ODS 1
Indígenas usam carta e vigília para enfrentar marco temporal no STF
Para relator, Edson Fachin, marco temporal significaria fechar a porta aos indígenas "para o exercício completo e digno de todos os direitos inerentes à cidadania"
Após passeata pela Esplanada dos Ministérios, indígenas acampados em Brasília entregaram, no dia 24 de agosto, carta com mais de 160 mil assinaturas virtuais ao Supremo Tribunal Federal (STF), manifestando seu protesto contra a tese do chamado marco temporal e pedindo que a Corte proteja os direitos constitucionais dos povos indígenas. “O tratamento que a Justiça brasileira tem dispensado às comunidades indígenas, aplicando a chamada ‘tese do marco temporal’ para anular demarcações de terras, é sem dúvida um dos exemplos mais cristalinos de injustiça que se pode oferecer a alunos de um curso de teoria da justiça”, afirma o documento.
Leu essa? Saga judicial dos Xokleng vai influenciar novas demarcações
Mais de seis mil indígenas do acampamento Luta pela Vida (continuidade do acampamento Luta Pela Terra, montado em Brasília durante o mês de junho) ocuparam as pistas da esplanada e foram até a Praça dos Três Poderes para protocolar a carta ao Supremo. Os manifestantes pretendem ficar em vigília pelo menos até fim do julgamento no STF da ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem os povos Guarani e Kaingang.
A questão indígena começou a ser julgada nesta quinta (26/08), com a leitura do voto do relator, ministro Edson Fachin, que reiterou seu entendimento contra o marco temporal e favor dos indígenas. “Entender-se que a Constituição solidificou a questão ao eleger um marco temporal objetivo para a atribuição do direito fundamental a grupo étnico significa fechar-lhes uma vez mais a porta para o exercício completo e digno de todos os direitos inerentes à cidadania”, argumentou Fachin, em seu voto.
“As formas de resistência indígena à ocupação ilícita de suas terras deve ser perquirida de acordo com a concepção que cada etnia possui sobre as formas de resistir às invasões. Pelas razões acima elencadas, concluo que a proteção constitucional aos ‘direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam’ independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988 e da configuração do renitente esbulho como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição”, acrescentou Fachin, em sua argumentação em defesa dos direitos dos povos indígenas e contra a tese do marco temporal.
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosA PGR (Procuradoria-Geral da República) também já se manifestou contra o marco temporal. “O artigo 231 da Constituição Federal reconhece aos índios direitos originários sobre as terras de ocupação tradicional, cuja identificação e delimitação há de ser feita à luz da legislação vigente à época da ocupação”, escreveu o procurador-geral da República, Augusto Aras.
Após a leitura do voto de Fachin, o presidente do STF, Luiz Fux, encerrou a sessão e anunciou a retomada do julgamento na próxima quarta-feira, 1º de setembro. Há 39 sustentações orais previstas – de advogados e representantes de entidades, contra e a favor da tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas. O julgamento deve demorar, pelo menos mais duas sessões. A sessão de 26 de agosto foi acompanhada pelos indígenas acampados em Brasília através de um telão que reproduziu a transmissão do julgamento pela TV Justiça
Repercussão geral
Em 2019, o STF deu status de “repercussão geral” ao processo, o que significa que a decisão tomada neste caso servirá de diretriz para a gestão federal e todas as instâncias da Justiça no que diz respeito aos procedimentos demarcatórios, além de servir para balizar propostas legislativas que tratem dos direitos territoriais dos povos originários.
A questão central é a discussão em torno do chamado marco temporal, tese jurídica defendida por ruralistas e outros setores interessados na exploração das Terras Indígenas. Segundo esta interpretação, os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Se não estivessem na terra, os indígenas precisariam estar em disputa judicial ou em conflito material comprovado pela área na mesma data.
De acordo com o documento, há pelos menos 231 processos demarcatórios paralisados e 536 pedidos indígenas de constituição de grupos de trabalho para identificação de outras terras tradicionais. “A paralisação de grande parte dos processos de demarcação na Funai decorre de ações judiciais propostas por ocupantes não-indígenas (fazendeiros ou poder público estadual), visando à anulação dos atos administrativos que declaravam a tradicionalidade da terra indígena por eles atualmente ocupadas para fins comerciais ou não”, destaca a carta assinada, inicialmente, por 301 pessoas (artistas, juristas, acadêmicos e outras personalidades) e depois ampliada pelo recolhimento de assinaturas virtuais.
As lideranças indígenas e seus aliados contestam a necessidade de comprovação de disputa ou conflito pela terra para ter direito a novas demarcações. “Como exigir prova de resistência ao esbulho renitente a pessoas e comunidades vulneráveis, muitas vezes transferidas à revelia para outros espaços, a quem o Estado tutelava e não reconhecia capacidade civil? Exigir provas de sujeitos que sequer foram citados ou admitidos no respectivo processo judicial? Que sequer, na maioria das vezes, sabia da existência do trâmite de um processo dessa natureza?”, questiona o documento.
A carta cita o último Censo do IBGE (2010) para lembrar que 42,3% dos indígenas brasileiros moram fora de terras indígenas e quase metade deles vive nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste do país. “Para boa parte dos povos indígenas brasileiros, a perda dos territórios tradicionais consolidou-se a partir da metade do século 20. Considerados incapazes e tutelados, o Estado brasileiro jamais negociou ou lhes deu possibilidade concreta de se opor às remoções”, frisa o documento. “No Brasil, só muito recentemente os tribunais concederam aos povos indígenas o direito de serem ouvidos quando o assunto é direito à terra”, acrescenta.
Para sensibilizar os ministros do Supremo, além da carta, indígenas acamparam em Brasília a partir do dia 22 de agosto. De acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), mais de seis mil indígenas, representando 173 povos de 20 estados brasileiros estão na capital. Grande parte deles marchou, nesta terça, até o STF, com uma parada em frente ao Congresso Nacional para protestar contra o marco temporal e também contra projetos que favorecem a grilagem de terras indígenas.
O julgamento com repercussão geral é sobre a Terra Indíegena Ibirama-Laklãnõ, localizada entre os municípios catarinenses de Doutor Pedrinho, Itaiópolis, Vitor Meireles e José Boiteux, ao noroeste de Florianópolis (SC). A área tem um longo histórico de demarcações e disputas, que se arrasta desde o século 20, quando foi sendo reduzida drasticamente. O território foi identificado por estudos da Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2001, e declarado pelo Ministério da Justiça como pertencente ao povo Xokleng em 2003. Os indígenas nunca pararam de reivindicar o direito ao seu território ancestral.
*Reportagem foi atualizada em 26/08 para incluir o começo do julgamento com o voto do ministro Edson Fachin
Relacionadas
Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade