Guardiã da tolerância de gênero

Maria Eduarda Aguiar participa do julgamento no Supremo que discute a criminalização da homofobia e transfobia

Por Aydano André Motta | ODS 5ODS 8 • Publicada em 28 de junho de 2020 - 08:13 • Atualizada em 29 de junho de 2020 - 09:40

Maria Eduarda Aguiar: advogada, trans e ativista pela tolerância. Foto de Paulo Marcos de Mendonça Lima

O maior troféu da vida de Maria Eduarda Aguiar da Silva mora em cima do coração. O sorriso de vitória emoldura o ato de puxar (de dentro do sutiã) a carteira vermelha, de couro, com o símbolo dourado da Ordem dos Advogados do Brasil. Dentro, ao lado da foto sorridente, o documento ostenta o nome que ela escolheu — repetindo, como um mantra: Maria Eduarda Aguiar da Silva, advogada.

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Abri portas que nem existiam

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Batismo de coragem e inclusão, da primeira transexual no Rio de Janeiro a carregar o nome que expressa sua identidade de gênero na identificação profissional. Conquista preciosa, de uma luta permanente, moldada no sofrimento da infância, que continuará pela vida afora, pelo direito de exercer a própria sexualidade, num país de intolerantes.

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Semana passada, ela ocupou o plenário do Supremo Tribunal Federal, no debate sobre a ação que pede a criminalização da homofobia e transfobia. Com firmeza e desenvoltura, não se intimidou na mais alta corte do país para defender a óbvia necessidade da mudança na legislação, enfrentando até um advogado evangélico, que tentou desqualificar seus argumentos.

Maria Eduarda no plenário do Supremo: afirmação na luta LGBT+. Foto: reprodução/STF
Maria Eduarda no plenário do Supremo: afirmação na luta LGBT+ (Foto: reprodução/STF)

Está longe de ser pouca coisa — porque representatividade importa demais. Quer conferir? Numa quarta de julho de 2018, uma travesti chegou à sede carioca do Grupo Pela Vidda (ONG tradicional de auxílio à comunidade LGBT), num conjunto de salas na Avenida Rio Branco, Centro do Rio, para fazer teste de HIV. Ao encontrar Maria Eduarda, despiu-se da cautela protocolar das vítimas de preconceito. “Você é travesti também?”, perguntou, com sorriso de quem se sente acolhida. “Falei para ela que tudo é possível conseguir”, recorda a militante dos Direitos Humanos e presidente da instituição.

“Fui a primeira em muitas coisas”, relata, conjugando orgulho e lamento. “Abri portas que nem existiam”. Como líder e pioneira, desbrava caminhos para outras transexuais, que se veem representadas e protegidas ao encontrar uma igual — e advogada. É muita coisa: tratadas com repulsa, discriminadas ao máximo, elas raramente conseguem trabalhar no que gostariam. Assim, Maria Eduarda está na conta do milagre, uma das 65 advogadas trans registradas no Brasil em 2018.

Entre um caso e outro nas áreas cível e trabalhista, ela dedica a maior parte da carreira à batalha incessante contra a homofobia e a transfobia, especialmente na defesa das vítimas de agressão e violações variadas. “Virou a minha missão”, assume. “A gente não passa nada à toa nessa vida”.

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Quero o pacote completo. Pretendo casar e ainda vou pensar sobre filhos

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E em matéria de sufoco, Maria Eduarda tem PhD. Catarinense nascida em 1980, migrou com a família para o Rio quando tinha 8 anos, e já vivia torturada pela angústia de uma sexualidade diferente da indicada por seu corpo. Guarda a lembrança de, aos 5, ter apanhado em casa, e silenciado sobre o assunto. “Comecei a experimentar roupas de mulher, e me senti bem. Não sabia dizer à minha mãe o que eu queria”, recorda. “Preferi manter oculto. Não consegui sair do casulo”.

Na escola, passou por todo o calvário do bullying que persegue pessoas como ela. Sofreu pelo sotaque sulista e pelo jeito “diferente” dos outros meninos. Vivia isolada, sofrendo calada com as ofensas e agressões. Aos 13 anos, os hormônios do florescer da adolescência trouxeram o entendimento. “Queria ser menina. Não me identificava com meu corpo”, verbaliza.

Em casa, não foi muito diferente. Jorge Alvim, o pai, oficial da Marinha, preferia não ver; a mãe, Maria das Graças, silenciava. E Maria Eduarda escolheu renegar a própria sexualidade; procurou uma igreja evangélica, em busca de acolhimento na ladainha teatral dos pastores, da criminosa ideia de “cura”. “Se pudesse escolher, fugiria do preconceito”, explica. “Fui atrás de luz para encontrar um caminho”.

