ODS 1
Forró perde espaço nas grandes festas juninas do Nordeste, que miram no turismo e apagam tradições
Diminuição de show do forrozeiro paraibano Flávio José para dar lugar ao sertanejo Gusttavo Lima é a ponta do iceberg da apropriação cultural, que valoriza mais audiência e lucro
Ficou no passado o São João comunitário, festa que representava a mais legítima tradição da cultura nordestina. Hoje, o passatempo artesanal deu lugar a eventos que envolvem contratos milionários com grandes marcas de bebida e comida, canais de TV em busca de audiência maciça e multidões que crescem ano após ano. Como mexem com a economia de cidade inteiras, as próprias prefeituras apostam no apelo comercial que, num efeito colateral igualmente crescente, tira o espaço dos artistas regionais. Os palcos passam a ser de atrações vindas de outras regiões do país, em especial campeões de popularidade do Centro-Oeste e do Sudeste.
A mudança, que vem se desenhando há alguns anos, ganhou repercussão nacional com a redução de meia hora na apresentação do cantor de forró Flávio José, no São João de Campina Grande (PB), no dia 2 de junho, para ampliar o tempo do pop sertanejo Gusttavo Lima. Ficou evidente a apropriação cultural e econômica da tradição nordestina. Vários artistas se revoltaram com a nova (e estrangeira) ordem na festa típica do Nordeste.
“Não tenho nada contra parceria público-privada, se for bom pra todo mundo, ótimo. Mas não se pode fazer uma festa e o convidado ser o ator principal”, critica o músico cearense Santanna, o Cantador, que conquistou o público com o sucesso “Ana Maria”. Há anos, a festa de Campina Grande, autointitulado o maior São João do Mundo, passou a se organizar em polos e contratar grandes empresas do ramo de eventos.
Os palcos centrais, com estruturas maiores e mais espaço, recebem cantores de gêneros variados como gospel, axé music e sertanejo universitário. Nas áreas de periferia, ficam artistas regionais, que movimentam a cadeia cultural local.
As tradições juninas acabam, assim, customizadas. O historiador e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Severino Vicente identifica que a virada de chave na forma de vivenciar o São João ocorreu quando o Brasil deixou de ser um país rural e passou a ser capitalista. Nessa fase inicial, explica ele, as pessoas celebravam o São João na área urbana, lembrando do campo. Com a concentração do centro financeiro e econômico na região Sudeste, a mídia eletrônica nacional privilegiou a programação de Rio e São Paulo, transformando-a em ideal para o resto do Brasil e atacando a diversidade regional do país. “Assim, o São João vira evento para turistas. Passa a ser feito para que quem tem dinheiro sair de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e vir encontrar os seus ídolos do Sudeste. É uma adaptação da festa ao gosto do freguês”, explica.
A empresa que venceu o pregão eletrônico para elaboração do São João de Campina Grande é a realizadora de um dos maiores eventos de agropecuária do Nordeste, a Expocrato. Ela deve pagar R$ 355.655,91 para realizar o evento deste ano e de 2024.
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A outra festa gigante do Nordeste, em Caruaru (PE), conhecida como a Capital do Forró, vai durar 65 dias. As apresentações tiveram início no dia 28 de abril, nos polos instalados na zona rural. Pelo espaço central, o Pátio Luiz Gonzaga, passam cantores gospel, sertanejo, axé music, brega, música cubana e frevo. O paraibano Flávio José se apresentou na cidade, mas no palco do Pólo do Alto do Moura, a sete quilômetros do centro.
Já em Campina Grande, além do sertanejo, representado pelo cantor Gusttavo Lima e outros nomes, teve música eletrônica, MPB, piseiro e outros ritmos. A estrutura envolve o Parque do Povo, oferece palcos e ilhas de forró.
Joana Alves, presidenta da Associação Cultural Balaio do Nordeste (ABCN), que reúne músicos regionais e tem sede na Paraíba, considera que “o São João de Campina Grande foi o modelo para outras cidades em que a tradição se perdeu”. Ela acredita que a desvalorização da tradição é o pano de fundo para fatos como o que envolveu Flávio José. “Não tem valorização da tradição, os artistas estão sendo desrespeitados no palco. É particular, a família não entra mais, pois tudo é caro”, sublinha.
Para o historiador Severino Vicente, o modelo atual da programação junina se distanciou muito da sua essência. “O São João é uma festa de partilha de alimentos. Um faz a canjica, que leva para o outro e traz a pamonha. A força do indivíduo do modo capitalista rompeu com essa partilha, esse senso de comunidade e a festa atual assimila esse formato”, detalha.
O músico Santana reforça que “os artistas não têm culpa alguma de serem contratados e os empresários também não”. No entanto, prossegue ele, o ponto crucial é a “colonização cultural” que a região está vivendo. “Pela forma como se comporta, o Nordeste virou uma colônia dentro do Brasil. A região só interessa quando dá lucro ao Sudeste. A nossa festa é a maior, porque é diferente. Agora, pode se perder, virar uma festa qualquer, se o mercado dominar”, lamenta.
Coordenador do projeto Forrozeiros PE, que divulga artistas regionais mais experientes e outros em início de carreira, o produtor cultural Cláudio Rocha critica a falta de espaço, “cada vez mais comum”, aos músicos pé de serra. “Em Caruaru, eles ficaram reduzidos ao Alto do Moura, poucos acessam o palco principal. É toda uma classe que trabalha tanto o ano todo e chora porque fica de fora no dia da festa mais importante”, desabafa.
Na contramão
O São João do Recife trilhou caminho na contramão das demais cidades nordestinas. Na cidade a festa junina é animada apenas por artistas regionais. Os 20 dias de programação acontecem em 13 polos, distribuídos em várias regiões, que recebem artistas de forró, coco de roda, xaxado e samba de latada, todos ritmos derivados do forró.
A programação não conta com patrocínio privado e é organizada pelas secretarias municipais, afirma o presidente da Fundação de Cultura do Recife, Marcelo Canuto. Para compor a programação, a prefeitura lança edital para selecionar os artistas. O gestor avalia que esse modelo tem sido bastante positivo. “Valoriza os artistas locais, as agremiações, os cantores, que é o nosso compromisso. Aquece a economia local, a rede hoteleira, de gastronomia e o setor informal também sai ganhando”.
Ecos em Brasília
A Associação Cultural Balaio do Nordeste reúne artistas locais, desenvolve projetos sociais para divulgar e gerar renda para músicos regionais. A entidade integra o Fórum Nacional do Forró Raíz, responsável por cobrar políticas públicas de preservar a tradição do gênero. Joana Alves revela que, dia 29 de março, o grupo esteve reunido com a ministra da Cultura, Margareth Menezes, em Brasília, para discutir meios de valorizar o forró raíz. “Estamos formulando um Projeto de Lei para regulamentar as festas de São João, pensando nos artistas locais. Queremos virar patrimônio cultural nacional”, planeja Joana, que formalizou as propostas em carta à ministra.
O #Colabora entrou em contato com a assessoria de comunicação do órgão de cultura da Prefeitura de Caruaru para saber sobre os critérios para inserir artistas locais na programação. A assessora marcou a entrevista, mas, em seguida, não atendeu as nossas ligações.
Já a assessoria de comunicação da Prefeitura de Campina Grande até o fechamento desta reportagem, não havia respondido ao nosso contato por e-mail. Também procuramos a assessoria do cantor Flavio José para saber a sua opinião sobre a forma como a organização das festas juninas envolve os artistas locais. Por meio de mensagem instantânea, a resposta foi que ele está em turnê, “impossibilitado de atender à imprensa”.
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Jornalista, nordestina do Recife. Tem experiência na cobertura de pautas investigativas, nas áreas de Direitos Humanos, segurança alimentar, meio ambiente e gênero. Foi assessora de comunicação de parlamentares na Câmara Municipal do Recife e na Assembleia Legislativa de Pernambuco. Foi assessora da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e, como freelancer, contribuiu com veículos como O Joio e O Trigo, Gênero e Número, Marco Zero Conteúdo e The Brazilian Report.