, que o levou a entrar em acordo com concessionário do VLT, que chamara de “porcaria” meses atrás, a um ano das eleições municipais.  Nem o prefeito, na inauguração do dia 26, nem a prefeitura, em qualquer manifestação, destacaram a herança africana que batiza as estações. Ela mereceu apenas registros burocráticos no material de divulgação.

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A própria construção dessa Linha 3 passou a fazer parte da saga de mais de 300 anos de escravidão do Brasil e do Rio de Janeiro, o maior porto do tráfico negreiro do mundo por onde desembarcaram, desde o século XVI, pelo menos dois milhões de crianças, mulheres e homens escravizados na África. O primeiro porto na cidade ficava na Praia do Peixe (atual Praça XV). Os escravizados, que passaram a chegar em número cada vez maior a partir do final do século XVII, eram levados para serem vendidos no mercado da Rua Direita (atual Primeiro de Março). Neste período, os muitos mortos na travessia ou logo após a chegada eram sepultados perto da Capela de Santa Rita, templo próximo ao mercado. Até 1774, foi ali na região do hoje Largo de Santa Rita o primeiro cemitério dos pretos novos – os recém-chegados da África. Foi também esta uma das razões pelas quais a construção da Linha 3 teve consultoria arqueológica. Foi também por isso que não foi surpresa a descoberta de fragmentos de ossos humanos e objetos de  porcelana, vidro e cerâmica durante a obra.

Bonde deixando a Estação Rosas Negras em direção ao Santos Dumont: caminho para a Pequena África entra pela Rua Camerino, um pouco adiante, com o Colégio Pedro II na esquina (Foto: Oscar Valporto)
Bonde deixando a Estação Rosas Negras em direção ao Santos Dumont: caminho para a Pequena África entra pela Rua Camerino, um pouco adiante, com o Colégio Pedro II na esquina (Foto: Oscar Valporto)

A descoberta provocou a paralisação das obras por cinco meses diante do impasse entre arqueólogos, que desejavam escavações e remoção, e integrantes dos entidades do Movimento Negro que defenderam a preservação dos restos mortais onde haviam sido enterrados seus ancestrais. A negociação foi mediada pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e acabou prevalecendo a decisão de cancelar a pesquisa no Largo de Santa Rita e não permitir o salvamento arqueológico dos esqueletos humanos durante a instalação dos trilhos do VLT. As obras tiveram prosseguimento e ficou acertado que as estações receberiam denominações ligadas à herança africana e que a área do cemitério ganharia algum tipo de marcação paisagística. A parte do batismo das estações – por conta da concessionária – está valendo; a demarcação do cemitério, por conta dos órgãos públicos, ainda não aconteceu.

A estação Santa Rita/Pretos Novos fica logo depois do largo da igreja e do antigo cemitério. É a primeira da Marechal Floriano; a segunda – Camerino/Rosas Negras – fica logo depois da esquina com a Camerino. Também houve descobertas arqueológicas naquela região sem a mesma polêmica: arqueólogos encontraram estruturas da antiga Igreja de São Joaquim, erguida em 1758 e demolida em 1903, durante a construção da Marechal Floriano, e algumas ossadas, na área onde existiram a nave e o altar-mor. As Rosas Negras, que batizam a estação, eram integrantes de um movimento de mulheres que lutou contra a escravidão e pelos direitos dos negros entre o fim do século XIX e o início do século XX.

O bonde do VLT com o Morro da Providência ao fundo: primeira favela do Rio nasceu após ocupação por ex-escravos que haviam combatido em Canudos e foram dispensados pelo Exército (Foto: Oscar Valporto)
O bonde do VLT com o Morro da Providência ao fundo: primeira favela do Rio nasceu após ocupação por ex-escravos que haviam combatido em Canudos e foram dispensados pelo Exército (Foto: Oscar Valporto)

Apesar da estação na Praça Cristiano Ottoni ter sido batizada de Pequena África, o caminho da herança africana no Rio não segue a linha do VLT. Faz, na verdade, a curva na esquina da Marechal Floriano com a Camerino, nome atual da antiga Rua do Valongo. Uma caminhada por ali leva ao antigo mercado dos escravos, onde hoje fica a Praça dos Estivadores, aos Jardim Suspensos do Valongo, onde estão as estátuas do antigo cais, e ao próprio Cais do Valongo, hoje Patrimônio da Humanidade, por onde passaram aproximadamente um milhão de escravos até 1831, quando o comércio transatlântico foi proibido. Nesta área da Saúde, Santo Cristo e Gamboa, ficava verdadeiramente a Pequena África, onde concentravam-se os descendentes dos negros escravizados no Rio de Janeiro. Nesta região, encontrou-se, em 1997, o segundo Cemitério dos Pretos Novos, na Rua Pedro Ernesto – hoje sede do Instituto Pretos Novos.

A Estação Pequena África do VLT fica numa área que, até meados do século XIX, fazia parte do Campo de Santana – ficava por ali também a igreja que dava nome ao campo e foi demolida para a construção da Estação Ferroviária Pedro II, que teve como primeiro diretor exatamente Cristiano Ottoni, hoje nome da praça. Mas a estação não deixa de ter relação com a escravidão dos africanos: ao desembarcar, a paisagem é dominada pela Central do Brasil e pelo Morro da Providência, onde nasceu, em 1897, a primeira favela do Rio de Janeiro. O morro foi ocupado por ex-escravos que haviam lutado na Guerra de Canudos e foram dispensados pelo vizinho Ministério da Guerra sem o soldo prometido. Favela era o nome de um morro em Canudos, assim batizado por conta da faveleira, planta da Caatinga.  No calendário municipal do Rio de Janeiro, 4 de novembro, dia de publicação desta crônica, é oficialmente Dia da Favela – nesta data, em 1900, pela primeira vez a favela foi chamada de favela, numa correspondência do chefe de polícia ao prefeito sobre a ocupação do Morro da Providência e a necessidade de “limpar” a área.  Não deixa de ser mais uma lição para ser lembrada no mês da Consciência Negra.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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