Raio-X da crise pilotada pelos caminhoneiros que parou o Brasil

O nós nas estradas e na economia: caminhões na BR-262, em Juatuba, Minas Gerais, no quinto dia da paralisação (Foto DOUGLAS MAGNO/AFP)

De escolhas econômicas erradas, conjuntura internacional adversa e desgoverno deu-se o colapso que parou o Brasil

Por Flávia Oliveira | ODS 8 • Publicada em 27 de maio de 2018 - 12:29 • Atualizada em 27 de maio de 2018 - 20:00

O nós nas estradas e na economia: caminhões na BR-262, em Juatuba, Minas Gerais, no quinto dia da paralisação (Foto DOUGLAS MAGNO/AFP)
O nós nas estradas e na economia: caminhões na BR-262, em Juatuba, Minas Gerais, no quinto dia da paralisação (Foto DOUGLAS MAGNO/AFP)
O nó nas estradas e na economia: caminhões na BR-262, em Juatuba, Minas Gerais, no quinto dia da paralisação (Foto DOUGLAS MAGNO/AFP)

De tão complexo, o nó com que a greve dos caminhoneiros amarrou o Brasil só pode ser explicado a partir de perspectiva histórica. O país está refém de uma combinação perversa de escolhas econômicas tão antigas quanto equivocadas, conjuntura internacional adversa e aguda inabilidade política de um governo agonizante e de um parlamento inconsequente. Parada, a frota que move o Produto Interno Bruto (PIB) levou ao colapso o transporte público, o abastecimento de combustíveis, alimentos e remédios, o funcionamento da indústria e do comércio exterior. A semana de crise terá consequências na atividade econômica e na inflação: freio na produção, aceleração nos preços.

Por preço, eficiência, sustentabilidade ambiental ou segurança do sistema, trens seriam alternativa óbvia para um país de dimensões continentais.

O Brasil optou há tempos por privilegiar o modal rodoviário, aposta que vem dos anos JK. Hoje, pelo 1,735 milhão de quilômetros de estradas do país circulam quase dois terços (61,1%) do PIB, segundo a Confederação Nacional do Transporte (CNT). Ferrovias representam apenas 20,7% da movimentação de cargas. As linhas férreas, além de escassas, atendem primordialmente os complexos de mineração e siderurgia. Levam carvão e minério, embora o Brasil seja potência mundial na produção e na exportação de grãos. Por preço, eficiência, sustentabilidade ambiental ou segurança do sistema, trens seriam alternativa óbvia para um país de dimensões continentais. “Não há lógica econômica nenhuma em transportar por caminhões. A vulnerabilidade é imensa, porque qualquer desequilíbrio no setor, seja condições das estradas, aumento do pedágio ou flutuação no preço do combustível, afeta a economia como um todo”, raciocina William Figueiredo, da divisão de estudos econômicos da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan).

Há, sim, uma discussão a ser feita, porque a Petrobras é monopolista com preços livres. As importações estão liberadas, mas a empresa é dona da infraestrutura. Ela enfrenta os males e as delícias do monopólio. Por isso, é parte da política pública

Matriz diversificada na movimentação de cargas teria livrado o Brasil do sequestro por um setor ou categoria. No entanto, a frota de 2,7 milhões de caminhões movidos a óleo diesel carrega a economia. Se contrariada, é totalmente capaz de parar o país, como ficou provado nos últimos dias com a greve dos autônomos e o locaute dos empresários. A queixa contra os reajustes constantes do combustível era legítima. O combustível, somente em maio, até a paralisação eclodir, sofreu dez elevações de preço nas refinarias da Petrobras, resultado da alta simultânea do petróleo e do dólar. Aumentos diários no insumo essencial empurravam caminhoneiros e transportadores para o território da incerteza permanente.

