Oito lições da greve dos caminhoneiros

Caminhões parados durante a greve na Washinton Luiz (BR-040) , perto da Refinaria Duque de Caxias. Foto Luciano Belford/AGIF

Se o governo tivesse priorizado o transporte público e a produção local, a situação teria sido diferente

Por Clarisse Linke | ArtigoODS 8 • Publicada em 29 de maio de 2018 - 14:56 • Atualizada em 1 de junho de 2018 - 15:12

Caminhões parados durante a greve na Washinton Luiz (BR-040) , perto da Refinaria Duque de Caxias. Foto Luciano Belford/AGIF
Caminhões parados durante a greve na Washinton Luiz (BR-040) , perto da Refinaria Duque de Caxias. Foto Luciano Belford/AGIF
Caminhões parados durante a greve na Washinton Luiz (BR-040) , perto da Refinaria Duque de Caxias. Foto Luciano Belford/AGIF

Agora que a poeira dá os primeiros sinais de que começou a baixar, ou a subir, já que alguns caminhões voltaram a rodar pelas nossas precárias rodovias, é hora de falar sobre as lições que deveriam ser aprendidas com a greve (ou lockout) dos caminhoneiros. Até porque, no atual quadro, em que trabalhadores e empresários já perceberam o tamanho do estrago que são capazes de produzir, não há como garantir que algo parecido não venha a acontecer novamente nos próximos três ou seis meses. Vamos aos pontos:

Não é preciso ser parente de um gênio para entender que os reajustes no preço do diesel e da gasolina têm impactos diferentes na vida do país. Se os impactos são diferentes, os prazos e o tamanho dos aumentos devem seguir caminhos específicos. O diesel mais caro onera o transporte de carga, afeta o preço dos alimentos, o valor das passagens e o bolso do cidadão mais pobre

1 – Política de reajustes – Neste primeiro item, não é necessário entrar muito fundo no debate sobre o papel da Petrobras. Se ela é uma empresa pública que serve ao cidadão ou se é um negócio privado que privilegia os acionistas. Nem é preciso ser parente de um gênio para entender que os reajustes no preço do diesel e da gasolina têm impactos diferentes na vida do país. Se os impactos são diferentes, os prazos e o tamanho dos aumentos devem seguir caminhos específicos. O diesel mais caro onera o transporte de carga, afeta o preço dos alimentos, o valor das passagens e o bolso do cidadão mais pobre.

2 – O público e o privado – Em uma situação gravíssima como a que o país enfrentou nos últimos dias, é preciso haver uma sinalização clara sobre quais são as prioridades. E aqui não pode haver dúvida: o interesse público deve sempre se sobrepor aos interesses privados.  O que a Prefeitura de São Paulo fez na quinta-feira, ao suspender o rodízio de carros na cidade, vai exatamente no sentido contrário. O momento era de deixar os carros em casa, economizar combustível, priorizar e incentivar o transporte público, liberar as vias para as bicicletas e para os veículos de emergência. Ao invés de fecharem escolas, poderiam ter organizado “walking bus” ou “biking bus” para que as crianças fossem em grupo andando ou pedalando.

3 – Foco na produção local – Mais uma vez ficou clara a necessidade de valorizar e incentivar o produto local. Papel a ser exercido não só pelos governos como por toda a população. Comprar do pequeno produtor, que vive próximo das cidades, garante o consumo de produtos mais frescos, preferencialmente orgânicos, com mais qualidade, mais fáceis de transportar e com menos emissões de poluentes e gases de efeito estufa.

4 – Priorizar os elétricos – Recuperar o tempo perdido investindo agora em uma malha ferroviária e hidroviária decente talvez seja custoso e demorado demais. No entanto, o uso da tecnologia de ônibus elétricos não é nenhuma novidade no país. Há 50 anos, várias capitais do país dispunham de razoáveis redes de bondes elétricos. Além disso, ônibus, barcas e VLTs podem, perfeitamente, circular com o uso de gás natural. Aliás, foi o GNV (Gás Natural Veicular) que evitou que grande parte dos taxistas ficasse sem trabalhar.

