Indígenas combatem as chamas no Pantanal

Povos originários lideram o combate contra a pior estiagem em 70 anos, salvando o bioma com suas brigadas

Por Júlia Moa | ODS 15 • Publicada em 16 de julho de 2024 - 09:49 • Atualizada em 15 de agosto de 2024 - 07:57

Brigadas indígenas voluntárias ajudam a combater os focos de Incêndio no Pantanal. Foto Victor Hugo Sanches/Ecoa

O breu noturno estampa o céu multiestrelado, cuja beleza é vista a olho nu por quem já teve a sorte de vivenciar um descanso ao luar pantaneiro. Recentemente, os astros desapareceram sob a claridade do fogo, que assumiu uma proporção diferente das fogueiras acesas nas rodas de viola ao som de Almir Sater, Paulo Simões e Geraldo Roca, homens que descrevem em letras o majestoso Pantanal sul-mato-grossense. O céu, que antes era apenas mistério e encantamento, nas últimas semanas ganhou uma coloração alaranjada assustadora diante das queimadas. Em meio ao calor das chamas, os primeiros a entrarem em ação para tentar conter a rapidez do arrasamento são os brigadistas voluntários, muitos deles indígenas, população que habita o maior bioma alagado do mundo bem antes dos fazendeiros chegarem.

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Perto da Terra Indígena (TI) Cachoeirinha, em Miranda, o chefe da brigada comunitária indígena Mãe Terra, Caleomar Fonseca Victor, gravou com o celular um vídeo compartilhado com o #Colabora das labaredas consumindo depressa a vegetação. “Espero que a pessoa que colocou esse fogo descontrolado tenha o mínimo de consciência na cabeça. Com esse tempo seco, é um risco grande atear fogo no Pantanal, além de ser um crime. Não sei se fizeram de propósito, aqui é uma área de [capim] braquiária, o fogo alastra facilmente. Vamos fazer o possível para tentar apagar, mas não será simples”, narrou indignado. Depois do breve registro, ele e mais 15 brigadistas enfrentaram uma jornada de 24 horas, com as devidas pausas, apagando os incêndios. Caleomar acredita que, com o passar dos anos, as ocorrências das queimadas estão cada vez mais críticas. Esse fato inclusive o fez querer atuar diretamente não apenas no combate ao fogo, mas conjuntamente na preservação da biodiversidade.

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“Nossa floresta, nascentes e córregos estavam desaparecendo; esses são pontos em que a comunidade busca alimentos. De lá para cá, conseguimos recuperar o que estava sendo destruído pelo fogo; a atuação na brigada me ajudou a cuidar ainda mais da natureza. Levamos a educação ambiental para dentro das escolas, conversamos com os jovens e sentimos a diferença positiva mesmo com todo enfrentamento diário”, avalia o chefe da brigada ao acrescentar que a maioria das famílias na aldeia ocupa-se profissionalmente com extrativismo e artesanatos. Os ensinamentos absorvidos na brigada voluntária são igualmente compartilhados com os produtores rurais da região, principalmente quando se trata de realizar limpezas adequadas na pastagem.

Em meio às cinzas das queimadas, uma pequena lagoa com jacarés resiste à destruição. Foto Fernanda Cano/ECOA
Em meio às cinzas das queimadas, uma pequena lagoa com jacarés resiste à destruição. Foto Fernanda Cano/ECOA

Há quatro anos, Caleomar e seu time fazem esse importante trabalho voluntário de iniciar as atividades, impedindo que o fogo se alastre até a chegada do Corpo de Bombeiros e da equipe do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo), do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

De acordo com os dados atualizados do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa/UFRJ), em todo o Pantanal, mais de 700 mil hectares já foram afetados por incêndios neste ano. A área devastada se aproxima do que foi registrado durante todo o ano de 2023, na faixa de 900 mil hectares.

O Pantanal de Mato Grosso do Sul abrange 9 milhões de hectares, uma área territorial quase do tamanho de Portugal, o que corresponde a 65% da extensão total da região pantaneira, que se estende também pelo Mato Grosso, Paraguai e Bolívia. Dividido em sete sub-regiões – Abobral, Aquidauana, Miranda, Nabileque, Porto Murtinho, Nhecolândia e Paiaguás -, atualmente, o bioma enfrenta a pior estiagem dos últimos 70 anos.

