Uma questão de pele, em todos os sentidos

Dramas, histórias e preconceitos de quem sofre e convive, cotidianamente, com as diferenças

Por Julia Michaels | ArtigoODS 10 • Publicada em 6 de setembro de 2024 - 09:30 • Atualizada em 12 de setembro de 2024 - 09:54

Arte/Claudio Duarte

O que é a pele, nosso maior órgão? Como contribui para a existência humana? Protege contra microrganismos, substâncias químicas e traumas físicos. Regula a temperatura interna do corpo, ao transpirar e ajustar o fluxo de sangue. Produz óleo para se manter macia; pela transpiração, coloca para fora aquilo de que não precisamos. Providencia as sensações de toque, pressão, temperatura externa e dor. Traz cor, pelo nível de melanina, e abriga nossos folículos de cabelo e pelo.

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Minha neta nasceu há cinco anos e, por causa de uma mutação genética, veio com uma pele que não cumpre as funções básicas desse design comum. Em termos leigos, a pele dela cresce rápido demais. Não consegue, naturalmente, eliminar plenamente a pele morta que vai sendo substituída pela pele nova, como acontece com outras pessoas. Minha neta lida com desafios de visão, audição, do couro cabeludo e do movimento. A pele dela, fina, avermelhada e esticada em alguns lugares, surge de uma raríssima diferença genética que se chama ictiose, existente em 22 formas já identificadas.

Ictiose, essa palavra estranha, vem do grego, ichthys, ou peixe. Faz referência à pele da pessoa afetada, ressecada, escamosa e, às vezes acumulada em camadas.

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É impossível saber quantas pessoas no mundo possuem essa mutação, mas nos Estados Unidos, calcula-se a incidência de ictiose em somente 5 a 10 bebês, nascidos por 100 mil.

Amigos meus perguntam como estão meus netos de vez em quando. Não é incomum alguém perguntar se minha neta já “melhorou”, como se a ictiose fosse doença, que não é.

Eu levo uma escova e pá de mão quando vou estar com outras pessoas do trabalho, para juntar minha pele que cai no chão

Participante da Conferência
Adulto

Soube por um exame de DNA que eu sou a portadora do gene por nosso lado, que passei à minha filha. Por um acaso difícil de acontecer, meu genro também tem uma forma do gene. Não temos notícia de mais ninguém portador de ictiose, em ambas as famílias.

Minha neta e o gêmeo dela nasceram prematuros em Nova York, no começo de 2019, pois ela estava em estresse dentro do útero, encapsulada em sufocantes camadas de pele endurecida.

Voei para estar junto no segundo dia de vida dos bebês. Passei com a pequena família quase o tempo todo da estadia de três meses no CTI. Voltei para lá de novo quando minha filha retornou ao trabalho, no fim da licença maternidade, e acabei acompanhando o susto de uma segunda hospitalização dos dois, desta vez com o perigoso vírus sincicial respiratório.

Durante a pandemia, saí do Brasil para morar no prédio da pequena família. Estive todos os dias com eles e troquei muita fralda. Em 2022, dirigi a minivan, na mudança para os arredores de Washington, DC e desde então, já voltei à nova casa deles muitas vezes.

Um brinde às diferenças, na conferência de Albuquerque, organizada pela Foundation for Ichthyosis and Related Skin Types (FIRST). Foto Divulgação/FIRST
Um brinde às diferenças, na conferência de Albuquerque, organizada pela Foundation for Ichthyosis and Related Skin Types (FIRST). Foto Divulgação/FIRST

Acompanhei os primeiros passos e palavras e continuo acompanhando desafios e vitórias com a alegria germinada nos primeiros dias assustadores da vida dos dois.

Nada disso se compara, porém, aos três dias que acabo de compartilhar com os pais e as duas crianças no mês de julho de 2024, numa conferência, em Albuquerque, Novo México.

“Eu levo uma escova e pá de mão quando vou estar com outras pessoas do trabalho, para juntar minha pele que cai no chão”, conta um participante adulto na conferência.

