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No Complexo de Israel, um inventário das violências do Rio

Remoções, abandono pelo estado, favelização, guerra de facções criminosas, violência e corrupção policial na trajetória de uma parte da cidade dominada por traficante com métodos das milícias e que diz ser "evangélico"

ODS 1ODS 16 • Publicada em 5 de novembro de 2024 - 09:37 • Atualizada em 5 de novembro de 2024 - 16:45

Há 10 dias, 24 de outubro, a Avenida Brasil, maior via expressa do Rio, com quase 60 quilômetros da região central até a Zona Oeste, teve o trânsito interrompida por chuvarada de tiros, que resultou na morte de três trabalhadores – um funcionário de um frigorífico a caminho do emprego, um motorista de aplicativo e um caminhoneiro – após uma desastrada (mais uma) operação policial no chamado Complexo de Israel. Foi a maior humilhação da história recente da polícia estadual: recebidos a bala, como era de se esperar, em uma região próxima à Avenida Brasil, foram obrigados a recuar pelo fracasso em romper as barreiras montadas pelos criminosos (versão oficial da PM durante o conflito) e pelo tiroteio ter colocado em risco a vida de milhares de pessoas – principal motivo alegado pelas autoridades em entrevista coletiva muitas horas depois do cessar fogo.

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O Complexo de Israel já é, desde que a área foi assim batizada, uma humilhação para as forças de segurança e o poder público do Rio de Janeiro porque seus contornos foram definidos pelos criminosos que dominam essa região, que abrange três bairros – Vigário Geral, Parada de Lucas e parte de Cordovil, mais especificamente, o sub-bairro da Cidade Alta. A história dessas comunidades serve como inventário do tratamento dado aos mais pobres pelas elites do Rio de Janeiro (e pelo poder público que elas dominam) e de como o abandono dessa região, como de outras em toda a Região Metropolitana, entregou seu controle a criminosos armados. O momento atual do Complexo de Israel também é revelador de novas características do crime organizado.

No tiroteio daquela trágica quinta-feira, as balas alcançaram ônibus na estação Cidade Alta da linha do BRT na Avenida Brasil e elas vinham, pelos relatos dos passageiros, do conjunto habitacional vizinho – a Cidade Alta, inaugurada em 1969, para abrigar moradores removidos à força de suas casas em comunidades faveladas na Zona Sul do Rio, num violento programa de erradicação de favelas desenvolvida em parceria pelo recém-criado estado da Guanabara e o governo militar, detalhado no documentário Remoção, já destacado aqui no #Colabora em coluna de Aydano André Motta. A maioria dos novos habitantes da Cidade Alta veio da Praia do Pinto, favela entre os bairros nobres da Lagoa e do Leblon, destruída por um suspeitíssimo incêndio.

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Ao ser inaugurado, o conjunto com 2600 apartamentos em 64 edifícios de cinco andares tinha áreas para jardins em volta das edificações e terrenos destinados à instalação de praças, parques e equipamentos públicos como escolas e postos de saúde. Despejados ali os pobres indesejados vindos das áreas nobres, quase nenhum desses equipamentos saiu do papel. As áreas foram sendo ocupadas por barracos – alguns construídos por moradores da Cidade Alta, que venderam seus apartamentos. Esse processo de favelização da Cidade Alta nas décadas seguintes foi semelhante ao desenvolvido nos vizinhos bairros de Parada de Lucas e Vigário Geral com o surgimento de uma série de pequenas comunidades faveladas na região.

As grandes favelas que dão nome aos dois bairros nasceram da mesma origem: terrenos às margens da ferrovia. Foi assim que nasceu o Parque Proletário de Vigário Geral, com lotes destinados a operários da Estrada de Ferro da Leopoldina – a estação ferroviária foi inaugurada no fim do século 19, mas a ocupação só começaria quase 30 anos depois. Os primeiros moradores – funcionários da ferrovia – foram aos poucos deixando o Parque Proletário: a ocupação desordenada, com a multiplicação de barracos, foi agravada com as remoções dos habitantes das favelas da Zona Sul.

Estação anterior no hoje ramal Saracuruna da Central do Brasil, Parada de Lucas – batizada com o nome de um fazendeiro (José Lucas de Almeida) da região – foi incorporada oficialmente a linha férrea na década de 1950. O trem acelerou a ocupação da área, engrossada também pelos favelados removidos da Zona Sul. As duas comunidades faveladas vizinhas foram crescendo da mesma forma – abandonadas pelo Estado, sem saneamento, com precários serviços públicos – e, com a expansão, cada vez mais próximas.

