ODS 1
Catarina Guató: a indígena doutora em preservação do Pantanal
Artesã utiliza o aguapé, planta aquática abundante no bioma, para transmitir a cultura do seu povo e movimentar a sociobioeconomia entre as mulheres
O povo Krenak costuma conversar com os rios e montanhas, eles sabem que é possível sentir a energia da natureza. Os yanomamis torcem para que os cantos dos xamãs não deixem de ser ouvidos pelas floresta, são esses espíritos que reforçam o céu quando esse ameaça desabar sob as nossas cabeças. Já para os guató, os primeiros habitantes e eternos guardiões do Pantanal – ou Guadakan, palavra sagrada que nomeia a maior planície de inundação do mundo, a força espiritual presente no território protege a comunidade, porém exige, em troca, uma conduta ética de amor e zelo por parte de todos os indígenas.
Leu essa? Ailton Krenak: ‘Agroecologia devia acontecer agora em uma escala planetária’
E, como a sabedoria ancestral é algo levado muito a sério por ali, uma das filhas dessas águas pantaneiras, a canoeira e artesã da sociobioeconomia Catarina Ramos da Silva, ou Catarina Guató, como é conhecida, desde 1974 domina a prática de fazer arte com o aguapé: espécie de planta aquática denominada camalote, similar a um grande tapete verde flutuante, vista em boa parte do rio Paraguai.
Celebrada recentemente com o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), aos 73 anos, diante da sua caminhada de resistência, fomentação da cultura indígena e da educação ambiental aliada aos cuidados com a natureza, Catarina pediu em seu discurso respeito a todas as formas de existência na região, principalmente para os guató. “Precisamos que nossas terras, rios e peixes sejam devolvidos para nós. Só assim, as gerações futuras de todos os povos conhecerão o Pantanal”, declarou.
Sua ascendência guató, população tradicional do Mato Grosso (MT), Mato Grosso do Sul (MS) e parte da Bolívia desde tempos imemoriais, entre 1950 e 1970, foi tida como extinta pelo governo brasileiro. No entanto, o curso do rio da vida, sinuoso e cheio de surpresas, estava prestes a mudar radicalmente o destino da jovem Catarina. No mesmo período, em 1976, em que a missionária salesiana Ada Gambarotto encontrou na periferia de Corumbá (MS) a artesã Josefina, descendente dos guató, e a partir daí começou o processo de identificação e mobilização de vários indígenas da etnia que viviam nas cidades do entorno do Pantanal — a maioria em situação de vulnerabilidade — Catarina também viveu um momento de forte reconexão e amor-próprio em sua trajetória.
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosEssa mesma senhora, Dona Josefina Alves Ribeiro, falecida em 2012, que lançou luz sobre a permanência guató, foi quem encorajou Catarina a romper com o ciclo de violência doméstica. Ela era sua sogra e não apenas incentivou a nora, até então dona de casa, a se separar de seu filho, mas também ajudou no cuidado dos cinco netos e ensinou a técnica do trançado do aguapé, transmitida oralmente para as gerações femininas.
“Na época, eu precisava sustentar meus filhos, e minha sogra explicou como utilizar o aguapé para fazer o artesanato. Eu gostei e sigo até hoje produzindo e dando aulas em oficinas e cursos para as mulheres ribeirinhas que precisam ganhar seu próprio dinheiro”, sintetiza Catarina. Inicialmente, ela aprendeu com Dona Josefina a confeccionar apenas três produtos: uma bolsa, um sousplat e um tapete no formato de coração. Depois, o potencial criativo guiou as habilidosas mãos na feitura de mochilas, cintos, colares, cestos, chapéus e tudo mais que a imaginação de quem vive em um santuário da biodiversidade brasileira (ameaçado constantemente) pode proporcionar.
Nascida na Terra Indígena Guató mais isolada do MS, na Ilha Ínsua, Aldeia Uberaba – o local pertence ao município de Corumbá e está a 36 horas de barco da área urbana da cidade, na divisa entre Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, fronteira com a Bolívia – quem por ali reside pode contemplar a exuberância da Serra do Amolar. Entre altos e baixos e algumas mudanças geográficas, Catarina foi alfabetizada na fase adulta e criou os filhos com a arte do trançado do aguapé. Aos poucos, sua rede de apoio foi crescendo e ela conquistou a ajuda necessária para viajar livremente pelos rios pantaneiros, compartilhando com mulheres e crianças a atividade manual oriunda de seus antepassados.
