Pecuária e proteção ambiental podem andar juntas

A pecuária orgânica no Pantanal proíbe o uso de agrotóxicos e outros produtos químicos para alimentação e cuidados com o gado, tratado com medicamentos fitoterápicos e homeopáticos.Foto Andre Dib/WWF-Brasil

Boas práticas na cadeia da carne atendem às exigências de mercados mais atentos aos impactos ambientais e mostram bons resultados

Por Elizabeth Oliveira | ODS 15 • Publicada em 23 de novembro de 2019 - 09:29 • Atualizada em 23 de novembro de 2019 - 09:47

A pecuária orgânica no Pantanal proíbe o uso de agrotóxicos e outros produtos químicos para alimentação e cuidados com o gado, tratado com medicamentos fitoterápicos e homeopáticos.Foto Andre Dib/WWF-Brasil
A pecuária orgânica no Pantanal proíbe o uso de agrotóxicos e outros produtos químicos para alimentação e cuidados com o gado, tratado com medicamentos fitoterápicos e homeopáticos.Foto Andre Dib/WWF-Brasil
A pecuária orgânica no Pantanal proíbe o uso de agrotóxicos e outros produtos químicos para alimentação e cuidados com o gado, tratado com medicamentos fitoterápicos e homeopáticos. Foto Andre Dib/WWF-Brasil

Em pleno Pontal do Paranapanema, oeste do Estado de São Paulo, uma das regiões brasileiras que enfrentam problemas de escassez hídrica, a Fazenda São Geraldo não passa por falta d´água e ainda contribui para o abastecimento do seu entorno. As áreas florestais conservadas fazem a diferença nessa oferta. Tendo a pecuária certificada como a sua principal atividade econômica e uma produtividade dez vezes maior do que a média nacional, por hectare, a propriedade localizada em Presidente Prudente demonstra que a proteção ambiental e as boas práticas na criação de gado bovino podem ser conciliadas. A carne do seu rebanho é destinada às exportações, inclusive para a exigente União Europeia, por intermédio de frigoríferos que garantem a rastreabilidade da produção de seus fornecedores.

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A atividade pecuária tem sido conciliada com o processo de recuperação ambiental da fazenda, iniciado em 2009, com enfoque no reflorestamento das Áreas de Preservação Permanentes (APPs). Essas são áreas como margens de rios, topos de morros, nascentes, entre outras de grande importância ambiental, que devem ser resguardadas nas propriedades privadas, de acordo com a Lei de Proteção da Vegetação Nativa que alterou o Código Florestal, em 2012. Elas precisam ser recompostas, caso tenham sido desmatadas no passado, a fim de garantir o equilíbrio dos ecossistemas onde estão inseridas.

Entusiasta dessa iniciativa, o médico, autor de livros didáticos de biologia e pecuarista, José Arnaldo Favaretto, conta que o projeto da São Geraldo se intensificou e alcançou grandes avanços com a participação do biólogo Ricardo Ribeiro Rodrigues, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, vinculada à Universidade de São Paulo (Esalq/USP), onde coordena o Laboratório de Ecologia e Restauração Florestal (LERF), uma das principais referências brasileiras nessa temática. Nesse processo de recomposição ambiental da propriedade ele destaca também a importante contribuição do professor Edson Luís Piroli, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que ficou a cargo da primeira etapa, realizada entre 2009 e 2010.

Como parte dos resultados mais relevantes alcançados desde então, as áreas de APPs e Reserva Legal (também regidas pelo Código Florestal e que na Mata Atlântica devem representar 20% das propriedades privadas) foram redesenhadas, contribuindo para criar corredores ecológicos na fazenda. Além da perenidade hídrica, outras vantagens dessa recuperação florestal envolvem o reaparecimento de espécies de animais, incluindo aves e pequenos mamíferos. Mas segundo Favaretto, até mesmo a presença de uma onça-parda já fez parte das inúmeras surpresas decorrentes desse processo.