Os anos 1980 encontrariam as duas favelas – em alguns pontos, separadas por apenas uma rua – dominadas por facções criminosas rivais, grupos nascidos nas cadeias, dedicados ao comércio de drogas, em guerra por domínio de territórios. Em Vigário Geral, mandava o Comando Vermelho; Parada de Lucas era território do Terceiro Comando – a série O Jogo que Mudou a História, da Globoplay, tenta retratar essa parte do inventário das violências da cidade, com cenas sangrentas das batalhas entre as favelas batizadas sutilmente de Padre Nosso e Parada Geral.

Em 1993, esse conflito ganha um novo capítulo, igualmente revelador: no final de uma noite de domingo, 21 moradores de Vigário Geral foram executados por um grupo liderado por policiais militares que vingavam-se do assassinato de quatro PMs por traficantes da favela – o alvo principal dos criminosos era um sargento, por sua vez, conhecido por praticar extorsão. As vítimas não tinham ligações com o comércio de drogas: foram executados por morarem em Vigário Geral. Serviram de mártires para escancarar a corrupção e a violência da polícia.

Capa do jornal O Globo de 31/08/1993 com a foto dos corpos de vítimas da chacina de Vigário Geral: extermínio promovido por bando chefiado por policiais militares (Foto: Reprodução)
Capa do jornal O Globo de 31/08/1993 com a foto dos corpos de vítimas da chacina de Vigário Geral: extermínio promovido por bando chefiado por policiais militares (Foto: Reprodução)

Naquelas décadas finais do século passado, o maior problema das autoridades de segurança pública do Rio era não saber sequer qual era o maior problema da segurança pública, que era (ainda é) a violência armada e não o comércio de drogas. As poucas tentativas de centrar o enfrentamento ao crime nas armas e não nas drogas foram sabotados pelas próprias polícias. São os policiais e outras autoridades públicas que insistem, há décadas, nesta guerra às drogas, em que colecionam fracassos.

Paralelamente a este combate fracassado aos comerciantes de drogas ilícitas, que foram ficando cada vez mais organizados e mais armados, o Rio de Janeiro assistiu ao avanço das milícias – grupos nascidos dentro da própria polícia, comandados por ex-policiais, que, inicialmente, passaram a explorar essas comunidades, com base na extorsão, vendendo “serviços”: de segurança, suposta especialidade, a transporte; depois, entregas, venda de produtos, conexão com a internet.

No inventário das violências do Rio de Janeiro, traficantes e milicianos entraram em conflito – e, ao mesmo tempo, em uma espécie de simbiose. Traficantes passaram a controlar e explorar serviços e comércios típicos da ação das milícias; milicianos passaram a explorar a venda de drogas, inclusive aliando-se a facções especializadas neste comércio. Para quem mora nas comunidades faveladas da capital e da Região Metropolitana, o que era péssimo, ficou terrível. A violência armada talvez ainda seja o principal problema de segurança pública – nada é mais aterrorizante do que os tiroteios constantes, ameaça direta à vida – mas a dinâmica do crime organizado ficou muito mais complicada e assustadora.

E vamos voltar então ao Complexo de Israel, onde a polícia foi humilhada na semana passada. Os especialistas na geopolítica do tráfico de drogas afirmam que, em 2008, o Terceiro Comando Puro (TCP, sucessor do Terceiro Comando), finalmente, estendeu seus domínios à vizinha Vigário Geral. Há pelo menos uma década, o chefe do tráfico nas duas favelas é Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão, característico representante do crime organizado no Rio de Janeiro nesta terceira década do século 21.

Foi Peixão que batizou as áreas sob seu controle como Complexo de Israel – além da Cidade Alta, Parada de Lucas e Vigário, há outras oito comunidades favelas dominadas por esta subfacção do TCP, onde moram mais de 100 mil pessoas. Peixão apresenta-se como “traficante evangélico” – uma aparente aberração que, entretanto, tem outros adeptos no mundo do crime. O chefe chama seu grupo criminoso de “Exército de Arão”, personagem bíblico do Antigo Testamento, com o qual o próprio diz se identificar.

Nessa vertente da criminalidade, Peixão é acusado de perseguir católicos e, principalmente, ameaçar e expulsar adeptos de religiões de matriz africana – nos muros do Complexo de Israel, há pichações ‘Jesus é o dono deste lugar’. Em outra vertente, os traficantes não apenas vendem drogas mas, como milicianos, também exploram serviços de internet e transporte alternativo e monopolizam o comércio de produtos como gás de cozinha, garrafões de água, cigarros, carvão e material de limpeza.

Remoções à força, abandono pelo estado, ocupações desordenadas, ausência de polícia habitacional, violência policial, tráfico de drogas, corrupção policial, grupos de extermínio, extorsão, milícias, mistura de crime com religião, territórios dominados pelo terror do estado paralelo controlado pelo crime organizado: a história do Complexo de Israel ilustra bem este inventário de violências – e talvez não seja por acaso que essas violências tenham transbordado, como bem lembrou Edu Carvalho, justamente na avenida que leva o nome de Brasil.

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