“Eu passo o (hidratante) Aquaphor de manhã depois de meu banho longo e visto roupas apertadas, para segurar a pele em mim até de noite, quando tomo o segundo longo banho do dia e posso descamar a pele que se juntou durante o dia”, outro participante adulto na conferência

“Quando chegou minha hora de ir para a faculdade, perguntei, em todas as opções, se teria um quarto com banheira”, mais um participante adulto na conferência.

Minha filha e meu genro, junto com o irmão gêmeo de minha neta, já tinham minha admiração pelo esforço diário deles em cuidar dela e assegurar que possa viver todo o seu potencial, ser feliz. Ouvir esses depoimentos na conferência aprofundou esse meu sentimento para o visceral. Pela primeira vez em cinco anos entendi como não há trégua, que a luta é contínua. Às vezes, um simples inalar ou exalar não vem fácil.

“Meus fellow flakes (meus queridos flocos)”, começou um palestrante keynote canadense, ator e comediante de uns 50 e poucos anos. “Ontem foi a primeira vez na minha vida que conheci uma outra pessoa com ictiose”. Segurando o choro, contou ter feito uma pesquisa para saber se havia algum outro ator no mundo, portador dessa rara genética. Descobriu um homem de circo dos anos 1930-60, o Alligator Boy (menino jacaré), que acabara casando-se com uma mulher barbuda, a Monkey Girl, os dois, surpreendentemente, vivendo felizes para sempre, na Flórida.

Feita a pesquisa, o palestrante lembrou que quando era criança, no Canadá, um amigo lhe mostrara uma foto do próprio Alligator Boy, num livro. O amigo perguntou se ficara chateado, ao ver a foto. Não, ele respondeu. Fiquei destroçado, confessou para o público da conferência.

O comediante e todos nós ficamos em lagrimas várias vezes durante a apresentação. Diz que está escrevendo uma peça de teatro autobiográfica, novidade para ele. Outro participante nos contou do filme que está rodando, Miss Matched, sobre como é namorar com ictiose. Lidar com flocos…

Bullying, sim, muitos participantes falaram do assunto. Décadas depois da foto do Alligator Boy destroçar um menino de genética diferente, há hoje um foco novo em inclusão de minorias. Os pais tendem a ensinar os filhos a deixaram de encarar, a serem gentis e fazerem amizades. O bullying segue, porém, uma preocupação de todos nós.

Minha filha e meu genro vestem minha neta em roupas coloridas, penteados atraentes, fitas no cabelo. Ela adora, ama o arco-íris. Cheia de vida, carinhosa, superinteligente e criativa, já é uma presença marcante aonde quer que vai.

A conferência de Albuquerque, organizada de dois em dois anos pela Foundation for Ichthyosis and Related Skin Types (FIRST), reúne adultos e famílias, pesquisadores, médicos e empresas farmacêuticas.  Minha filha e a família já haviam participado uma vez, em 2022. Relataram depois para mim como foi bom ver outras crianças com ictiose, ouvir adultos, socializar.

Eu passo o (hidratante) Aquaphor de manhã depois de meu banho longo e visto roupas apertadas, para segurar a pele em mim até de noite, quando tomo o segundo longo banho do dia e posso descamar a pele que se juntou durante o dia

Participante da Conferência
Adulto

A FIRST faz de tudo para fomentar a pesquisa da ictiose. Há uma perspectiva de terapia genética, o que, pelo que entendo, iria normalizar o crescimento da pele, tratar a mutação. Não imagino, porém, que as feições – congênitas e parecidas em todos que têm o tipo de ictiose que minha neta tem – deixem de passar uma noção de máscara, os olhos esticados. Não sei se a cirurgia plástica, no futuro, será uma opção, nas orelhas e em outras partes do corpo afetadas. Hoje em dia, alguns portadores de ictiose fazem cirurgia nos olhos, acima de tudo por motivos funcionais.