O Ministério Público do Mato Grosso do Sul (MPMS) apresentou um relatório acerca dos incêndios de grande proporção que tiveram início no Pantanal no período entre 10/05 e 31/06 de 2024. Nele foi revelado que 20 pontos geraram 14 grandes incêndios em uma área queimada de 292,86 mil hectares, os quais acabaram atingindo 177 propriedades rurais, 1 Terra Indígena e 3 Unidades de Conservação, além de incêndios de 39,28 hectares em território boliviano. Vale ressaltar que os números tendem a crescer, pois alguns destes incêndios ainda não foram contidos.

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Este ano, segundo o BDQueimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), 95% das ignições (início do fogo) ocorreram em especial nas margens de rios, beiras de estradas e em algumas fazendas. A minoria surgiu em parques estaduais de preservação e terras indígenas. Ou seja, não é um evento natural causado por relâmpagos ou combustão espontânea; esse tipo de fogo representa aproximadamente 5% dos incêndios florestais no Pantanal. Em junho, imagens de satélite registraram incêndios na fronteira do Brasil (Corumbá) com a Bolívia (Porto Quijarro e Porto Suarez), em Forte Coimbra (rio abaixo de Corumbá) e na fronteira com o Paraguai.

No contexto de emergência, a equipe de tecnologia do MPMS identificou até agora 11 fazendas localizadas no Pantanal de Corumbá – 70% do Pantanal sul-mato-grossense está em áreas privativas -, onde queimadas não autorizadas podem ter originado incêndios severos, devastando o bioma no início do período de seca. A área queimada em todas as 11 propriedades investigadas abarca em torno de 40 mil campos de futebol.

Na mesma TI Cachoeirinha, outra brigada voluntária se formou em 2022, a Kinikinau. Nela, uma família inteira — avó, pais, filhos e um amigo (sete pessoas) — está unida no combate ao fogo; e para ser brigadista, é necessário ter idade mínima de 18 anos. Em 2020, o pasto da aldeia Mãe Terra foi atingido pelas chamas e, diante do impacto causado, Alencar Leoncio Rodrigues sentiu que era hora de fazer um esforço e liderar o grupo de parentes que, em 2023, conseguiu evitar vários incêndios. Caso ocorra algum acidente com os brigadistas, o posto de saúde dentro da aldeia dá conta de fazer os primeiros socorros.

Por falar em medicina, Alencar destaca os remédios naturais utilizados pelos indígenas através de várias plantas e árvores centenárias encontradas no Pantanal. Com a ocorrência de incêndios nas matas, a comunidade teme pela perda dessa importante diversidade de flora curativa, fundamental para preservar os conhecimentos tradicionais e para o bem-estar das populações locais. “Minha confiança é que se formem mais equipes de brigadistas voluntários, assim evitaremos grandes incêndios. A falta de transporte para nos levar até o fogo prejudica o trabalho; quando é nas redondezas, conseguimos ir a pé; caso contrário, torcemos para conseguir carona com os companheiros que possuem carro ou moto”, afirma Alencar.

Fumaça cobre a paisagem do Pantanal. Até o início de julho, as áreas queimadas somavam 566 mil hectares, com 2.879 focos de calor detectados por satélite desde janeiro. Foto Instituto Homem Pantaneiro
Fumaça cobre a paisagem do Pantanal. Até o início de julho, as áreas queimadas somavam 566 mil hectares, com 2.879 focos de calor detectados por satélite desde janeiro. Foto Instituto Homem Pantaneiro

A ONG Ecoa atua na prevenção e combate aos incêndios desde 2000 com a campanha Queimada Mata. O trabalho de formação das brigadas comunitárias voluntárias teve início em 2006, com as comunidades da Barra do São Lourenço e Porto Amolar, como apoio ao Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense, que naquele ano iniciava a contratação de brigadistas para atuar na unidade. Hoje, o Pantanal possui mais de 50 brigadas, sendo 23 delas coordenadas por André Luiz Siqueira, diretor da Ecoa, e envolvendo moradores de assentamentos rurais, aldeias indígenas distribuídas entre as cidades de Miranda e Nioaque, e comunidades ribeirinhas. O Centro de Apoio Socioambiental (CASA), o Instituto de Conservação de Animais Silvestres (ICAS), o Ministério Público do Trabalho (MPT/MS), a SOS Pantanal e o WWF Brasil apoiaram a formação — conduzida pelo Prevfogo/Ibama — e os equipamentos das brigadas voluntárias no Pantanal, que operam principalmente no Mato Grosso do Sul.

