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Danilo Avelar e eu, na arena de racismo recreativo chamada futebol

Atletas precisam de responsabilidade social, porque suas ações impactam milhares de pessoas. Quando se comprometem a estudar para compreender a centralidade do racismo, não é irrelevante

ODS 10 • Publicada em 15 de dezembro de 2023 - 07:20 • Atualizada em 19 de dezembro de 2023 - 09:47

Parte significativa das minhas conversas com Rodolfo são disparadas por algo muito importante, que pode impactar espaços para além do que imaginamos. Sempre foi assim, desde quando éramos militantes do movimento estudantil nos idos de 2010. No compartilhar de muitas tarefas e com a energia de uma juventude que já não temos, desenvolvemos relação de amizade e profissional que não é das mais comuns. Tem uma confiança e um jeito de fazer muito minha e dele, tipo de coisa rara, mas que quando acontece potencializa grandes aprendizados. Foi numa conversa dessas que topei dar aulas sobre racismo e sociedade brasileira a uma pessoa que tinha cometido grave atitude racista.

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Danilo Avelar, então jogador do Corinthians, proferiu comentário racista numa plataforma de jogos online e foi afastado quase imediatamente. Surgiu uma série de caminhos a serem tomados. A primeira reação pública de Danilo chegou a mim antes mesmo que eu soubesse exatamente quem ele era: sua confissão. Ele nunca negou o que tinha feito.

A primeira publicação do atleta depois desse episódio assumia o ato, algo que me surpreendeu. Pessoas brancas quando cometem atrocidades do tipo geralmente se esquivam com aquele velho “quem me conhece sabe” acompanhado de um “se eu ofendi alguém peço desculpas”. A nota de Danilo tinha algo de diferente. Assumia sua responsabilidade já nas primeiras linhas e finalizava pedindo desculpas diretas a quem devia desculpas. E foi exatamente por isso que quando Rodolfo me disse que tinha sugerido meu nome para trabalhar o tema com o jogador e sua equipe, prontamente aceitei.

Danilo Avelar no Corinthians: aulas para ser antirracista. Foto Marcello Zambrana/Agif/AFP
Danilo Avelar no Corinthians: aulas para ser antirracista. Foto Marcello Zambrana/Agif/AFP

Aqui é provável que muitos de vocês digam que, ao aceitar trabalhar com uma pessoa que assumiu um ato reprovável de racismo, eu me vendi. Contudo, quando topo dar aulas quinzenais, de duas horas, para Danilo e sua equipe, sobre temas como racismo estrutural, pacto narcísico da branquitude, eugenia, supremacia branca, permeado com conteúdo multimídia que servia como lição de casa, na verdade cumpri um dos papéis que assumi enquanto profissional comprometida em combater os racistas: desconstruir a educação recebida pela maioria da população negra brasileira, fortemente inadequada até pelo menos a edição da Lei 10639/03, através da produção intelectual de pessoas negras.

A proposta que apresentei para Danilo tinha no centro o comprometimento dele mesmo como aluno. “A gente vai ter aula de verdade, você vai ler, assistir a palestra, vai ouvir podcast, a gente vai discutir os textos e vou perceber quando você leu e quando você não tiver feito seu trabalho individual. Se eu notar que de alguma forma você não está engajado nesse processo, a gente para”. Ele podia ter parado por ali, procurado outra pessoa ou metodologia, mas resolveu topar e assim, começamos uma jornada de 6 meses, com aulas quinzenais de duas horas, de aprendizado introdutório aos sentidos, significados, histórico e consequências do racismo na sociedade brasileira.

Sabia que ia funcionar porque desde a nossa primeira conversa, Danilo sempre foi muito franco. Em seis meses, jamais desviou o olhar ou fechou a câmera nas aulas. Nunca percebi qualquer tipo de dispersão.