Nada do que minha filha e meu genro me contaram sobre a conferência há dois anos pôde substituir a experiencia de ter estado nesta de agora, junto com eles. Vi e senti o contexto, passado, presente e futuro. Em Albuquerque, todo mundo já era ou ficou instantâneo amigo ou amiga de infância. O comediante não foi a única pessoa a conhecer ali, pela primeira vez, alguém que passou e passa por tanta coisa em comum. Estavam presentes pessoas de várias etnias e tons de pele. A genética nos uniu.

Um dos organizadores da conferência comentou comigo que tentara mudar o nome, ictiose, estranho e difícil (exceto talvez em grego), sem êxito.

Quando você procura saber das funções da pele, há uma que não aparece no Google ou no ChatGpt: a aparência.

Sou uma pessoa de pele-pálida comum. Coincidência ou não, atualmente estou trabalhando com questões de raça, da Diáspora africana, na minha startup para uma plataforma digital, FullCircle. Me sensibilizo toda hora com as experiências de pessoas de pele escura, em países como o Brasil e Estados Unidos. No começo de julho passado, houve uma abordagem policial de jovens em Ipanema, onde moro, por motivo do tom da pele de alguns deles — comportamento ainda defendido pelo governador de Estado, depois do fato.

Antes de viajar à conferência, li o excelente romance de Jefferson Tenório, O avesso da pele, vencedor do prêmio Jabuti. Trata de experiências de preconceito racial e foi banido em quatro estados. Na minha volta dos EUA, li o perturbador Passeio com o gigante, de Michel Laub, sobre um judeu ficcional que levanta fundos para um candidato de extrema direita em 2018, perde a esposa pela Covid e terá que cuidar sozinho da filha do casal, criança com necessidades especiais. Tudo converge, enfim, para minha reflexão.

Somente por meio de uma história bem contada – um quadro, conto, filme, uma reportagem – é que podemos chegar ao limiar da pele do outro, sentir realidades dos outros, chorar e se alegrar para além de nós mesmos. Por isso é que escrevo para vocês, aqui, atordoada pela dificuldade dessa missão. Quero que sintam como foi a experiencia da conferência, para essa avó.

Um policial não consegue entrar na pele de quem ele aborda. O treinamento jamais terá êxito pleno em reverter preconceitos, atitudes, vivências. O mais provável é que o homem armado adverte ao abordado, como um deles fez em Ipanema, sobre o perigo de andar na rua, portando pele escura. Mãos para cima, arma na testa, os jovens abordados não tiveram como contar suas histórias. Um amigo de pele pálida que estava junto, sem arma na cara, avisou se tratar de filhos de diplomatas estrangeiros. As armas baixaram.

Sim, é preciso que todos contem histórias, às vezes no lugar de quem não conta.

Minha neta, aos cinco anos, é uma grande contadora de histórias. Gosta de juntar elementos díspares, como uma janela, fogo e uma galinha. Os desfechos chacoalham. Ela tem oportunidades para ser ouvida. Espero que tenha cada vez mais chance para contar histórias e acho que, se depender da forte personalidade dela, fará de tudo para que aconteça (não tolera interrupções!).

Contar história é algo que presenciei muito em Albuquerque. A conferência foi uma fogueira de vilarejo, chamas se unindo, brilhando, incitando emoções e abraços. Os flocos se espalharam.

Nem minha neta nem os outros participantes da conferência, nem meninos abordados na rua nem ninguém precisa de se prender a uma única história, à repetição eterna. Seria chato demais. E lembremos: todo mundo é diferente e tem histórias.

O lance é contar, ouvir: pular para fora de si, emergir da superfície de seja, trazer o outro para perto, procurar essências. São momentos mágicos e efêmeros que nos tornam mais inteiros.

Vovó, posso xeretar sua bolsa? – perguntou minha neta na nossa última noite juntos no Novo México. Uma história se aproximava.

Julia Michaels

Norte-americana radicada no Brasil desde 1981, Julia Michaels é jornalista, escritora e co-fundadora de FullCircle (www.experiencefullcircle.org). Publicou, em 2020, o livro "Rio de Janeiro, como chegamos aqui?", pela Editora Raíz.

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