É compreensível que a Petrobras tenha uma política de preços alinhada às flutuações do óleo e do câmbio. A estatal sofreu anos com o modelo artificial, que a fazia mais agente de política econômica do que companhia de petróleo. Se conteve a inflação e deu conforto aos senhores dos transportes, o controle imposto pelo governo Dilma Rousseff inviabilizou financeiramente a empresa e levou prejuízos aos acionistas – à frente o Tesouro Nacional. O enredo, contudo, não termina com a profissão de fé na independência autorizada por Michel Temer. Ela resolve o problema da empresa, mas não o do país extremamente dependente do diesel, dos caminhões, das estradas.

Um governo competente e sensível às características do mercado teria usado o exemplo do gás para agir antecipadamente no caso do diesel. A crise que acabou parando o Brasil estava contratada. E não faltou aviso.

No meio do caminho, há o monopólio. Pelos dados oficiais da Agência Nacional do Petróleo (ANP), a Petrobras detém 94% da produção de óleo, é dona de 13 das 17 refinarias e da infraestrutura de dutos. No primeiro trimestre, vendeu 81,73% da gasolina e 69,91% do diesel consumido. “Há, sim, uma discussão a ser feita, porque a Petrobras é monopolista com preços livres. As importações estão liberadas, mas a empresa é dona da infraestrutura. Ela enfrenta os males e as delícias do monopólio. Por isso, é parte da política pública”, diz Julio Bueno, ex-secretário de Desenvolvimento Econômico e da Fazenda do Rio.

Suspeita de cartelização (repare a semelhança de preços no varejo), a distribuição de derivados é o elo mais diversificado da cadeia. As top 3 do ranking dividem 65% do mercado, no qual a (Petrobras) BR lidera, com 24,26% de participação. Mas a concorrência na ponta de distribuição e varejo não elimina a anomalia econômica que é o país ser dependente de um modal logístico, por sua vez dependente de um combustível controlado por um fornecedor. O mercado brasileiro de petróleo e gás foi, por direito, liberado há duas décadas. De fato, segue nas mãos da Petrobras. Por isso, a política de preços livres implementada na gestão Pedro Parente vem sendo atacada. A flutuação começou em outubro de 2016, com correções mensais. Em meados de 2017, passaram a seguir a oscilação simultânea do petróleo e do câmbio.

A polícia tenta organizar o fluxo de veículos no Rodoanel, em São Bernardo do Campo: o Brasil paralisado. (Foto Miguel Schincario/ AFP)
A polícia tenta organizar o fluxo de veículos no Rodoanel, em São Bernardo do Campo: o Brasil paralisado. (Foto Miguel Schincario/ AFP)

As queixas começaram com o gás liquefeito de petróleo (GLP). Em dezembro, depois de seis reajustes consecutivos no preço do gás de botijão, a estatal anunciou que revisaria a política de preços. O GLP é a segunda fonte de energia mais consumida nas residências brasileiras; pesa principalmente no orçamento dos mais pobres. No ano passado, subiu 16% no varejo, segundo o IBGE. No início de 2018, a Petrobras passou a aplicar reajustes trimestrais, com base na média anual das cotações, em vez da mensal. A equação, informou Parente à época, suavizaria o impacto das correções. O preço do gás sobe muito no segundo semestre, quando o inverno no Hemisfério Norte se aproxima e a demanda por aquecimento aumenta; na temporada de calor, despenca. Aqui o consumo é praticamente constante.

Um governo competente e sensível às características do mercado teria usado o exemplo do gás para agir antecipadamente no caso do diesel. A crise que acabou parando o Brasil estava contratada. E não faltou aviso. Em outubro de 2017, a Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam) reclamou dos reajustes diários do diesel e da elevação do PIS/Cofins em ofício endereçado ao ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha. Outros alertas foram ignorados até a eclosão da paralisação, em 21 de maio. Não era papel da Petrobras, mas dever do governo acomodar os interesses da empresa às necessidades do país.

A economia precisará se recompor após a semana de desorganização. Os efeitos na produção industrial, nas vendas do comércio e no volume de serviços serão conhecidos nos indicadores de maio e junho. Haverá impacto no PIB do segundo trimestre, porque muitos negócios interrompidos jamais vão ser compensados.

