Desmatamento cria pasto de 500 mil km² na Amazônia

Imagem aérea de uma queimada no Mato Grasso, dentro de um território indígena. Foto Marizilda Cruppe/Anistia Internacional

Relatório da Anistia Internacional aponta a pecuária como a principal causa da expansão da grilagem em unidades de conservação e terras indígenas

Por Marizilda Cruppe | ODS 15 • Publicada em 26 de novembro de 2019 - 00:01 • Atualizada em 26 de novembro de 2019 - 11:00

Imagem aérea de uma queimada no Mato Grasso, dentro de um território indígena. Foto Marizilda Cruppe/Anistia Internacional
Imagem aérea de uma queimada no Mato Grosso, dentro de um território indígena. Foto Marizilda Cruppe/Anistia Internacional
Imagem aérea de uma queimada no Mato Grosso, dentro de um território indígena. Foto Marizilda Cruppe/Anistia Internacional

Relatório divulgado hoje pela Anistia Internacional revela que cerca de dois terços das áreas desmatadas na Amazônia entre 1988 e 2014 foram cercadas, queimadas e convertidas em pastagens – quase 500.000 km2, uma área total equivalente a cinco vezes o tamanho de Portugal ou quase doze vezes o tamanho do Estado do Rio de Janeiro. Os pesquisadores também documentaram como algumas autoridades estaduais permitem a criação ilegal de gado em áreas protegidas.

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“A pecuária ilegal é o principal fator do desmatamento na Amazônia. Isso representa uma ameaça muito real, não apenas aos direitos humanos dos povos indígenas e tradicionais que vivem lá, mas também a todo o ecossistema do planeta”, disse Richard Pearshouse, chefe do departamento de crises e meio ambiente da Anistia Internacional. “Enquanto o governo Bolsonaro reduz as proteções ambientais em nível federal, algumas autoridades estaduais estão efetivamente credenciando a pecuária ilegal que destrói áreas protegidas da floresta tropical”, completa Pearshouse.

Vale repassar um dos métodos de destruição da floresta. Madeireiros ilegais identificam as áreas onde há madeira de alto valor comercial.  Uma vez identificadas as áreas, as estradas são abertas para que os trabalhadores – muitos em regime de escravidão – coloquem abaixo, em minutos, o que a natureza levou centenas de anos para construir. Em seguida, grileiros colocam fogo no que restou da floresta. Às vezes é necessário queimar mais de uma vez. Aí é hora de dividir a terra e vender os lotes – tudo ilegalmente – para a formação de pastos que vão abrigar rebanhos clandestinos de gado. Registre-se que para alimentar um único boi são necessários dez mil metros quadrados ou um campo de futebol inteirinho. Tem mais, na região da floresta amazônica brasileira vivem milhões de pessoas que direta ou indiretamente têm seus direitos violados e suas vidas atingidas pelo desmatamento.

Mapa da Região Amazônia indicando as três áreas indígenas visitadas pela Anistia Internacional. Reprodução
Mapa da Região Amazônia indicando as três áreas indígenas visitadas pela Anistia Internacional. Reprodução

Intimidação, ameaças e violência

Ao longo deste ano, os pesquisadores estiveram em cinco áreas protegidas na Amazônia brasileira. As terras indígenas Karipuna e Uru-Eu-Wau-Wau, e as reservas extrativistas Rio Ouro Preto e Rio Jacy-Paraná, todas em Rondônia, e a terra indígena Manoki, no Mato Grosso.

Na terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, que se sobrepõe ao Parque Nacional Pacaás Novos, um agente ambiental federal disse que mais de 40 km de novas estradas surgiram desde 2017. Cercar e queimar grandes áreas de floresta é outra evidência de que fazendeiros e grileiros estão tentando invadir as terras. A Anistia Internacional testemunhou e gravou imagens com drone de uma queimada no território indígena Manoki, no Mato Grosso, em 23 de agosto de 2019.

A organização também analisou imagens de satélite e dados das queimadas nas cinco áreas visitadas e um padrão foi observado. Em muitos casos, as imagens de satélite capturaram áreas de queimadas próximas a pastos onde era possível identificar gado pastando livremente em unidades de conservação e até passando para as áreas recentemente queimadas.

A Reserva Extrativista Rio Jacy-Paraná vem sofrendo com grilagem de terras desde o ano 2000, quando havia 342 hectares de pasto. No ano passado esse número chegou a impressionantes 105 mil hectares. Em 2019 as áreas de pastagem já correspondem à metade da reserva.

Segundo depoimento de uma liderança do povo Manoki à Anistia Internacional, desde janeiro deste ano houve um aumento das invasões e grilagem de terras dentro da terra indígena Manoki. Podem ser vistas placas com os nomes das propriedades, novas estradas foram abertas, novas áreas de pasto e cercas foram construídas, o gado foi introduzido nos pastos, além da reocupação de propriedades que haviam sido abandonadas pelos agricultores e fazendeiros.

Indígenas e povos tradicionais de quatro das cinco áreas protegidas visitadas disseram aos pesquisadores que as invasões costumam ser acompanhadas de violência, ameaças e intimidações. Na quinta unidade, a reserva Rio Jacy-Paraná, praticamente todos os habitantes originais foram expulsos à força da reserva extrativista e têm medo de voltar porque os invasores envolvidos na criação de gado agora vivem em suas terras e andam armados.