Não foi fácil – muitas vezes foi bastante duro e exaustivo. Meu trabalho de tentar fazer uma pessoa que nunca teve contato com nenhuma teoria crítica aprofundada sobre raça e racismo e que por mais de 30 anos viveu em uma bolha onde a convivência com pessoas negras era pouco profunda, dependia de aprimoramentos meus.

A maioria das vezes em que dei cursos, palestras, aulas sobre assuntos voltados à questão racial foi para pessoas negras ou brancas que já haviam tido contato com o tema, conheciam o vocabulário básico, um facilitador das conversas e debates. Agora, estava diante de outro tipo de abordagem, dando aula para o tipo padrão brasileiro, o ser universal, homem branco, jovem, casado, pai de família.

Mas tinha uma coisa muito interessante no Danilo, agora meu aluno, não mais o ídolo do Corinthians cuja cabeça estava sendo pedida pela torcida: ele estava absolutamente interessado em aprender. E se tem uma coisa que aprecio nos meus alunos é isso.

Acho que quando as pessoas têm vontade de aprender elas efetivamente conseguem. Podem não se tornar especialistas ou as melhores, mas aprendem. E conseguem pôr em prática as lições. Eu mesma aprendi a nadar depois de adulta e estou longe de ser uma exímia nadadora, mas me viro. A disposição de aprendizado do Danilo o fez tomar consciência da dimensão do que cometeu e do que causou para a sociedade brasileira, para seus fãs, para a torcida do seu tão amado clube e para a comunidade negra como um todo.

Aprender sozinho é um processo possível, mas coletivamente o processo de compartilhamento do aprendizado é mais eficaz. A companhia da equipe responsável pela comunicação do Danilo, especialmente de Jonathan e Cleisson, deu dinâmica para os encontros e facilitou nossa aproximação, talvez por compartilharmos, nós três, experiências e aprendizados a respeito do racismo que nos exigiram educação que não se aprende em livros.

A educação antirracista é ferramenta poderosa de combate aos sistemas de dominação e tem potencial múltiplo, especialmente quando adotada como política pública, mas também no em empresas e equipes desportivas. Infelizmente, o mundo do futebol ainda carrega uma estrutura extremamente racista onde, apesar de parte numerosa dos astros ser de negros, os insultos raciais são constantes e incessantes.

Foi justamente um insulto racial que fez Danilo me procurar, uma ofensa comum, apesar de muitas pessoas não conseguirem compreender tudo que está inscrito em cada vez alguém deprecia o outro a partir de elementos conectados a características ou aspectos culturais ligados aos negros. O futebol é uma arena diária e concreta de racismo recreativo que se estabelece de múltiplas formas, inclusive na possibilidade de proferir xingamentos absurdos e violentos para uma pessoa negra escondido na certeza da impunidade.

É possível fazer diferente, e investir em educação antirracista. Atletas são pessoas que precisam de responsabilidade social, porque suas ações impactam milhares de pessoas. Quando se comprometem a estudar para compreender a centralidade do racismo nas relações sociais brasileiras não é irrelevante.

Da mesma forma, passa da hora de a Fifa, a CBF e os clubes pararem de tratar o combate ao racismo apenas com ações de marketing. É preciso letramento racial e de gênero nos centros de treinamento. As violências que presenciamos nos campos e fora deles, protagonizadas pelo mundo do futebol, não se resolvem com frases de efeito ou jogos especiais.

Educação antirracista é um processo permanente, não se adquire em duas ou três palestras ou lendo um manual. É uma ação de compromisso com a construção de uma sociedade radicalmente diferente. Tenho me comprometido com essa mudança, auxiliado outras pessoas a se comprometerem também. Sempre fico muito esperançosa quando percebo que um aluno meu compreendeu minimamente o que o brilhantismo intelectual negro, protagonizado sobretudo por mulheres como Sueli Carneiro, Cida Bento, Zélia Amador, Conceição Evaristo e tantas outras, tem a ensinar.

Graças aos orixás ainda temos a disposição de educar, esperamos que cada vez mais pessoas tenham disposição em aprender.

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