ODS 1
As surpresas do ‘inverno demográfico’ na Rússia
Um dos maiores países do mundo vive processo de envelhecimento e decrescimento populacional, mas vê também a renda per capita subir e as emissões de carbono caírem
“O mais espantoso é a realidade”
Fiódor Dostoiévski (1821-1881)
A Rússia está no foco das atenções da mídia internacional desde a invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022 e terá protagonismo na pauta global neste mês de outubro de 2024, quando sediará a 16ª Cúpula do grupo BRICS, nos dias 22 a 24, na cidade de Kazan, localizada a 800 km ao leste de Moscou. O acrônimo BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) foi inventado, em 2001, pelo economista Jim O’ Neill, do banco de investimento Goldman Sachs, com o objetivo de analisar as oportunidades de investimento nestes quatro grandes países emergentes. O termo fez grande sucesso, mas carecia da presença de algum país africano. Assim, foi incluída a África do Sul (South África) e o grupo BRIC ganhou mais uma letra, se transformando em BRICS. Na 15ª cúpula, que aconteceu em Joanesburgo, em 2023, foram anunciados seis novos membros: Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Argentina, Egito, Irã e Etiópia. Mas, após a posse de Javier Milei, em dezembro de 2023, a Argentina declinou o convite. O Brasil continuou sendo o único país do hemisfério ocidental e a expansão do BRICS tem seguido a lógica da aliança sino-russa.
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Veja o que já enviamosA Rússia passou por uma década conturbada e de recessão econômica logo após o fim da União Soviética (URSS), em 1991. Mas tem apresentado recuperação nos anos 2000. A Rússia chegou a fazer parte do grupo G7 (as 7 economias capitalistas mais ricas) entre 1998 e 2014, mas foi expulsa em decorrência da invasão da Criméia em 2014. Na última década a Rússia se aproximou da China, da Coreia do Norte e do Irã formando um bloco de países que se contrapõe à ordem mundial liderada pelos Estados Unidos da América (EUA). Na 16ª Cúpula do BRICS deve haver uma nova ampliação do grupo, provavelmente, em conformidade com os interesses da Rússia e da China.
Diante da relevância da Rússia no cenário internacional e devido à sua importante posição estratégica na ordem geopolítica mundial, vale a pena conhecer um pouco da dinâmica demográfica e econômica do maior país do mundo em extensão territorial. A Rússia é uma nação de clima frio, com uma área geográfica de 17,1 milhões de km2 (duas vezes a área territorial do Brasil) e se estende por dois continentes (Europa e Ásia). Faz fronteira terrestre com Noruega, Finlândia, Estônia, Letônia, Lituânia e Polônia, Bielorrússia, Ucrânia, Geórgia, Azerbaijão, Cazaquistão, China, Mongólia e Coreia do Norte. Também possui fronteiras marítimas com o Japão e com os Estados Unidos, pelo Estreito de Bering.
A Rússia tem uma rica e complexa história e foi a principal força na formação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que se manteve como uma grande potência geoestratégica de 1917 até 1991. Com a dissolução da URSS toda a região entrou em crise econômica na década de 1990, mas tem apresentado recuperação nos anos 2000. A Federação Russa é governada por Vladimir Putin (e seus aliados) desde 1999 e, nos últimos 10 anos, tem enfrentado sanções internacionais devido à anexação da Crimeia em 2014 e à invasão da Ucrânia, em fevereiro de 2022.
Mas a Rússia é um país com forte presença internacional, fazendo parte do G20 (o maior grupo da governança global) além de ser um dos 5 membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, com direito a veto. Além de sediar a 16° Cúpula do BRICS, neste mês de outubro de 2024, a Rússia também estará representada na Cúpula do G20 que vai ocorrer nos dias 18 e 19 de novembro, no Rio de Janeiro.
Dinâmica demográfica e econômica da Rússia
A Rússia era o 4º país mais populoso do mundo em meados do século XX, atrás apenas da China, da Índia e dos Estados Unidos da América (EUA). Mas caiu para o 9º lugar em 2024, estando atrás dos seguintes países: Índia, China, EUA, Indonésia, Paquistão, Nigéria, Brasil e Bangladesh.