Áreas de Preservação Permanentes (APPs) da Fazenda São Geraldo, em 2009. Foto Acervo pessoal/José Arnaldo Favaretto
Áreas de Preservação Permanentes (APPs) da Fazenda São Geraldo, em 2009. Foto Acervo pessoal/José Arnaldo Favaretto
Áreas de Preservação Permanentes (APPs) da Fazenda São Geraldo, dez anos depois, em 2019. Foto Acervo pessoal/José Arnaldo Favaretto
Áreas de Preservação Permanentes (APPs) da Fazenda São Geraldo, dez anos depois, em 2019. Foto Acervo pessoal/José Arnaldo Favaretto

Boas práticas impulsionam a produtividade

Com um rebanho formado por 4,8 mil cabeças, o nível de produtividade da São Geraldo atinge 45,7 arrobas por hectare ao ano, dez vezes acima da média nacional alcançada em 2018, de 4,5 arrobas ha/ano (cada arroba soma cerca de 15 quilos no Brasil). Segundo Favaretto, as boas práticas adotadas repercutem nesse alto desempenho e envolvem fatores como investimentos na capacitação permanente da equipe de gestores e colaboradores, na gestão de informações em tempo real, além da informatização de diversas etapas do processo.

Também são mencionados como fundamentais às boas práticas de manejo e bem-estar animal, os investimentos em fertilização de pastagens, em nutrição e sanidade em todas as fases do ciclo, em genética do sistema produtivo, bem como em infraestrutura da propriedade.

Olhar para as fotos de satélite e constatar os resultados surpreendentes da recuperação ambiental da fazenda, nos últimos dez anos, se tornou um motivo de orgulho para Favaretto. “Acredito que a propriedade rural como empresa pode andar junto com a proteção ambiental”, observa. E exemplifica o motivo dessa satisfação pessoal e profissional: “A APP do Zé Arnaldo ficou como referência na região”.

Apesar dos esforços, o pecuarista reconhece que um dos principais desafios do processo de recuperação ambiental das propriedades rurais no Brasil se refere à disponibilidade de recursos financeiros. Segundo ele, para alcançar os resultados referentes à manutenção de Reserva Legal e APPs conservadas na sua fazenda, inserida em uma área de 1.300 hectares, os investimentos foram de cerca R$ 15 mil, por hectare recuperado.

Mas Favaretto considera que o investimento vale a pena quando se pensa em termos de comprometimento ético relacionado à recuperação ambiental. Para ele, há um compromisso intergeracional que move essa iniciativa, além do papel de cidadão preocupado com os serviços prestados às comunidades e com a proteção da vida. Essa filosofia está muito alinhada com os valores da medicina que escolheu como profissão e, ainda, com todo o seu envolvimento com atividades educacionais nos últimos 42 anos, desde quando atua no ensino de biologia, tendo se tornado uma referência na produção de livros didáticos para essa área do conhecimento.

A carne orgânica do Pantanal tem mercado certo

Uma das experiências mais antigas e bem-sucedidas de boas práticas na pecuária brasileira tem sido desenvolvida no Pantanal, onde o WWF-Brasil identificou a possibilidade de alavancar a conservação justamente por intermédio da cadeia da carne, há 18 anos.

A pecuária pantaneira apresenta uma peculiaridade, segundo Júlio Cesar Sampaio, gerente do Programa Cerrado Pantanal do WWF-Brasil. Ele explica que, diferentemente do Cerrado, que conta com somente 49% de suas áreas naturais originais, tendo sido fortemente impactado pela produção de carne e grãos, 83% do Pantanal se mantêm conservados, apesar da presença da pecuária há cerca de 300 anos nesse bioma.

Atualmente, cinco empresas absorvem a produção de carne certificada do Pantanal, cujo rebanho é de 50 mil cabeças.Foto Andre Dib/WWF-Brasil
Atualmente, cinco empresas absorvem a produção de carne certificada do Pantanal, cujo rebanho é de 50 mil cabeças.Foto Andre Dib/WWF-Brasil

“A própria dinâmica natural do Pantanal (marcada por períodos de cheias e seca durante o ano) exige que o gado se movimente para ter acesso à pastagem natural em áreas de terra firme, enquanto outras estão alagadas”, afirma Sampaio ao esclarecer que esse processo também contribuiu para conter a expansão da pecuária.

Diante da constatação de que a pecuária não havia contribuído para ampliar o desmatamento do Pantanal, a organização ambientalista chegou à conclusão de que seria importante agregar valor à produção de carne pantaneira, destacando o seu diferencial, assim como atuar para reduzir as emissões de gases de efeito estufa decorrentes do manejo do gado bovino, entre outras iniciativas ambientais.