A rotina da artesã é disciplinada e envolve acordar bem cedo, alugar uma canoa no Porto Geral de Corumbá – que já foi o terceiro maior porto fluvial da América Latina – e seguir remando rio acima até os aguapés distantes das impurezas da cidade. Cuidadosamente, observando se existe a presença de cobras camufladas na vegetação, Catarina seleciona com as mãos os caules, nunca mais do que três talos da mesma planta, senão ela morre, e é imprescindível mantê-la ativa, pois o aguapé remove poluentes pesados da água, além de servir como fonte de alimento para diversas espécies.
Com os maços de caules necessários postos em sua embarcação, a próxima etapa é levá-los de carro até a Casa do Artesão para secar ao sol em varais; posteriormente, a matéria-prima estará apta para ser transformada pacientemente em artesanato.
O jornalista Fabio Pellegrini documentou a história da guató no livro “Vozes”, edição especial de artesãos sul-mato-grossenses, publicado pela Fundação de Cultura do Mato Grosso do Sul (FCMS) em 2011, que foi distribuído em bibliotecas e instituições de ensino. O encontro rendeu uma boa amizade e Pellegrini, encantado com a riqueza cultural de Catarina, escreveu um projeto aprovado pela Fundação Nacional de Artes (FUNARTE) que possibilitou à indígena dar cursos em várias comunidades ribeirinhas no Pantanal, munida de fiel escudeiro, o aguapé.
“Foi muito legal conhecer e ajudar a Dona Catarina. Periodicamente, ela visita os amigos e os parentes no Pantanal. Esse reconhecimento dado pela UFMS depois de tantos anos de sofrimento, além dos povos originários serem rejeitados no país, é maravilhoso. Sou grato por ter contribuído com a amplitude e o empoderamento da presença dela”, comemora o jornalista.
De 2011 para cá, várias instituições apoiaram o trabalho da artesã, e em 2015, as moradoras da comunidade tradicional da Barra do São Lourenço, onde Catarina morava na época, localizada na Serra do Amolar, fundaram a Associação das Mulheres Artesãs da Barra do São Lourenço – Renascer, com o suporte da juíza federal Raquel Domingues do Amaral e da ONG Ecoa.
Visando à passagem de conhecimento e geração de renda, a Renascer possui atualmente seis integrantes e é presidida pela irmã de Catarina, a artesã Leonida Aires de Souza. Todas produzem artesanatos e acessórios a partir da fibra de aguapé e atendem encomendas de todo o Brasil. Inclusive, já receberam convite para produção em larga escala da empresa de móveis e decoração Tok&Stok (recusaram por se tratar de um artesanato diferenciado focado na sustentabilidade, nada a ver com a proposta comercial da marca) e participam sempre que podem de feiras e exposições.
“Eu estava muito revoltada com o trabalho de coletora de iscas [para pesca turística] que eu fazia, e que muitas mulheres ribeirinhas ainda fazem, aqui no Pantanal. Precisava ficar enfiada no ‘banhado’ [dentro da água] muitas horas, e com isso, nós corríamos o risco de adquirir várias doenças. Com a intenção da minha irmã de não deixar morrer os princípios do artesanato guató, ela ensinou para as irmãs o trançado correto (que só ela sabe) do aguapé para que pudéssemos fazer as peças. Criamos a associação que originalmente foi administrada por ela”, recorda Leonida, que reside na Barra junto a 22 famílias, ocupando a Terra Indígena em suas moradas de palafitas e outras aterradas, até agora não demarcada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI).
Leonida enfatiza que a Renascer está aberta a todas as mulheres pantaneiras que queiram se unir ao time para trabalhar no artesanato de aguapé e na produção de doces com frutas e sementes nativas. Ela revela que a vontade é ser um centro de apoio tanto para Mato Grosso do Sul quanto para o Mato Grosso.
Questões de gênero e meio ambiente
De acordo com um levantamento do Grupo de Trabalho em Gênero e Clima, as indígenas estão na linha de frente das ações que protegem a biodiversidade do planeta, buscando soluções efetivas para problemáticas que vão desde as pautas climáticas até a nefasta destruição causada pela ação do homem. As mulheres também atuam na agricultura familiar, levando alimento saudável para os pratos da população brasileira, no protagonismo da mobilização social por fontes de energia limpa e segurança hídrica, e, cada vez mais, se destacam no ativismo ambiental da juventude.
Povoada por ribeirinhas, indígenas e quilombolas, as áreas pantaneiras são palco para figuras femininas assumirem a liderança nas comunidades. Uma pesquisa realizada pela Universidade de Yale concluiu que as mulheres estão mais conscientes no que se refere aos riscos que as mudanças climáticas representam para si e para os outros. E, consequentemente, possuem maior consciência e envolvimento em relação à preservação do meio ambiente.