A população russa era de 102,6 milhões de habitantes em 1950 (quase o dobro da população brasileira da época), chegou ao pico de 149 milhões de habitantes em 1993 (praticamente igual à população brasileira) e deve cair para cerca de 126 milhões de habitantes em 2100. Comparando com o Paquistão, a população da Rússia era 3 vezes maior em 1950 e deve ficar em torno de 4 vezes menor em 2100.
Estes números assustam muitos analistas escatológicos que consideram o fenômeno do decrescimento populacional como uma crise demográfica irreversível e que levaria necessariamente ao declínio econômico e social do país. Dizem que a redução do tamanho da população representa um “suicídio populacional” ou o surgimento de um estado catatônico de “inverno demográfico”.
Porém, os dados concretos estão mostrando um cenário diferente, pois a Rússia, a despeito de todas as suas contradições e dificuldades, está vivendo uma espécie de “primavera” social e ambiental, como veremos com os dados ambientais e sociodemográficos apresentados a seguir.
O gráfico abaixo, com dados da Divisão de População da ONU (revisão 2024) e do Projeto Maddison (2023) mostra que a população da Rússia era de 133,8 milhões de habitantes em 1975, atingiu o pico de 149 milhões em 1993 e ficou em 146,8 milhões no ano 2000. Nos 25 anos entre 1975 e 2000 o volume da população russa cresceu em 13 milhões de habitantes. No mesmo período, a renda per capita, em poder de paridade de compra (ppp), que era de US$ 11,2 mil em 1975, alcançou o pico de US$ 12,8 mil em 1989 e, depois do fim da União Soviética (URSS), caiu para US$ 10,6 mil no ano 2000. Portanto, nos 25 anos em questão, enquanto a população russa crescia a renda per capita diminuía.
Mas nos anos 2000 houve crescimento econômico com decrescimento da população. O gráfico abaixo, com dados do World Economic Outlook (WEO), do Fundo Monetário Internacional (FMI), de abril de 2024, mostra que a população da Rússia que era de 147 milhões de habitantes em 1999, caiu para 143 milhões em 2008, recuperou para 146 milhões em 2019 e está estimada em 141 milhões em 2029. Entre 1999 e 2029 a população russa deve diminuir em um montante de 6 milhões de habitantes.
Porém, no mesmo período, considerando os dados do FMI, a renda per capita, em poder de paridade de compra (ppp), passou de US$ 13,3 mil em 1999, para US$ 30,6 mil em 2024 e deve ficar em US$ 33,2 mil em 2029. Portanto, no primeiro quarto do atual século, enquanto a população russa decrescia a renda per capita subia.
Dinâmica demoeconômica e emissões de carbono
A população e as emissões de carbono da Rússia aumentaram de maneira simultânea, entre 1950 e 1990, conforme mostra o gráfico abaixo. Mas a população se estabilizou e começou a cair a partir de 1993, enquanto as emissões de carbono tiveram uma grande queda após o fim da URSS em 1991. As emissões de carbono da Rússia estavam em 113 milhões de toneladas em 1950, atingiram o pico de 692 milhões de toneladas em 1990 e ficaram entre 400 e 500 milhões de toneladas anuais entre 1994 e 2022.
Portanto, houve uma forte correlação entre a dinâmica demográfica e as emissões de carbono. As emissões de dióxido de carbono da Rússia cresceram junto ao crescimento populacional e, posteriormente, as duas variáveis diminuíram em conjunto.
O gráfico abaixo mostra a relação entre a renda per capita, em poder de paridade de compra (ppp), e as emissões de carbono da Rússia entre 1950 e 2022. Nota-se que entre 1950 e 1990 as duas variáveis cresciam concomitantemente. Na década de 1990 houve uma queda tanto da renda per capita quanto das emissões. Mas nos anos 2000, houve um aumento significativo da renda per capita, que passou de US$ 8,6 mil em 1998 para US$ 25,4 mil em 2022, enquanto as emissões de carbono tiveram um pequeno crescimento, mais perto da estabilidade. Desta forma, houve um desacoplamento entre o aumento do poder de compra da população e as emissões de carbono.
