Como Alexandre Nardoni, condenados têm pena reduzida após leitura

Em São Paulo, dos 16.9 mil apenados matriculados em projetos de leitura, 973 conseguiram diminuir suas sentenças. Foto SAP (Secretaria de Administração Penitenciária)

De furto a latrocínio, apenados contam como a educação e o trabalho ajudaram a repensar os crimes e a se preparar para a liberdade

Por Luiza Souto | ODS 16 • Publicada em 25 de março de 2024 - 08:59 • Atualizada em 1 de abril de 2024 - 09:56

Em São Paulo, dos 16.9 mil apenados matriculados em projetos de leitura, 973 conseguiram diminuir suas sentenças. Foto SAP (Secretaria de Administração Penitenciária)

Condenado a mais de 30 anos de prisão pelo envolvimento na morte de sua filha, Isabella, em 2008, Alexandre Nardoni viu sua pena reduzida em 96 dias após ler “Carta ao Pai”, de Franz Kafka, e também por trabalhar na penitenciária de Taubaté, interior de São Paulo, onde cumpre a sentença. A notícia revoltou aqueles que são contrários à concessão de benefícios a condenados, principalmente por crimes hediondos, mas a remição da pena por leitura é um direito do preso.

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Em São Paulo, onde a população carcerária chega a 196.600 pessoas, até novembro de 2023, 5,7% (973) dos 16.9 mil apenados matriculados em projetos de leitura, incluindo Nardoni, conseguiram diminuir suas sentenças. Os dados foram cedidos ao #Colabora pela Secretaria de Administração Penitenciária (SAP).

Além da redução da pena, a leitura e os estudos também podem trazer outros benefícios para os presos– e sociedade, como a mudança de postura e a menor reincidência. É o que contaram ao #Colabora três reeducandos que conseguiram diminuir a pena graças aos livros e também por outros projetos.

De Dráuzio Varela a Dostoiévski

Preso por roubo em Itapetininga (SP), Davi*, 32 anos, não leu Kafka mas contou com outro autor que escrevia sobre dilemas éticos para abrandar a pena de seis anos: o russo Dostoiévski. Após ler “Crime e Castigo” e, também, “As prisioneiras”, de Dráuzio Varella, e mais sete obras, ele teve uma remição de 28 dias, e espera ir para o regime semiaberto em março próximo.

Terceiro filho de mãe solo, Davi interrompeu os estudos no sexto ano do ensino fundamental para ajudar no sustento de casa. E, também, porque não gostava de ler. Já na cadeia, com a ideia de sair “o mais rápido possível”, ele entrou para o programa de leitura, e afirma que ganhou mais do que a redução de alguns dias na cadeia:

“Querendo ou não, você começa a adquirir conhecimento, a se comunicar melhor. foi um deslize na minha vida. Me arrependi e estou tentando me recuperar agora com o estudo para trabalhar. Quero ser mestre de obras”, projeta.

A lei prevê a redução de quatro dias para cada obra lida. São, no máximo, 12 livros, em 12 meses, totalizando até 48 dias a menos da pena por ano. Foto SAP (Secretaria de Administração Penitenciária)
A lei prevê a redução de quatro dias para cada obra lida. São, no máximo, 12 livros, em 12 meses, totalizando até 48 dias a menos da pena por ano. Foto SAP (Secretaria de Administração Penitenciária)

Como acontece

A remição da pena por leitura foi regulamentada em 2021 pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), e prevê a redução de quatro dias para cada obra lida. São, no máximo, 12 livros, em 12 meses, totalizando até 48 dias a menos da pena por ano. Mas não é simples como parece. Ingressar e permanecer no programa exige leitura, resenha e clareza na comunicação.

E, o mais importante, saber ler: dados mais recentes da Senappen (Secretaria Nacional de Políticas Penais) indicam que, de janeiro a junho de 2023, dos 834.9 mil sentenciados no país, 14.4 mil eram analfabetos. Ainda segundo a pasta, nesse mesmo período, 30% dos presos (257.1 mil) estavam matriculados em programas de remição por leitura.