Em Valparaíso, cidade de Goiás, um motorista enche um galão de gasolina. Foto Mateus Bonomi/AGIF
Em Valparaíso, cidade de Goiás, um motorista enche um galão de gasolina. Foto Mateus Bonomi/AGIF

5 – Quem deve ser abastecido? – Se o combustível é pouco e está acabando, o que fazer? Simples, correr para o posto e encher o tanque antes do feriadão na Serra. Certo? Errado. Se não há para todos, é preciso pensar na maioria. E essa maioria anda de trem, ônibus, barca e metrô. Aliás, você sabia que o Rio de Janeiro ainda tem trens que são movidos a óleo diesel? Os ramais de Guapimirim e Vila Inhomirim não puderam funcionar por conta da greve. A negociação com os grevistas deveria priorizar exatamente a liberação dos caminhões com diesel para abastecer os ônibus. Não faz nenhum sentido cidades como São Paulo e Rio de Janeiro ficarem com apenas metade da frota de transporte público por falta de combustível.

6 – Ferrovias e transporte marítimo – É fato que o país fez a opção errada pelo transporte rodoviário. Sucumbiu aos interesses das montadoras há décadas e hoje paga caro pela escolha equivocada. Mas não precisamos nos conformar com isso. Ainda há tempo para mudar esse quadro, mesmo que seja lentamente. Hoje as ferrovias respondem por apenas 20% da movimentação de cargas do Brasil. Esse índice pode e deve aumentar, é um projeto para 20 ou 30 anos, mas precisa começar agora e ser tema obrigatório na próxima campanha presidencial.

7 – Escolher bem os interlocutores – Não há nenhuma dúvida de que o governo subestimou o movimento grevista e demorou tempo demais para reagir. E quando o fez parecia perdido, sem saber com quem falar e a quem recorrer. Como se a realidade e as agruras porque passam os caminhoneiros no Brasil fosse uma enorme novidade. Não são novidade, e é preciso criar os canais corretos para que isso não volte a acontecer. Por falar nisso, ainda existe um setor de inteligência no governo? Estavam de férias?

8 – Plano de contingência – O Brasil demorou anos para criar um plano de contingência para as enchentes que assolam, por exemplo, a Região Serrana do Rio e as favelas cariocas. Hoje, mal ou bem, já existem locais pré-estabelecidos para onde as pessoas devem se dirigir em caso de emergência. Sirenes tocam quando as chuvas ficam mais intensas e canais de comunicação mais eficientes foram criados. E se a greve dos caminhoneiros voltar a acontecer, o que faremos? Quem lidera o gabinete de crise? Quem aciona as sirenes? Quem negocia com as pessoas certas? Quem garante que os serviços básicos não sejam interrompidos e que o país não volte a parar?

Clarisse Linke

É Diretora do ITDP no Brasil e atua com políticas públicas desde 2001, com experiência no Brasil, Moçambique e Namíbia. É Mestre em Políticas Sociais pela London School of Economics. Entre 2006-2011, foi responsável pela expansão da BEN Namibia, se tornando a maior rede de bicicletas integrada a empreendimentos sociais na África sub-Saariana. Em 2010, foi premiada pela Ashoka no Desafio “Mulheres, Ferramentas e Tecnologia”. Clarisse é uma pessoa que só pensa em como transformar as cidades em lugares de felicidade.

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2 comentários “Oito lições da greve dos caminhoneiros

  1. Antonio Carlos Velloso de Mello disse:

    Clarisse

    Estou cem por cento de acordo com vc.Esse episódio deveria servir de plataforma de discussão do país para as próximas eleições.Concordo que a Petrobrás vive um dilema que precisa ser resolvido.Privatizar a Petrobrás ao meu ver não seria a solução, porque esse setor é altamente cartelizado no mundo, são 4 ou 5 grandes.Agora! ela tem acionistas aqui e lá fora.
    Nesse sentido esse dilema vai ser sempre uma tentação de controle ou mercado, dos governos para a esquerda ou direita.
    O fato é que ainda podemos discutir isso e aproveitar as eleições para ampliar isso.Nesse sentido as Organizações não governamentais podem e devem ter um papel de instigação da pauta política.Vamos ampliar isso, criar canais de discussão!!Ainda dá tempo!!!Abração!!

  2. Luana Oliveira disse:

    Infelizmente, isso é umas das consequências da desvalorização do investimento em transporte público, o que atrapalha muito no desenvolvimento econômico do nosso país. ;(

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