A redução da pegada ecológica e do déficit ambiental da Rússia
O decrescimento da população e das emissões de carbono contribuem para uma menor degradação ambiental. A Global Footprint Network apresenta uma metodologia que avaliar o impacto humano sobre a natureza e a disponibilidade de “capital natural”. A primeira medida é chamada de pegada ecológica e serve para avaliar o impacto do ser humano sobre a biosfera. A segunda medida é chamada de biocapacidade e avalia o montante de terra, água e demais recursos biologicamente produtivos para prover bens e serviços do ecossistema, sendo equivalente à capacidade regenerativa da natureza. Ambas as medidas são representadas em hectares globais (gha).
O gráfico abaixo apresenta os valores da pegada ecológica e da biocapacidade da Rússia de 1992 a 2022. Em 1992, tanto a pegada ecológica quanto a biocapacidade da Rússia estavam em torno de 1 bilhão de hectares globais (gha). Na prática, não havia nem déficit e nem superávit ambiental. Mas nos últimos 30 anos a pegada ecológica diminuiu para 840 milhões de gha em 2022 e a biocapacidade aumentou para 1,12 bilhão de gha. O superávit ambiental cresceu e ficou em 272 milhões de gha em 2022.
O decrescimento demográfico e o mito da “Grande Rússia”
A parte do Hino Nacional Brasileiro que diz “gigante pela própria natureza” caberia mais adequadamente na Rússia, que é um país com território de 17 milhões de km2, que se estende por dois continentes e tem acesso aos oceanos Pacífico, Ártico e Atlântico, além de ter acesso ao mar Mediterrâneo via Mar Negro.
O sonho da “Grande Rússia” fez parte dos planos de modernização do Imperador Pedro, o Grande (1672-1725), prosseguiu com os Czares que o sucederam, avançou no tempo da URSS superpotência e, de várias formas, está presente na ideologia do presidente Vladimir Putin. A Rússia tem o 3º maior orçamento militar do mundo, atrás apenas dos EUA e da China.
Mas a queda da taxa de fecundidade total (TFT) e o decrescimento populacional são fenômenos demográficos vistos como ameaça ao sonho da “Grande Rússia”. De fato, a TFT russa era de 2,9 filhos por mulher em 1950, caiu abaixo do nível de reposição (2,1 filhos por mulher) em 1989, está em torno de 1,5 filho por mulher atualmente e deve ficar entre 1,5 e 1,6 filho por mulher no restante do século. Em consequência, a população russa, que estava em 149 milhões de habitantes em 1993, deve ser reduzida para 126 milhões de habitantes em 2100, segundo as projeções da Divisão de População da ONU.
Para se contrapor a esta realidade demográfica, o presidente Putin lançou o programa “Mãe Heroína”, em 2022, visando encorajar as mulheres russas a terem famílias numerosas para evitar o decrescimento populacional e garantir a geração de jovens para tocar a economia e as ambições militares da Grande Rússia. Curiosamente, o presidente Vladimir Putin não inovou e apenas reeditou um decreto do tempo de Josef Stalin (1878-1953), garantindo um prêmio com medalha e uma ajuda financeira equivalente a US$ 16,5 mil às mães russas que tiverem pelo menos dez filhos. O dinheiro só será entregue após o décimo filho vivo completar um ano de idade.
Porém, a chance de o programa “Mãe Heroína” ter sucesso é muito pequena, pois se trata de uma política machista que busca resolver a questão demográfica da Rússia via útero feminino e via o rebaixamento do status das mulheres na sociedade. De certa forma, a “Mãe Heroína”, recria a política sexista de Adolf Hitler (1889-1945) denominada “Kinder, Küche, Kirche” (crianças, cozinha, igreja), que deveria guiar a vida exemplar da mulher nazista. Não deu certo naquela época e dificilmente dará certo atualmente.
Indubitavelmente, a Rússia está em pleno processo de envelhecimento e decrescimento populacional. Mas ao invés de tratar estes fenômenos como um obstáculo ao desenvolvimento humano, o melhor seria encarar com um sustentáculo de um novo estilo de desenvolvimento social e ambiental.
