Brasil registra as piores coberturas para vacinas infantis em 25 anos

Desinformação, falta de campanhas de comunicação e erros na gestão da saúde são as causas do fenômeno, agravado pela pandemia e pelo aumento das desigualdades

Por Elizabeth Oliveira | ODS 3 • Publicada em 31 de outubro de 2021 - 12:01 • Atualizada em 19 de abril de 2023 - 09:21

A vacina BCG, contra a tuberculose, registrou em 2020 a menor cobertura em 27 anos. Arte Claudio Duarte

A vacina BCG, contra a tuberculose, registrou em 2020 a menor cobertura em 27 anos. Arte Claudio Duarte

Desinformação, falta de campanhas de comunicação e erros na gestão da saúde são as causas do fenômeno, agravado pela pandemia e pelo aumento das desigualdades

Por Elizabeth Oliveira | ODS 3 • Publicada em 31 de outubro de 2021 - 12:01 • Atualizada em 19 de abril de 2023 - 09:21

Mergulhado em uma crise econômica e política, já perceptível em 2015 e acentuada a partir de 2016, o Brasil chegou a 2020 com as piores coberturas vacinais infantis dos últimos 25 anos. Essa constatação é parte de um levantamento da agência de dados Fiquem Sabendo, especializada no acesso a informações públicas, que sistematizou estatísticas de nove vacinas, dentre as mais importantes para crianças de até dois anos, desde 1994. Com base em números do Programa Nacional de Imunizações (PNI), inseridos no sistema Datasus, do Ministério da Saúde, algumas análises dão a dimensão do problema. A vacina contra a poliomielite, por exemplo, que ultrapassou 100% de cobertura, entre 2000 e 2009, além de ter oscilado de 99,35% a 98,29%, de 2010 a 2015, despencou para 75,97%, no ano passado. Enquanto isso, a BCG, contra a tuberculose, chegou a 73,8%, a menor cobertura em 27 anos, quando de 1995 a 2015, esse imunizante atingiu mais de 100% do público alvo no país.

Precisamos falar mais com a população, mas falar o tempo todo. As pessoas têm pouco medo agora

Especialistas consultados pelo #Colabora reconhecem que a pandemia da covid-19 teve impacto nos resultados preocupantes, observados entre 2020 e 2021, mas apontam outros fatores como causas desse fenômeno que é anterior à crise sanitária. Dentre os quais, a onda de desinformação disseminada nas redes sociais pelo movimento antivacina, a falta de investimento em ações de comunicação para a sociedade, além de outros problemas que têm afetado a gestão da saúde pública nos últimos cinco anos. Nesse contexto, tem se ampliado fortemente, desde 2015, a queda da cobertura de praticamente todas as vacinas não somente para crianças, mas também para adolescentes e gestantes no país, como constatado na pesquisa desta reportagem realizada na base de dados do Datasus.

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A denominada hesitação em vacinar é um fenômeno multifatorial de alcance internacional que também tem atingido o Brasil, nos últimos anos. Nesse panorama, Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), esclarece que o movimento de desinformação representa uma das principais causas da queda da cobertura vacinal no país, ao buscar gerar descrédito da população sobre a importância das vacinas e dos avanços da ciência que vêm garantindo o controle de doenças infectocontagiosas. A pesquisa “As fake news estão nos deixando doentes?”, realizada em 2019 por essa instituição, em parceria com a rede Avaaz, identificou que sete entre dez brasileiros acreditavam em notícias falsas com enfoques antivacina.

O trabalho de pesquisa, encomendado ao Ibope pelas instituições parceiras, foi elaborado com base em entrevistas com 2 mil pessoas, com 16 anos ou mais, de todas as regiões brasileiras. Nesse levantamento, se concluiu que 13% dos entrevistados deixavam de se vacinar devido às notícias falsas disseminadas nas redes sociais, principais fontes de informação para esse público.