Não achou e, para piorar, trocou de escola, sofrendo ainda mais bullying. “Não me sentia bem com os garotos e não podia estar com as garotas”, resume a solidão, que tentava debelar nos livros e, depois, na bebida. “Não tinha estímulo para viver”. Na faculdade de Direito, o panorama alterou-se pouco. O assédio só diminuiu porque Maria Eduarda escolheu o turno da noite, dobrando a aposta na solidão.

Numa noite, vagando pela internet, decidiu pesquisar sobre transexualidade e, aos 25 anos, tomou coragem para pedir ajuda à mãe, que não sabia como agir. Na mesma época, foi a São Paulo, para sua primeira festa LGBT. Mas continuou se vestindo como homem no dia a dia por mais cinco anos. Só aos 30, voltou a pedir ajuda à mãe. Dona Maria olhou para o chão e, finalmente, aceitou – mas só em 2015, Maria Eduarda encontrou socorro mais efetivo, na psicóloga Carina Thomaz, a quem procurou pelo Facebook. Os caminhos, afinal, começaram a se abrir. “Não tinha mais saúde mental para fazer performance no gênero masculino”, comenta, lembrando a depressão que vivia.

Ali, ela passou a praticar o aforismo de Guimarães Rosa: “A vida é assim: esquenta e esfria, /aperta e daí afrouxa, /sossega e depois desinquieta./ O que ela quer da gente é coragem”. Sozinha, começou a transição física: tirou pelos do rosto, fez aplique no cabelo e trocou completamente o guarda-roupa. O melhor: encontrou abrigo e energia na militância, por influência de amiga também trans chamada Maria Elis, que levou Maria Eduarda, ainda no ano-chave de 2015, à formatura da Casa Nem, espaço de acolhimento trans na Lapa.

Ela admirou-se ao encontrar quatro travestis que entraram na universidade, e uma outra no serviço público! “Ali, era lugar seguro, livre de preconceito”, agradece. Em outubro daquele ano, começou a prestar assessoria jurídica à Casa Nem, resolvendo problemas de documentação, de registro dos hóspedes. Por indicação de Indianare Siqueira, ativista transvestigênere que lidera a instituição, foi fazer o mesmo serviço no Grupo Pela Vidda, em 2016. “Acabei me envolvendo com o tema HIV/Aids e as lutas dos portadores e dos grupos mais vulneráveis”, atesta. “Sou muito ‘pessoal do Direitos Humanos’”, orgulha-se.

A carteira da OAB, que viaja no peito de Maria Eduarda: orgulho e proteção. Foto de Paulo Marcos de Mendonça Lima
A carteira da OAB, que viaja no peito de Maria Eduarda: orgulho e proteção. Foto de Paulo Marcos de Mendonça Lima

Maria Eduarda se entende no dever de ajudar na batalha trans, por acesso à escola, à universidade, ao emprego qualificado, e passa os dias dedicada à causa. Dá palestras em universidade e instituições de classe sobre tolerância, inclusão e humanidade e, desde 2017, integra a Comissão de Diversidade da OAB do Rio. No ano seguinte, veio a grande vitória da oficialização do nome social.

Não está perfeito, longe disso. “Imagine andar no Fórum, olhar em volta e não encontrar ninguém como você”, sublinha, lembrando que as trans, em geral, só conseguem ocupações de baixa qualificação na área de estética ou limpeza, ou — pior ainda — acabam empurradas para a prostituição. Não por acaso, a incidência de HIV/Aids entre elas atinge terríveis 35%. “Precisamos trabalhar por igualdade de tratamento desde a escola e em todos os aspectos da sociedade”, defende.

Em meio ao vigoroso discurso pela inclusão, chama atenção a alegria de Maria Eduarda com ela mesma. Resolvida nas escolhas que fez, não dá espaço sequer ao desgosto das lembranças dos tempos de infelicidade. “Tenho cinco fotos de antes. Agora, muito mais de 500”, exemplifica, para definir o próprio momento.

No fim de 2018, ela planejava o último capítulo de sua transformação: a cirurgia de redesignação sexual. “Quero o pacote completo”, avisa. Em casa, tudo está diferente — seu pai a aceitou inteiramente, após testemunhar a felicidade da filha, que, nos planos para o futuro, não faz por menos. “Pretendo casar e ainda vou pensar sobre filhos”.

Na profissão, segue montanha acima, com a ambição dos pioneiros — foi a primeira aluna trans da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro. No cotidiano do Fórum, não se sente mais estrangeira, e convive naturalmente em cartórios e audiências. Está, afinal, integrada ao mundo do Direito, tratada como qualquer outra pessoa por juízes, colegas e funcionários.

Então, mais uma vez, para não errar: Maria Eduarda Aguiar da Silva, advog

Curiosidade heterossexual idiota: como ela se chamava antes? “Meu nome de batismo não faz mais parte de mim. Sumiu”, decreta.

*Publicado originalmente no livro “Guardiões da Alma Carioca” (Editora Parideira Cultural)

 

Aydano André Motta

Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!

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2 comentários “Guardiã da tolerância de gênero

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