A Rússia tem conseguido envelhecer e enriquecer, simultaneamente. A idade mediana da população russa era de 23 anos em 1950, passou para 40 anos em 2024 e deve ficar em 45 anos em 2100. Mas este aumento não impediu o avanço do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) que era de 0,741 em 1990 e passou para 0,821 em 2022, ficando em 56º lugar no ranking global (o Brasil está no 89º lugar).
No pensamento convencional, o envelhecimento populacional conjugado com o decrescimento demográfico costuma ser visto como “armadilha gerontológica” ou “inverno demográfico” e seria o fim da linha para o desenvolvimento humano de qualquer nação. Por outro lado, os idosos podem ser vistos como um ativo produtivo e não como um fardo que significa gastos crescentes de uma população improdutiva. O chamado “inverno demográfico” da Rússia pode se transformar em primavera social e ambiental. Se o país abandonar as pretensões militares, a redução da população deixa de ser um problema e pode se tornar uma solução.
Esta visão sobre o decrescimento populacional como oportunidade de progresso social e ambiental é apontada pelo renomado demógrafo Wolfgang Lutz, que traça um quadro bastante otimista do futuro da civilização humana se for dada prioridade à educação universal e, em particular, à educação feminina:
“Mais investimentos em educação compensam em termos de maior bem-estar, e ainda mais quando combinado com níveis de fecundidade que levam ao declínio populacional a longo prazo em países individuais e, em última análise, em todo o mundo. Portanto, esta conclusão apoia o título do artigo, que afirma que o declínio da população global não é apenas provável, mas também irá beneficiar o bem-estar humano a longo prazo” (Lutz, 2023, p. 13).
Também o demógrafo Vegard Skirbekk, autor do livro “Decline and Prosper! Changing Global Birth Rates and the Advantages of Fewer Children” (2022), argumenta que o envelhecimento e o decrescimento populacional não são fenômenos cataclísmicos. Skirbekk considera que a fecundidade muito baixa pode causar tensões fiscais e afetar negativamente o crescimento econômico. Contudo, uma TFT entre 1,5 e 2 filhos por mulher favorece a autonomia reprodutiva, a igualdade de gênero e o avanço da educação e da produtividade no mercado de trabalho. Baixa fecundidade favorece os investimentos na qualidade de vida das crianças e ajuda a minimizar o impacto humano sobre o planeta.
Portanto, o melhor cenário para a Rússia é aproveitar as oportunidades da sua dinâmica demográfica, abandonar as históricas pretensões imperialistas e investir na economia prateada, que se refere ao conjunto de atividades econômicas que abarcam as contribuições, as necessidades e as demandas da população idosa, especialmente da geração de 50 anos e mais de idade.
Ao invés de barrar a onda de envelhecimento e evitar o decrescimento populacional, o melhor seria o governo russo abandonar o pesadelo da “Grande Rússia” e investir na qualidade de vida social e ambiental. Este mesmo compromisso deveria estar presente na 16ª Cúpula do BRICS, de 22 a 24 de outubro de 2024, que irá reunir grandes países do mundo e que fariam bem em focar na consolidação da transição demográfica e da transição energética.
A agenda mais importante da governança global, do BRICS, do G20 e da ONU é a luta conjunta contra a pobreza e a fome e o combate efetivo contra o aquecimento global, contra a perda de biodiversidade e contra todo tipo de guerra entre as pessoas e as nações. Acima de tudo é preciso alcançar a paz entre a humanidade e a natureza para estabelecer uma relação harmoniosa entre a economia e a ecologia.
Referências:
ALVES, JED. Da Índia aos EUA, as desigualdades de renda entre os países do G20, # Colabora, 19/08/2024
SKIRBEKK, Vegard. Decline and Prosper! Changing Global Birth Rates and the Advantages of Fewer Children, Palgrave Macmillan, 2022
LUTZ, Wolfgang. “Population decline will likely become a global trend and benefit long-term human
wellbeing.” Vienna Yearbook of Population Research 2023, pp. 1-15.
https://pure.iiasa.ac.at/id/eprint/18893/1/Lutz.pdf
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José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.