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Afogar e renascer: sobre depressão

"Ser exposta ao racismo desde a tenra idade não teria como gerar outro resultado se não um nível de depressão profunda"

ODS 3 • Publicada em 14 de abril de 2023 - 09:55 • Atualizada em 18 de abril de 2023 - 09:57

Olá, #Colaborers. Eu precisei de um tempo para mim. Na verdade, não foi isso. Não fiquei todo esse tempo sem escrever porque precisava de um tempo isolada, sozinha, sem vontade de me alimentar e sentindo todo meu impulso de vida escorrer pelo corpo. Não fiquei esse tempo sem escrever porque minha mente estava esgotada ou por um problema de fluxo criativo. Fiquei sem escrever porque não tinha força para fazer absolutamente nada além das necessidades mais básicas que um ser humano precisa cumprir para sobreviver. Fiquei sem escrever porque todas as vezes que pensava em sair do meu quarto e ir até meu escritório ouvir meus dedos escorrendo pelas teclas, o desânimo e a apatia me tomavam de tal forma que a única resposta possível era dormir. Não, eu não precisei de um tempo para mim. Estou lutando contra a depressão.

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Convivo com a depressão desde muito nova mas só consegui entender o tamanho do estrago que ela vem causando na minha vida na crise atual. Encarar a depressão dessa vez chegou ao ponto de precisar compartilhar com outras pessoas o que estou vivenciado porque não quero mais esconder essa condição. Esconder a depressão não fez nada melhorar. Revelá-la talvez ajude a mim mesma e a outras pessoas na mesma situação. Talvez, se a gente falar mais abertamente sobre o adoecimento mental de pessoas negras no nosso país, isso nos ajude a desvelar e atuar para que  as múltiplas violências do racismo não sejam gatilhos que nos façam morrer.

O genocídio não se dá apenas por arma de fogo, por conflitos em territórios majoritariamente negros e pobres; também se dá na manutenção de um sistema de desigualdades que atravessa todas as experiências de negritude que sejamos capazes de pensar. Um sistema que causa dores insuportáveis, dores que sentimos na carne, que se manifestam como se nossos corpos estivessem sendo atravessados por venenos que diminuem nossa capacidade de respirar, que apertam nosso cérebro, que a todo minuto fazem a gente pensar que nossa vida é descartável. E já que ela é tão descartável, que pelo menos seja EU, sujeita da própria morte.

Aqui escrevo apenas por alguém que guerreia contra a depressão. Que tenta compreender o que acontece nas crises para mais bem enfrentá-las. Nada do que escrevo aqui tem o intuito de apresentar diagnósticos. O diagnóstico que tenho para analisar é o meu. O que penso a respeito de como o racismo aprofundou ainda mais as dores do meu diagnóstico também é algo que vai para esta escrita a partir do que sinto. Coisas já debatidas com a cabeça no divã, mas que precisam sair para além do consultório. Não sei se essa necessidade de expor a depressão é boa ou ruim. Mas enquanto escrevo é como se estivesse botando para fora segredos que me atormentam há décadas.

"O genocídio se dá também se dá na manutenção de um sistema de desigualdades que atravessa todas as experiências de negritude". Arte Pixabay
“O genocídio se dá também se dá na manutenção de um sistema de desigualdades que atravessa todas as experiências de negritude”. Arte Pixabay

Existem desigualdades étnico/raciais até mesmo nas doenças mentais, inclusive na possibilidade de elas serem tratadas com o devido cuidado e compromisso. Ser exposta ao racismo desde a tenra idade não teria como gerar outro resultado se não um nível de depressão profunda. Quando falo sobre ser exposta ao racismo, não estou falando apenas das situações evidentes de racismo, apenas de todas as vezes em que percebi que estava sendo usada por pessoas brancas, exploradas por elas ou desacreditada. Estou falando também de quando termino de estudar tudo que tenho de estudar, escrever tudo que preciso escrever, me restam apenas desânimo e apatia.

Eu, que sempre fui uma garota apaixonada pelos próprios livros, pelo estudo, pela escrita, sendo soterrada pela apatia até mesmo naquilo que era minha maior e principal paixão. O vazio e o assombro sem me deixar dormir, fazendo com que eu acordasse muito tarde, desorganizando minha rotina enquanto enxergo tudo desabar.

Dessa vez ainda adquiri uma espécie de terror aos brancos. Todo e qualquer evento onde eu tenha que me relacionar ou conversar com uma quantidade muito grande de pessoas brancas me deixa nervosa e ansiosa. Não pelas pessoas em si, mas pelo que representam para mim aquelas dezenas brancos sendo barulhentos em lugares onde não há pessoas negras se divertindo também. Meu coração dispara e quero sair correndo. Não tenho mais emocional para o teste do pescoço. É mais take de terror.

O outro take de terror é perceber o quanto fomos expropriadas da possibilidade do amor e do desejo. Sempre escondi muito bem meu desejo de ser amada como as outras, desejada como as outras, querida como as outras. Sempre achei que isso não importava porque no fim das contas o que ia me fazer dona das minhas próprias escolhas e plena era ter um bom trabalho e dinheiro o suficiente para que nenhuma limitação me impedisse de fazer o que eu tivesse vontade.

Muito cedo o racismo intoxica crianças e jovens de tal forma que elas nem ao menos têm o direito de desejar ter amor. Vamos engolindo traumas, violências, decepções, amarguras, que ficam fermentado em nossos estômagos para sempre, porque temos medo do que irá ser dito sobre nós, se formos honestos com o que sentimos. E mesmo que quiséssemos dizer em um espaço de acolhimento e escuta voltado para a nossa saúde mental a maioria de nós não conseguiria.

A sociedade brasileira se articula no fomento da insanidade dos pretos desde sempre. Todas as nossas ações foram consideradas como loucas, perigosas, que demandavam punição e contenção. Hoje não é mais possível manter os praticantes de tradições de matriz africana trancafiados em presídios ou hospícios sem argumento algum. Mas a sociedade brasileira pode se recusar a conscientizar a população negra da importância da saúde mental, assim como pode não ampliar o atendimento clínico nos postos de saúde. Formas outras de deixar morrer, formas outras de matar que nem necessitam da brutalidade da violência do Estado.

Minha cabeça recém-botou o nariz para fora e ainda está reaprendendo como é que se respira. Precisei de uma rede de apoio que não me deixasse afogar e de muitas âncoras que não me deixaram desviar do caminho. Foram as redes e as ancoras que me mostraram para onde ir, que tranquilizaram meu coração. Mas a força dessas conexões não me fez retomar a vontade de escrever, meus hábitos e rotinas, a confiança em mim mesma. O que fez com que a insanidade me tomasse foi a consciência de que apenas posso me responsabilizar sobre minha vontade de viver. Há muita vida para ver e não posso permitir que a violência cotidiana tire de mim aquilo que realmente quero ser.

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