Rebanho ocupa ilegalmente uma parte da reserva Rio Ouro Preto, em Rondônia. Foto Anistia Internacional
Rebanho ocupa ilegalmente uma parte da reserva Rio Ouro Preto, em Rondônia. Foto Anistia Internacional

As ameaças também atingiram os servidores federais. Um agente ambiental de Rondônia contou à Anistia que foram cercados por trinta e dois homens, a maioria encapuzados, carregando garrafas com gasolina. O impasse durou mais de uma hora até a saída dos agressores. Semanas depois, novas ameaças chegaram por mensagens de áudio nos celulares dos agentes.

A responsabilidade dos governantes

A organização internacional revelou que além do governo Bolsonaro ter cortado verbas e pessoal e assim ter prejudicado as operações das agências de proteção ambiental e indígena, os governos estaduais também permitiram a criação ilegal de gado em áreas protegidas. Segundo a Anistia, os governos estaduais têm dados sobre as fazendas de gado e a movimentação dos rebanhos. Quando as autoridades estaduais registram as fazendas ou emitem licenças de transporte de animais, mesmo sabendo que a criação se dá numa área protegida, elas endossam a criação ilegal de gado.

A Anistia Internacional solicitou aos governos dos Estados de Rondônia e Mato Grosso, através da Lei de Acesso à Informação, dados sobre o número de bovinos em áreas protegidas. A Agência de Defesa Agrossilvopastoril de Rondônia (Idaron) forneceu dados incompletos. As autoridades do Mato Grosso se recusaram a responder, apesar de terem recebido cinco solicitações diferentes. Os dados obtidos sobre Rondônia mostraram que havia quase 300 mil bovinos em territórios indígenas e áreas protegidas em novembro do ano passado.

A pecuária ilegal é o principal fator do desmatamento na Amazônia. Isso representa uma ameaça muito real, não apenas aos direitos humanos dos povos indígenas e tradicionais que vivem lá, mas também a todo o ecossistema do planeta

“O público tem o direito de saber sobre a criação de gado em áreas protegidas – afinal, é uma atividade criminosa. As autoridades brasileiras devem disponibilizar essas informações ao público e tomar medidas significativas para acabar com a pecuária ilegal nessas áreas ”, disse Richard Pearshouse.

No relatório, a Anistia fez três recomendações ao presidente Bolsonaro, oito aos Ministérios Públicos Federal e Estadual e às autoridades policiais, cinco ao Instituto de Defesa Agropecuária de Mato Grosso (INDEA) e, por fim, três aos órgãos públicos ambientais IBAMA, ICMBio e Secretarias Estaduais de Meio Ambiente. As dezenove recomendações poderiam ser resumidas por uma única frase: façam o que diz a Constituição.

Placa da Funai atingida por tiros dentro do território indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia. Foto Gabriel Uchida/Anistia Internacional
Placa da Funai atingida por tiros dentro do território indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia. Foto Gabriel Uchida/Anistia Internacional

Mais boi do que gente

Segundo dados da Pesquisa da Pecuária Municipal (PPM) divulgados mês passado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Brasil existem 213,5 milhões de cabeças de gado contra 210 milhões de cabeças de gente. São Félix do Xingu tem o maior rebanho bovino do país, com 2,3 milhões bois contra uma população bípede de 128 mil pessoas.

O tamanho do rebanho, porém, não é diretamente proporcional à abastança da população. Apesar do Produto Interno Bruto (PIB) per capita ser de R$ 11.724,67, em 2017, o salário médio mensal dos 4% de trabalhadores com emprego formal era de 2,3 salários mínimos. Quase metade da população vivia com apenas R$ 468,00 mensais. O município tem um índice de desenvolvimento humano (IDH) baixíssimo e ocupa a 4.284ª no ranking brasileiro. Somente 22,5% dos domicílios tem esgotamento sanitário adequado e 0,2% dos domicílios urbanos em vias públicas tem urbanização adequada. Em outubro, quatro madeireiras clandestinas foram fechadas durante a Operação Verde Brasil. O município também estava na lista das 10 cidades com mais alertas de desmatamento em 2019.

Mato Grosso, Pará e Rondônia são os TOP 3 na lista de desmatadores do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (PRODES), divulgada este mês pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Os três estados também aparecem na lista dos mais perigosos para defensores da terra e da floresta e com os maiores rebanhos. O IBAMA apreendeu no mês passado 400 cabeças de gado no Parque Nacional da Serra do Pardo, em São Félix do Xingu. Na mesma operação foram apreendidas outras 1300 cabeças na Fazenda Porto Rico, a 20 km do parque, que estava embargada por desmatamento feito em 2008. É só ligar os pontos.

Marizilda Cruppe

​Marizilda Cruppe tentou ser engenheira, piloto de avião e se encontrou mesmo no fotojornalismo. Trabalhou no Jornal O Globo um bom tempo até se tornar fotógrafa independente. Gosta de contar histórias sobre direitos humanos, gênero, desigualdade social, saúde e meio-ambiente. Fotografa para organizações humanitárias e ambientais. Em 2016 deu a partida na criação da YVY Mulheres da Imagem, uma iniciativa que envolve mulheres de todas as regiões do Brasil. Era nômade desde 2015 e agora faz quarentena no oeste do Pará e respeita o distanciamento social.

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