Feliz ano velho

No réveillon da Consciência Negra, a difícil tarefa de celebrar novas conquistas

Por Flávia Oliveira | ODS 1 • Publicada em 20 de novembro de 2016 - 18:09 • Atualizada em 20 de novembro de 2018 - 12:49

Se saldo positivo há, ele é imaterial, simbólico, traduzido na disposição para a luta das jovens feministas negras, incansáveis e barulhentas na rede e na rua. Foto de Alexandre Moreira/Brazil Photo Press
Se saldo positivo há, ele é traduzido na disposição para a luta das jovens feministas negras, incansáveis e barulhentas. Foto de Alexandre Moreira/Brazil Photo Press
Se saldo positivo há, ele é traduzido na disposição para a luta das jovens feministas negras, incansáveis e barulhentas. Foto de Alexandre Moreira/Brazil Photo Press

O movimento negro brasileiro iniciou nos anos 1970 a mobilização por um dia para celebrar a resistência à escravidão, em oposição ao 13 de Maio de 1888, data que a História oficial consagrou à liberdade “concedida” pela Princesa Isabel. Foi num 20 de novembro que morreu o líder do mais simbólico quilombo do país, Palmares, na Serra da Barriga (AL).  Em 1987, a data tornou-se feriado no Rio Grande do Sul; em 2002, no Rio de Janeiro. Mas a Lei Federal 12.519, que criou o Dia Nacional de Zumbi dos Palmares e da Consciência Negra, só foi promulgada em 2011. Hoje, é feriado em cerca de um quinto dos municípios brasileiros.

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É interminável o rol de desafios a serem alcançados. Mas antes disso, tornou-se urgente conter os retrocessos. A ameaça de perda de direitos sociais por negras e negros brasileiros é crescente e imensa. Ela se materializa no cenário macroeconômico adverso; na crise fiscal que alcança União, estados e municípios; nas propostas de ajustes que, por regressivos, jogam a fatura no bolso dos que menos têm.

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O Dia da Consciência Negra é relevante por três motivos. Primeiro, apoia a autoestima e a identidade racial do povo preto pelo caráter de celebração da cultura, da arte, das tradições, das religiões afro-brasileiras. Reconta a História do Brasil ao disseminar informações sobre negros e negras que protagonizaram a luta pela liberdade.  Por fim, ajuda na reflexão sobre conquistas obtidas e obstáculos a serem superados na construção da ainda distante igualdade racial no país.

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Na semana passada, em conversa com alunos das Faculdades Integradas Helio Alonso (Facha), no Rio, sugeri que o Dia da Consciência Negra tenha para o ativismo afro-brasileiro o mesmo significado do 31 de dezembro para boa parte da humanidade. Que seja o momento de listar vitórias, contabilizar derrotas, estabelecer metas. Ao fim de cada ano, nos acostumamos a inventariar o calendário que se fecha e a formular resoluções para o período que se aproxima. Que assim seja também na agenda sócio-política-econômica dos brasileiros autodeclarados pretos e pardos.

É inegável que as últimas décadas trouxeram avanços para os negros brasileiros. Nas políticas universais, a estabilização da moeda, a valorização real e crescente do salário mínimo, os programas de transferência de renda (Bolsa Família, em particular), a PEC das Domésticas. Se o país adota medidas endereçadas aos mais pobres, invariavelmente beneficiará pretos e pardos, maioria da população de baixa renda e das estatísticas de escassez de serviços públicos e indicadores socioeconômicos. No arcabouço de ações afirmativas, destaca-se a política de cotas no ensino superior. Promulgada em agosto de 2012, a lei federal permitiu a entrada de 150 mil estudantes negros em universidades públicas nos três primeiros anos de vigência.

Homenagem ao Dia da Consciência Negra em frente ao monumento de Zumbi dos Palmares, no Rio de Janeiro (AFP / Yasuvoshi Chiba)
Homenagem ao Dia da Consciência Negra em frente ao monumento de Zumbi dos Palmares, no Rio de Janeiro (AFP / Yasuvoshi Chiba)

No inventário deste 2016, se saldo positivo há, ele é imaterial, simbólico, traduzido na disposição para a luta das jovens feministas negras, incansáveis e barulhentas na rede e na rua. É interminável o rol de desafios a serem alcançados. Mas antes disso, tornou-se urgente conter os retrocessos. A ameaça de perda de direitos sociais por negras e negros brasileiros é crescente e imensa. Ela se materializa no cenário macroeconômico adverso; na crise fiscal que alcança União, estados e municípios; nas propostas de ajustes que, por regressivos, jogam a fatura no bolso dos que menos têm.

São as mulheres negras as principais vítimas das agressões de gênero e da violência obstétrica. Três de cada quatro jovens assassinados no país – são cerca de 30 mil por ano – têm a pele preta ou parda. Neste domingo, na Cidade de Deus, sete famílias choravam seus mortos em praça pública, mais um capítulo da guerra carioca, tão antiga quanto inócua. É maior a taxa de desemprego e menor a escolaridade média dos afrodescendentes. Residuais são as proporções entre empregadores, gerentes, chefes e no topo da representação política. Os negros são maioria entre pobres e moradores de habitações precárias.

No cenário de cortes no Orçamento, serão os pobres e os negros a parcela da população mais afetada. Se a PEC 241 – renumerada para PEC 55 no Senado – for aprovada sem alterações, há agudo risco de redução dos gastos per capita na Saúde, na Educação e na Assistência Social ao longo das duas décadas de vigência da legislação, conforme indicaram estudos recém-produzidos pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [Nota Técnica 27 e Nota Técnica 28]. Nenhuma dúvida sobre quem no país utiliza hospitais e escolas públicas ou recebe benefícios de renda mínima – ou seja, quem vai pagar a conta.

Neste réveillon da Consciência Negra, está difícil desejar feliz ano novo.

Flávia Oliveira

Flávia Oliveira é jornalista. Especializou-se na cobertura de economia e indicadores sociais. É colunista do jornal O Globo e comentarista no canal GloboNews. É membro do Conselho da Cidade do Rio de Janeiro.

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