Embora 87% das pessoas consultadas tenham informado que não deixaram de se vacinar ou imunizar os familiares, o total dos que acreditavam nas mensagens antivacinas é preocupante, na opinião da vice-presidente da SBIm. Isso porque, quando extrapolados os resultados para a faixa etária inserida no levantamento, esse contingente representa 21 milhões de pessoas no país.

Ballalai considera que a perda da percepção de riscos sobre várias doenças representa outro fator causador da queda na cobertura vacinal, opinião compartilhada por demais especialistas consultados nesta reportagem.  Ela também demonstra preocupação diante da falta de amplas ações públicas de comunicação com a sociedade e menciona a baixa adesão à campanha de multivacinação, em curso durante o mês de outubro, como potencial reflexo da lacuna de ações de sensibilização e engajamento social. Não por acaso, o Ministério da Saúde anunciou a prorrogação até 30 de novembro dessa iniciativa que visava à atualização de pendências até o final deste mês.

“Precisamos falar mais com a população, mas falar o tempo todo”, observa. Para ela, “as pessoas têm pouco medo agora”, quando justamente deveria haver maior percepção de risco para impulsionar a redução da hesitação em vacinar. Como exemplo, menciona as longas filas para vacinação diante de surto de febre amarela, quando o temor de contrair a doença levava muitos idosos a pedirem laudos aos médicos, atestando que poderiam se vacinar, já que há uma restrição nessa faixa etária.  A vice-presidente da SBIm acrescenta que a instituição tem promovido campanhas e outras ações educativas, além de atividades de capacitação que representam outra grande lacuna na área da saúde no Brasil.

Faltam ações de comunicação e de inteligência na saúde, afirma professor da USP

Diante da crise econômica brasileira, que tem se agravado gradativamente nos últimos anos, o país vem deixando de realizar atividades complementares à compra de vacinas. Isso envolve desde a capacitação dos profissionais de saúde, às campanhas e outras ações de comunicação fundamentais à sensibilização da sociedade sobre a importância da vacinação desde a infância. Esse é um dos fatores apontados como causadores da baixa cobertura vacinal, por Gonzalo Vecina Neto, professor do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (ESP-USP).

Gonzalo Vecina Neto: "A crise financeira de 2015/2016 acelerou a redução na cobertura vacinal". Foto Marco Ankosqui
Gonzalo Vecina Neto: “A crise financeira de 2015/2016 acelerou a redução na cobertura vacinal”. Foto Marco Ankosqui

“A partir da crise financeira, de 2016 em diante, temos uma redução da cobertura vacinal, seja em regiões ricas ou pobres. Creio que isso se deve, particularmente, ao enfraquecimento da capacidade convocatória do Estado para levar as pessoas a se vacinarem. Não houve investimento em campanhas de comunicação e a cobertura caiu”, opina.

Fatores econômicos, além de questões de desestruturação institucional, acentuadas a partir de 2016, levaram à redução do financiamento do Ministério da Saúde para o Programa Nacional de Imunizações, segundo ressalta o professor da USP. Ele aponta a falta de capacidade do PNI como “o calcanhar de Aquiles” dessa problemática da queda de cobertura vacinal no país, agravada no cenário de pandemia.

Contradições nas estatísticas

Os dados estatísticos inseridos no Datasus contribuem para reforçar a percepção de crise acentuada na imunização não somente de crianças e adolescentes, mas também de gestantes, nos últimos cinco anos, no Brasil. De uma lista de 21 vacinas pesquisadas pela reportagem do #Colabora, foi possível observar que o período entre 2015 e 2016 representou uma ruptura da tendência de alta ou de manutenção dos índices de cobertura vacinal de anos anteriores. Seja nas grandes capitais, nas regiões brasileiras, ou em algumas das maiores regiões metropolitanas do país, é possível observar essa realidade.

De Melgaço no Pará, que ocupa a última posição (0,418) no Índice de Desenvolvimento Humano nos Municípios (IDH-M) do Brasil, a São Caetano do Sul, em São Paulo, primeira posição no país (0,862), essa tendência se manteve. Na localidade paraense, a cobertura total de vacinação caiu de 47,84%, em 2015, para 30,25%, em 2016. Enquanto na cidade paulista, de melhor qualidade de vida, despencou de 101,43%, em 2015, para 35,23%, em 2016. Nos anos seguintes, mesmo antes da pandemia da covid-19, não houve avanços significativos nas estatísticas pesquisadas.

Diante desse panorama, a doença que mais preocupa o professor Gonzalo Vecina Neto é a poliomielite, por envolver alto nível de mortalidade e, também, provocar deficiência física. Mas o sarampo também é preocupante, sobretudo, quando considerado o aumento da insegurança alimentar no Brasil. Ele explica que a combinação da falta de vacinação com as deficiências nutricionais, intensificadas no país, pode produzir mais riscos fatais.

Estatísticas recentes reforçam essa perspectiva preocupante ressaltada por Vecina Neto. De acordo com dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2020, um contingente de 10,3 milhões de pessoas vivia em domicílios onde ocorreu privação severa de alimentos em alguns momentos, entre 2017 e 2018. Da mesma forma, se constatou que 36,7%, dos 68,9 milhões de domicílios brasileiros, enfrentaram algum grau de insegurança alimentar no período, envolvendo nesse cenário, 84,9 milhões de habitantes. Em 2021, o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil revelou que 19 milhões de brasileiros estavam passando fome, o que representa 9% da população do país (corresponde à população da Grande São Paulo).

As estatísticas nacionais sobre vacinas reforçam as preocupações dos especialistas. No caso da vacina tríplice viral (protege contra sarampo, caxumba e rubéola) o Brasil tinha superado 100% de cobertura entre 2003 e 2007, além de ter oscilado entre 99,93% e 96,07%, de 2010 a 2015. Mas em 2020, o alcance caiu para 79,52% do público alvo. Nesse percurso, casos de sarampo voltaram a crescer no país. O alerta se ampliou com um episódio de morte de uma criança pela doença, em 2020, no Rio de Janeiro, fato que não se registrava há 20 anos. No ano passado foram confirmados 276 casos no Estado, levando à intensificação de campanha de vacinação. Apesar dessa mobilização fluminense, a vacina tríplice viral teve 59,75% de cobertura para a primeira dose e 38,53% para a segunda, no Estado, segundo registros do Ministério da Saúde. Em 2019, tinha atingido 96,58% e 77,24%, respectivamente. Em contrapartida, em 2015, foi possível superar a meta na primeira dose, alcançando 105,42%, além de 89,41%, na segunda.

“A queda da cobertura vacinal é perigosa por termos a possibilidade de ter doenças graves, como a poliomielite e o sarampo, de volta. Mas de forma geral, a situação é preocupante quando existem outras doenças infectocontagiosas que podem ser prevenidas com vacinas e não estão sendo”, afirma Vecina Neto.

Segundo o professor da USP, as ações de inteligência, fundamentais em gestão de saúde pública, estão em falta no PNI.  Ele recorda que, no início do atual governo, foram extintos por decreto do presidente Jair Bolsonaro, comissões e colegiados não criados por lei no Brasil. O chamado “revogaço”, de abril de 2019, que buscou reduzir a participação da sociedade civil nos processos de tomada de decisão da gestão pública extinguiu a comissão que assessorava o PNI. “Esse grupo tinha história. Era muito importante. Aí o PNI perdeu as pernas”, observa. Assim como os recursos financeiros necessários ao fortalecimento das estratégias de vacinação, ele afirma que o assessoramento técnico do PNI é essencial em nível institucional.

Por outro lado, o professor considera como outra questão problemática na gestão da saúde, a falta transparência em relação aos recursos investidos em campanhas de comunicação para sensibilização da sociedade e para a compra de vacinas.

Tania Petraglia, secretária do Departamento Científico de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) ressalta outros aspectos que considera importantes na interpretação da diminuição na cobertura vacinal, desde 2015. Para ela, não devemos perder de vista o próprio sucesso das vacinas, ocorrido historicamente, dentre as questões multifatoriais que envolvem esse fenômeno. Isso contribuiu para que a sociedade perdesse a percepção de risco das doenças que, com os avanços científicos, passaram a ser evitadas. “Nós tivemos um controle de doenças que no passado eram muito corriqueiras e muito próximas”, observa mencionando os exemplos do sarampo e da poliomielite.

A combinação da falta de vacinação com as deficiências nutricionais, intensificadas no país, pode produzir mais riscos fatais

“Como as vacinas realmente funcionam e são seguras, sendo os eventos adversos muito raros, a população perdeu essa noção de gravidade de doenças e da necessidade de vacinação justamente porque não vê essas doenças acontecendo. Óbvio que elas só não acontecem porque as nossas crianças são vacinadas”, afirma Petraglia. Ela acrescenta que a cobertura vacinal baixa é um fenômeno que também afeta a população adulta, questão que preocupa a SBP, uma vez que “o pediatra não pode pensar só na criança, tem que pensar na família protegendo a criança”.

Ela também aponta os horários limitados de funcionamento dos postos de saúde, como um dos outros inúmeros fatores que tendem a contribuir para a queda na cobertura vacinal no Brasil. “Em geral, eles são muito limitados a um horário normal de trabalho. Hoje em dia a vida e os costumes evoluíram, as mulheres foram mais para o mercado de trabalho e as mulheres é que levavam mais os seus filhos para a vacinação”, ressalta.

Abrir os postos de saúde, pelo menos aos sábados pela manhã, ou prolongar os turnos, durante a semana, são ajustes sugeridos para facilitar o acesso a vacinas. Ela acredita que os gestores também podem fazer a diferença com medidas simples e eficazes. “Por exemplo, numa fila de vacinação, colocar um cartaz para atualização da vacinação de crianças, adolescentes, adultos e idosos”, sugere. E acrescenta que, no setor público, quando houver a marcação de uma consulta, até um atendente pode colaborar lembrando às famílias que tragam a caderneta de vacinação. “Eu vejo essa questão de lutar por altas coberturas com medidas simples que não oneram e que são factíveis, desde que haja gestão para isso”, opina.

A especialista ressalta que a SBP, por intermédio do seu Departamento Científico de Imunizações, tem participado de inúmeras iniciativas de conscientização com enfoque no aumento da cobertura vacinal. “O pediatra é uma figura fundamental nessa situação porque está em contato com a criança e com a família. Ele sensibiliza para a vacinação da criança e dos adultos. Vacinando a família é uma maneira de proteger a criança”, observa.

Em uma das suas campanhas, a SBP busca sensibilizar para que os profissionais da área também estejam vacinados. Além disso, atua para tirar inúmeras dúvidas da sociedade sobre vacinação infantil. E no período de 4 a 6 de novembro, pediatras e outros especialistas da área médica estarão participando do Vigésimo Primeiro Congresso de Infectologia Pediátrica e do Décimo Sexto Simpósio Brasileiro de Vacinas, eventos virtuais que estão em destaque no website, nos quais o tema desta reportagem estará em debate.

Petraglia considera que, além da responsabilidade, os profissionais da pediatria têm uma grande capacidade de resolução do problema que vem se intensificando no Brasil. “É uma mera abordagem da consulta de rotina solicitar a caderneta de vacinação e explicar a sua importância. Eu acho que o pediatra pode ser uma figura importante nessa luta pelo aumento das coberturas vacinais”, conclui.

(*) Esta reportagem só foi possível com o apoio do projeto “Primeira Infância é Prioridade” da ANDI/Rede Nacional Primeira Infância em parceria com a Petrobras. 

Elizabeth Oliveira

Jornalista apaixonada por temas socioambientais. Fez doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED), vinculado ao Instituto de Economia da UFRJ, e mestrado em Ecologia Social pelo Programa EICOS, do Instituto de Psicologia da UFRJ. Foi repórter do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro e colabora com veículos especializados, além de atuar como consultora e pesquisadora.

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