Há um ano, desde que a delação do empresário Joesley Batista escancarou as relações na noite escura do Palácio do Jaburu, o governo balança. O núcleo duro do Planalto se ocupa mais em se manter no poder, menos da agenda nacional. Deu no colapso produtivo que experimentamos. No terceiro dia de greve, Michel Temer explicitou sua falta de liderança ao informar que pedira uma trégua de dois ou três dias aos grevistas. Foi ignorado sistematicamente, até quando cedeu a todas as reivindicações, incluindo congelamento dos preços do diesel, compensação à Petrobras, desoneração tributária e convocação das Forças Armadas. A redução do PIS/Cofins virou impasse no Congresso, em razão da conta errada sobre impacto no  Orçamento patrocinada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

Na quinta-feira, quando o país se deparava com caos nos transportes públicos, desabastecimento no varejo de combustíveis e alimentos, escolas, hospitais e aeroportos ameaçados de parar, coleta de lixo interrompida, produção industrial asfixiada pelo insumo que não chega e pela mercadoria que não sai, o presidente da República viajou ao Rio de Janeiro para participar da cena de entrega de 369 automóveis. Ratificou-se como “pato manco”. Traduzida do inglês lame duck, a expressão define o político que ocupa a cadeira, mas perdeu poder. No vazio de um governo fraco está mergulhado o Brasil.

A maioria dos governadores silenciou. Luiz Fernando Pezão, do Rio, anunciou redução do ICMS sobre o diesel de 16% para 12%, equiparando a taxação fluminense à de São Paulo. Marcio França, substituto de Geraldo Alckmin, prometeu perdão de multas, redução no pedágio e no IPVA para pôr fim à paralisação. Sete governadores (Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Sergipe e Minas Gerais) avisaram, em carta conjunta, que não aceitam reduzir ICMS e condenaram a política de preços da Petrobras. A taxação dos combustíveis no Brasil não está no topo no mundo, mas os estados ficam com um naco significativo. No diesel, segundo cálculo da Petrobras, 13% do preço final são impostos federais, 16% ICMS. Há sete alíquotas em vigor no território nacional. Um caminhão que sai do Sul para o Rio Grande do Norte parte pagando 12% de imposto estadual e chega desembolsando 18%. Há resistência em rever a taxação, porque tributar combustível é simples e rentável. O recolhimento é feito nas refinarias, não no varejo.

A paralisação dos caminhoneiros chegará ao fim. Mas deixará sequelas. Com a política mais desgovernada que nunca, os grupos organizados se fortaleceram. Não à toa, petroleiros já anunciaram greve de 72 horas a partir de quarta-feira, 30 de maio. A economia precisará se recompor após a semana de desorganização. Os efeitos na produção industrial, nas vendas do comércio e no volume de serviços serão conhecidos nos indicadores de maio e junho. Haverá impacto no PIB do segundo trimestre, porque muitos negócios interrompidos jamais vão ser compensados. É o caso do leite derramado na estrada, dos frangos abatidos e incinerados, dos alimentos apodrecidos em caminhões ou nas áreas rurais, das viagens não realizadas nos transportes urbanos.

A inflação tampouco se livrará de efeitos, ainda que transitórios. O IBGE visita semanalmente os pontos de venda, de postos de combustíveis a mercados e feiras, para registrar os preços efetivamente praticados e pagos pelos consumidores. Os reajustes acidentais são captados e entram na conta do IPCA. A contaminação pelos aumentos abusivos vai durar o tempo da reacomodação do abastecimento e dos preços. Alimentação e Bebidas são o grupo de maior peso no índice oficial (24,53%); Transportes, o segundo (18,45%). Refeição fora de casa é o item que mais impacta o IPCA (5,17%); em seguida, gasolina (4,33%). O combustível da classe média passou intocado pela semana caótica. Segue com preço liberado.

Flávia Oliveira

Flávia Oliveira é jornalista. Especializou-se na cobertura de economia e indicadores sociais. É colunista do jornal O Globo e comentarista no canal GloboNews. É membro do Conselho da Cidade do Rio de Janeiro.

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