São cinco as brigadas voluntárias indígenas formadas pela Ecoa: duas na TI Cachoeirinha, nas aldeias Mãe Terra (etnia terena) e São Miguel (etnia kinikinau); duas na TI Nioaque, nas aldeias Brajão (etnia terena) e Água Branca (etnia terena); e uma na TI Lalima (etnia terena), atualmente desmobilizada.

“Os indígenas são os combatentes mais efetivos, tanto os kadiwéu quanto os terenas, são extremamente fortes, organizados e conhecem o terreno como a palma da mão. Existe o interesse de ampliar, porém esbarramos na limitação orçamentária do próprio governo para a contratação de brigadistas indígenas. Quanto mais, melhor”, pontua André. Ele observa que muito tem sido feito pelo governo federal e estadual, contudo falta um trabalho profundo de comunicação e, sobretudo, começar mais cedo o trabalho de prevenção do fogo.

Siqueira argumenta que a região do bioma sofre muita influência dos fenômenos climáticos El Niño e La Niña, e que carece da criação de um centro de operações climáticas do Pantanal, onde deveriam estar conectadas todas as agências de previsão climática – registros de volume da água, calha do rio, temperaturas etc – para a produção de modelos preditivos. Isso auxiliaria no melhor entendimento de todos os profissionais interagindo dentro de uma única estrutura que possibilite divulgar estudos assertivos com antecedência e de fácil compreensão por parte da população mais afetada, como a do campo.

“Não podemos achar que o Pantanal é resiliente e que depois das queimadas, no outro ano, ocorrerá a recuperação. Temos impactos significativos na fauna e flora, na migração de espécies, nos polinizadores, na saúde humana e na perda de renda em diversas categorias de trabalho que dependem dos recursos naturais. Obviamente, os incêndios e a seca atrapalham bastante”, pondera o diretor.

Domadores de chamas e paisagem apocalíptica

 A chefe de esquadrão na brigada Kadiwéu 3, Luciana Correa da Silva, vive na TI Kadiwéu, aldeia Tomazia, na cidade de Porto Murtinho. São seis aldeias e duas brigadas mantidas pelo Prevfogo; diferente das voluntárias, essa turma é contratada por 6 meses para exercer a tarefa. Luciana não é a única mulher na brigada, aliás, os rostos femininos são comuns em ambos os times. Ela, que está em missão junto com o marido, diz que este ano o panorama está perigoso, pior do que os anos anteriores, devido às mudanças climáticas.

O trabalho do esquadrão se concentra na área do cerrado e uma pequena parte do Pantanal, e o que mais a preocupa é o desmatamento na floresta e vegetação nativa. “O meu desejo é que um dia possamos chegar ao nível de fogo zero no nosso território. Eu gosto muito do que faço, não tem sentimento que explique, é como se o fogo corresse nas veias no lugar do sangue. E quem está dentro da brigada não quer sair, e quem está fora quer somar conosco”, explica. Luciana comenta que não é tranquilo combater um incêndio florestal e que eles são orientados a trabalhar sempre do lado oposto da fumaça para evitar desgaste físico.

Baseado em Corumbá, no Parque Marina Gatass, o Prevfogo MS totaliza 145 brigadistas contratados, sendo 45 corumbaenses e 100 indígenas, divididos em 6 brigadas, das quais 5 são dos povos originários. Dessas, 3 são da etnia terena, nas aldeias Limão Verde e Taunay Ipegue, em Aquidauana, e Cachoeirinha, em Miranda; e 2 são da etnia kadiwéu, nas aldeias Tomazia e Alves de Barros, em Porto Murtinho.

“A relevância da brigada indígena se dá por duas características marcantes. Primeiro, eles possuem conhecimento territorial completo; mesmo com a extensão de 540 mil hectares nas terras indígenas, todos os brigadistas têm competência. Eles nasceram e vivem ali. Segundo, a sabedoria tradicional de manejar o fogo e saber controlá-lo para a confecção de roças, que faz parte da ancestralidade e cultura indígena brasileira”, aponta Márcio Yule, coordenador do Prevfogo em MS.

Num cenário de destruição semelhante ao de 2020, quando cerca de 17 milhões de vertebrados morreram, diversos animais mortos – como jacarés, javalis, cobras e macacos – estão surgindo conforme o fogo diminui. A artesã Leonida Aires de Souza, residente na comunidade tradicional da Barra do São Lourenço, na Serra do Amolar, próxima à divisa com o Mato Grosso, a cinco horas de barco de Corumbá – lar de indígenas guató e ribeirinhos – relata que o fogo não chegou àquelas bandas. No entanto, o efeito da fuligem e da fumaça no ar causa dores de cabeça, incômodo nos olhos e sangramento nasal em crianças, adultos e idosos nativos. Dona Leonida também lamenta o enfraquecimento dos rios que, consequentemente, esgota o volume de águas das baías, dificultando a colheita das iscas para a pesca e a retirada dos aguapés, matéria-prima do artesanato pantaneiro com as fibras da planta.