“A Ecoa trabalha em parceria com a comunidade tradicional da Barra do São Lourenço no apoio a várias iniciativas. Acompanhamos a criação e o desenvolvimento da Associação de Artesãs da Barra do São Lourenço (Renascer), cuja primeira presidenta foi a Dona Catarina Guató, a maior detentora de saberes do trabalho de extrativismo sustentável do aguapé e confecção do artesanato a partir dessa espécie aquática. Dona Catarina é responsável por ensinar todas as viventes do Pantanal a produzirem este artesanato. E o impacto disso se revela nas práticas de conservação ambiental, pensadas e desenvolvidas pelos povos locais; e na geração alternativa de renda, contribuindo diretamente para a autonomia financeira e econômica das mulheres ribeirinhas na planície da Bacia do Alto Paraguai”, aponta Nathalia Eberhardt Ziolkowski, diretora presidenta da Ecoa.
Nessa perspectiva, visibilizar todo o trabalho feito pela artesã vai além das questões comerciais; trata-se de assegurar uma cultura, boas práticas ambientais, sociais e econômicas. Ela representa um ecossistema extremamente valioso.
Em 2022, Catarina ficou em primeiro lugar com o projeto “Sabedorias Compartilhadas” no Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, promovido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Admirador da inspiradora narrativa de Catarina, Aguinaldo Silva, professor e diretor do Campus do Pantanal da UFMS, foi quem indicou o nome dela para receber o mérito acadêmico atribuído a personalidades que serviram de exemplo para a comunidade universitária e sociedade. Silva diz que o nome Catarina Guató significa garra, força, resistência, conhecimento, bondade e, acima de tudo, uma mulher que procura ensinar o que aprendeu ao longo dos anos para outras mulheres pantaneiras, mantendo viva a cultura e a história do povo guató.
“Essa homenagem destaca a importância do conhecimento científico e tradicional para o desenvolvimento do país de maneira sustentável e mais humana. Catarina é um exemplo de como podemos mudar o rumo da nossa vida em busca de dignidade, respeito, liberdade e trabalho, sem abandonar os interesses coletivos”, analisa o professor.
Mato Grosso do Sul: o pior lugar do mundo para ser indígena
O rico Mato Grosso do Sul bebe diretamente na fonte do agronegócio. Conhecido pelo slogan “O agro é pop”, transmitido nas propagandas da Rede Globo desde 2016, e pelas águas cristalinas de Bonito, a premiada capital do ecoturismo, chama a atenção internacional para uma estatística assustadora: o estado, que possui a terceira maior população indígena do Brasil – com 116.346 mil pessoas de nove etnias (guarani, kaiowá, terena, kadiwéu, kinikinau, kamba, atikun, ofaié e guató) – ficando atrás apenas do Amazonas e da Bahia, registra os piores índices de violações dos direitos humanos contra povos originários no mundo. São mais de 100 anos de luta pela sobrevivência dos guarani-kaiowá, uma guerra declarada entre fazendeiros e indígenas na disputa territorial que já chegou à relatoria das Nações Unidas (ONU). Enquanto o governo federal toma a passos lentos decisões eficazes em relação aos direitos à existência dos indígenas, vale relembrar que o MS é a casa do grande líder guarani ñandeva Marçal de Souza, assassinado covardemente em 1983 por defender diuturnamente os seus companheiros(as).
Possivelmente, de acordo com o levantamento dos censos oficiais, a população guató hoje deve girar em torno de 5 mil pessoas, embora a maioria se autodeclare como pardo e ribeirinho. A estimativa é de cerca de 500 aldeados no Pantanal.
Uma curiosidade sobre esses canoeiros é que eles são os precursores do Stand Up Paddle, esporte surgido no Havaí (EUA) na década de 1940, onde os praticantes remam em pé sob uma prancha. Os guató fabricam a própria canoa e o remo da madeira dos troncos das árvores e trafegam em pé, atentos aos movimentos das correntezas e dos animais, pelos rios pantaneiros há séculos.
Se por algum período o Brasil tenta aniquilar a memória e a cultura afroindígena tão vitais na construção da pátria, é quando a força espiritual dos encantados, que protegem as nossas matas, se manifesta, impedindo o que os yanomamis creem como a queda do céu.
“A minha vontade como presidenta da associação Renascer é que o nosso Pantanal seja preservado. Nós somos exatamente isso, a preservação da vida, da família e do meio ambiente. Para onde essa mensagem for, eu quero dizer que as pessoas amem mais a natureza e a respeitem; sem ela, nós não somos nada. Abaixo de Deus, é a natureza que nos dá a vida”, afirma Leonida.
Quer contribuir com o trabalho da Associação Renascer ou adquirir o artesanato guató?
Instagram: @renascerpantanal
Contato: 67 998475692
Relacionadas
Júlia Moa
Júlia Moa é jornalista multimídia; vencedora do prêmio Respeito e Diversidade do MPF.