Em São Paulo, a direção de cada presídio oferece 20 vagas por vez no programa nomeado “Lendo a Liberdade”. Nele, o condenado recebe um livro e tem 20 dias para concluir sua leitura. Em seguida, faz uma resenha dele, sem consultá-lo. Voluntários de instituições de ensino superior revisam os textos obedecendo alguns critérios como verificar se há clareza no que foi escrito, e um relatório é enviado para avaliação judicial. São esses voluntários que também fazem a curadoria dos livros.

Muitos desistem

Os próprios presos e diretores de presídios que conversaram com a reportagem afirmaram que muitos desistem pelo caminho ou não conseguem elaborar uma resenha. Como consequência, deixam de receber a sua remição: “Muitos começaram a ler comigo e desistiram na primeira obra”, conta Davi, que também está estudando na cadeia, e quase completando o ensino fundamental.

O estudo, aliás, é outra modalidade de remição a que o preso tem direito: a cada 12 horas de frequência escolar, menos um dia de pena. Ele também pode minimizar a sentença trabalhando: um dia a menos para três de atividade, além de três quartos de um salário-mínimo. É possível que o condenado acumule as três modalidades de remição, desde que as horas diárias sejam compatíveis.

O principal benefício é sair

Pedro*, 45 anos, está preso desde 2010 em Mirandópolis (SP), condenado a 77 anos de prisão por latrocínio – roubo seguido de morte. Há 8 trabalha como monitor de educação, que entre outras coisas auxilia professores nas aulas ministradas dentro do presídio e aplica projetos oferecidos pelo próprio sistema penitenciário. Sua remição chegou a 498 dias.

À reportagem, ele garante que foi somente trabalhando com educação que aprendeu a refletir sobre os crimes cometidos: “Em algum momento o sentenciado voltará para a sociedade, e ele tem que ser preparado para isso”, reflete. “E a remição é uma consequência das atividades que desenvolvemos aqui, mas o fator principal é fazer com que você reflita sobre o que você fez, e que saia melhor”.

Miguel*, 49 anos, também atua como monitor de educação, em Porto Feliz (SP), e conseguiu reduzir 384 dias da pena por conta do trabalho e do estudo. Ele foi condenado a 13 anos de prisão por participação em sequestro e associação ao tráfico. Ano passado foi para o regime semiaberto, mas planeja seguir no presídio mesmo após cumprir a pena devida.

É que Miguel morou por 14 anos nos Estados Unidos, onde trabalhou no ramo da construção civil, e fala inglês fluentemente. Agora, quer dar aula para os companheiros. Por chamada de vídeo, mostrou até uma apostila que rascunhou, com dicas e exercícios: “Escolhi o lado da minoria, que se esforça e aproveita as oportunidades para não voltar para o presídio. Se você aproveita pelo menos 60% do que te oferecem, sai totalmente transformado, independentemente do crime que cometeu”.

O diretor de Atendimento e Promoção Humana da FUNAP, Alexandre Cabrera, admite que a aderência aos projetos oferecidos em São Paulo, num primeiro momento, é pela remição. Mas no tocante à leitura e aos estudos, garante que há “claramente” uma mudança de postura e, principalmente, menor reincidência: “A educação é transformadora. E quanto mais eu invisto em educação nas prisões, mais produtivo esse sentenciado se torna para a sociedade”.

*Os nomes dos entrevistados foram ocultados a pedido dos apenados

Luiza Souto

Jornalista e pesquisadora do Rio de Janeiro. Tem experiência na cobertura sobre Direitos Humanos, diversidade e gênero. Também produtora e roteirista de campanhas e minidocumentários com essas temáticas. Contribuiu com veículos como Folha de S. Paulo, Extra, O Globo, GloboNews e UOL.

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