Hora de caminhar mais devagar

Fim de tarde em Ponferrada, última grande cidade de Castilla y León

Na parte final do Caminho, um misto de tristeza e alegria pela superação

Por Giovanni Faria | ODS 15Vida Sustentável • Publicada em 3 de agosto de 2016 - 09:00 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 23:45

Fim de tarde em Ponferrada, última grande cidade de Castilla y León
Fim de tarde em Ponferrada, última grande cidade de Castilla y León
Fim de tarde em Ponferrada, última grande cidade de Castilla y León

O lugar mais místico do Caminho de Santiago é o Cebreiro, pequeno povoado no topo de uma montanha cujas casas em pedra são cobertas por palhas. Há registros de passagem de peregrinos pelo local nos anos 800.

Se pudesse, voltaria tudo. Não quero que termine. Gostaria de encontrar todos aqueles que fizeram de meu Caminho algo mágico.

O Cebreiro é o primeiro lugarejo da fascinante Galícia. O cenário é paradisíaco, com montanhas e florestas. O sol abrasador das três regiões já percorridas – Navarra, La Rioja e Castilla y León – está mais brando e não se vê mais os campos de uva, girassol, trigo e cevada.

Agora, faltam menos de 200 quilômetros para Santiago de Compostela. O peregrino tira do fundo da mochila a capa de chuva. É líquido e certo: na Galícia, vai chover. E isso é uma bênção.

– É minha segunda vez no Caminho. E a Galícia me fascina. O peregrino se molha de suor até aqui, mas agora se encharca de chuva – conta o francês Jean Michel Leblon, que soube por uma brasileira no Caminho que há um bairro no Rio de Janeiro com seu sobrenome. – Vou ao Brasil “herdar” minhas terras – brinca.

O italiano Lívio sobe O Cebreiro em marcha bem lenta:

– A subida é dolorida, forte, puxada. Mas aqui, está presente toda a energia que o peregrino precisa para chegar a Santiago. É como estar no céu, só que vivo, muito vivo.

Afora a subida do Cebreiro, quase tão terrível quanto a dos Pirineus no primeiro dia, os últimos quilômetros até Santiago mexem mais com o espírito do que com o corpo do peregrino. A rotina já o fez calejado nos pés e pernas. Mas o coração já começa a bater mais forte pela meta alcançada. E o sentimento de que a aventura está próxima do fim o faz caminhar mais devagar.

Há registros de passagem de peregrinos pelo Cebreiro nos anos 800
Há registros de passagem de peregrinos pelo Cebreiro nos anos 800

– Se pudesse, voltaria tudo. Não quero que termine. Gostaria de encontrar todos aqueles que fizeram de meu Caminho algo mágico – diz, entre soluços, a finlandesa Sany.

Apesar da conquista – chegar a Santiago, depois de 900 quilômetros de muito suor – o sentimento de perda dos “amigos de infância” feitos no Caminho é muito forte.
Muito, muito forte.

– Nós nos conhecemos há poucos dias, mas parece que foi a um século – resume bem Silvia, italiana de Udine, quando se refere à amiga brasileira Aline.

Aliás, brasileiros são numerosos no Caminho. Não só como peregrinos, mas como donos de albergues. Há pelo menos quatro, nas cidades de Puente la Reina, Viloria de Rioja, Molinaseca e Palas de Rei. A gaúcha Natália veio fazer o Caminho, conheceu um espanhol, casou-se e hoje comanda o Estrella Guia, albergue em Puente la Reina.

– Uma vez feito o Caminho, ele nunca mais sairá de você – diz ela, enquanto lê nas cartas o que a experiência reserva ao peregrino hóspede.

Acácio e a mulher, a italiana Orietta, são donos do Refúgio, em Viloria de Rioja. O local é uma espécie de santuário a Paulo Coelho, amigo do casal. Na hora do jantar, Acácio ensina uma lição de compartilhamento: o prato de cada pessoa passa de mão em mão para que todos o sirvam. Ninguém precisa se levantar para servir a comida: ela lhe chegará servida pelos companheiros.

Se há brasileiros na caminhada e nos negócios do Caminho, há também aqueles que perderam a vida enquanto peregrinos. Um deles, Antonio, perdeu a vida por hipotermia ao atravessar os Pirineus em janeiro, em pleno inverno, o que hoje é proibido. Há um altar no local e muitos param e rezam.

Num Caminho de paz e tranquilidade – o peregrino tem todas as condições para uma longa caminhada sem ameaças ou riscos – a nota negativa fica por conta do lixo jogado pelo trajeto. É pouco, mas poderia ser nenhum se houvesse maior consciência especialmente com garrafas e latas de bebida.

Na última etapa, a chegada a Santiago. Um momento mágico, especialmente na emoção da missa do peregrino. Mas isso fica para a próxima. Buen Camino!

A bela paisagem da Galícia
A bela paisagem da Galícia

Giovanni Faria

É jornalista e trabalhou por 33 anos no jornal O Globo e nas rádios CBN e Globo. É professor da PUC-Rio e da Facha. Também é formado em Direito. Desde que levou um "susto" no coração há quatro anos, adotou a caminhada como atividade diária. Nasceu em Friburgo, mora em Niterói, vive em Búzios, mas desde 2014 não tira o Caminho de Santiago de Compostela da cabeça nem dos pés. A mulher, Christiane, e o filho Thomás já cruzaram a Espanha a pé também - agora só faltam as filhas Victória e Catarina.

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