Na capital pantaneira, Corumbá, os moradores enfrentaram dias de condições insalubres, inalando fumaça e limpando as casas várias vezes ao dia para remover as cinzas que caíam como neve, enquanto o sol estava obscurecido pela densa fumaça. Até o momento, não há expectativa de chuva. “Populares ribeirinhos tiveram que deixar suas residências, a escola Jatobazinho, próxima à lagoa Baía Vermelha e que atende crianças pantaneiras, precisou encerrar temporariamente suas atividades. Inúmeras pessoas buscaram atendimento nos postos de saúde devido às complicações causadas pela condição do ar vaporoso e contaminado”, desabafa João Gabriel Santos Nascimento, estudante que vive em Corumbá há 35 anos e nunca presenciou algo semelhante, especialmente nesta época atípica do ano. “O que vemos é uma paisagem apocalíptica”.

Perda de água no Pantanal

Tecendo um paralelo com o que se deu em 2020, o biólogo e professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), José Sabino, relembra que quase 30% da área total do Pantanal queimou em uma escala sem precedentes. A diferença é que o fogo se intensificou em agosto e setembro, historicamente o período mais seco. Em 2024, o fogo potencializou antes, no primeiro semestre, e bateu recordes quando comparado ao mesmo período de 2020.

Há uma estiagem severa em curso e, para piorar, na região da Bacia do Alto Paraguai (BAP), onde se localiza o Pantanal, choveu pouco. Em média, as chuvas acumulam entre 1200 a 1300 mm por ano; em 2024, o acumulado foi por volta de 60% desses valores. Como resultado, choveu bem menos e áreas de campos, que normalmente ficam alagadas, sequer receberam água. Somada a essa seca intensa, no final de 2023, tivemos ondas de calor vigoroso no centro e sul do Brasil, o que deixou a vegetação excessivamente seca e propícia para os incêndios.

Com relação à queda de mais de 60% na superfície de água no Pantanal em 2023, Sabino menciona que praticamente toda água que o Pantanal recebe vem das chuvas dos planaltos no entorno, e mesmo os índices pluviométricos são equivalentes aos da caatinga. Alguns estudos indicam que o número de dias com chuvas está diminuindo, visto que as chuvas na BAP estão mais concentradas e intensas. Ao invés de chover 100 mm divididos em 4 ou 5 dias, chove 100 mm em poucas horas, consequentemente a água escorre superficialmente sem ter capacidade de se infiltrar no solo e, portanto, sem recarregar o lençol freático. Em relação ao fogo, o biólogo é categórico, “A situação é desesperadora. Infelizmente, o período mais seco está apenas começando e deveremos ter problemas sérios para a fauna e flora”.

Operação Pantanal

Para verificar os estragos causados pelos incêndios no bioma, as ministras Marina Silva, do Ministério do Meio Ambiente (MMA), e Simone Tebet, do Ministério do Planejamento e Orçamento (MPO), sobrevoaram o Pantanal acompanhadas pelo secretário-executivo do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), Valder Ribeiro de Moura, e pelo governador de MS, Eduardo Riedel (PSDB).

O boletim divulgado pelo governo de Mato Grosso do Sul destaca que, atualmente, não há incêndios florestais no Pantanal-sul-matogrossense. A repercussão é fruto do esforço contínuo das brigadas voluntárias e das ações coordenadas pelo governo estadual, que envolvem militares e brigadistas atuando por terra, água e ar, além de contar com condições climáticas favoráveis. A preocupação vigente é com a queima lenta dentro das áreas já queimadas, especialmente em troncos de árvores.

Desde o início do ano até 9 de julho, dados do LASA-UFRJ indicam que 594 mil hectares foram queimados no Pantanal sul-mato-grossense, representando 6% dos 9 milhões de hectares da região no estado. Esse número é 159% maior em comparação ao mesmo período de 2020, quando 229,4 mil hectares foram queimados, até então considerada a pior temporada de incêndios.

Todas as regiões do Pantanal continuam sob constante monitoramento, utilizando drones e a Sala de Situação na capital, Campo Grande.

Júlia Moa

Júlia Moa é jornalista multimídia; vencedora do prêmio Respeito e Diversidade do MPF.

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