Assim, em dez anos de trabalho foi aprimorado o processo de pecuária orgânica do Pantanal que proíbe o uso de agrotóxicos e outros produtos químicos para alimentação e cuidados com o gado, tratado com medicamentos fitoterápicos e homeopáticos. Os pecuaristas que aderem a esse modelo também não podem fazer uso de fogo para manejar as suas áreas de pastagens. Essas e outras regras de atuação contribuem para evitar contaminação do solo e das fontes hídricas.

A carne orgânica do Pantanal atende à demanda de um nicho de consumidores mais preocupados com a saúde e os impactos ambientais da pecuária. Isso envolve uma rede de restaurantes especializados, supermercados e outros estabelecimentos

Paralelamente, novos mercados foram buscados para absorver a carne produzida de acordo com protocolo de sustentabilidade. Esse sistema de criação diferenciada do gado garante preços 10% mais altos para os produtores da região, em relação à carne tradicionalmente produzida no Brasil. Sampaio ressalta que o trabalho começou com três produtores e, atualmente, mobiliza cerca de 20, cujas propriedades envolvem mais de 500 mil hectares. Esse contingente está vinculado à Associação Brasileira de Pecuária Orgânica (ABPO) que se estabeleceu em 2001 e firmou parceria com o WWF-Brasil em 2003, além de outras alianças que se fortaleceram em torno dessa iniciativa.

Nesse percurso, Sampaio recorda que um grande impulso às atividades foi alcançado a partir de uma parceria firmada com a JBS, gigante do ramo de frigoríferos, que vigorou até 2012. “O encerramento dessa aliança trouxe dificuldades comerciais naquele período”, reconhece. Mas, soluções foram buscadas para a abertura de novos mercados e, atualmente, cinco empresas absorvem a produção de carne certificada do Pantanal, cujo rebanho é de 50 mil cabeças.

Produto consolidado

“A grande mudança observada é que esse produto se estabeleceu e está presente nas principais capitais brasileiras. A carne orgânica do Pantanal atende à demanda de um nicho de consumidores mais preocupados com a saúde e os impactos ambientais da pecuária. Isso envolve uma rede de restaurantes especializados, supermercados e outros estabelecimentos,” observa Sampaio. Ele acrescenta que, a certificação desses produtos garante aos consumidores o atendimento de exigências ambientais e trabalhistas já que, tanto o processo de produção como as fazendas são auditadas periodicamente para confirmação das boas práticas.

Outro importante diferencial para impulsionar esse modelo de produção, mencionado pelo ambientalista, se refere ao incentivo fiscal assegurado pelo governo do Mato Grosso do Sul que, concedeu redução de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) para a carne inserida em dois protocolos existentes no estado: 67% para a orgânica, produzida de acordo com normas do Sistema Brasileiro de Avaliação da Conformidade Orgânica (SisOrg) e de 50% para a sustentável, que segue as diretrizes do protocolo da ABPO. Esse e outros instrumentos de apoio à atividade em nível estadual estão detalhados em resolução assinada no ano passado.

Apesar dos avanços alcançados, na opinião de Sampaio ainda há entraves a superar para que seja possível ampliar a escala desse tipo de produção no Brasil. Por um lado, é preciso assegurar mais incentivos para esse modelo produtivo e, ao mesmo tempo, o cumprimento das exigências do Código Florestal.  Da mesma forma, o ambientalista também considera que há uma grande necessidade de sensibilização dos consumidores sobre a origem dos produtos.

“Parte do mercado consumidor brasileiro ainda não é muito exigente e, geralmente, escolhe a picanha mais barata da prateleira. Comunicar sobre os critérios de produção para que esse segmento também se torne mais atento à importância da rastreabilidade ainda representa um grande desafio”, ressalta.

A necessidade de ampliar a transparência, sobretudo em relação às práticas dos grandes empreendimentos da cadeia da carne, também é mencionada por Sampaio como uma questão central quando se trata de debate sobre a sustentabilidade da pecuária brasileira.

“É preciso separar o bom do ruim”, afirma pesquisador

“Como não temos política clara para reconhecer os proprietários que atuam corretamente, é preciso separar o bom do ruim”, afirma o biólogo Ricardo Ribeiro Rodrigues, professor da Esalq/USP, onde coordena o Laboratório de Ecologia e Restauração Florestal (LERF). Esse laboratório já foi responsável pela adequação ambiental de 4,2 milhões de hectares em propriedades rurais brasileiras, nas quais foram restaurados 19 mil hectares de matas ciliares (margeiam rios), além de protegidos mais de 200 mil hectares de remanescentes florestais, entre outros avanços.

Para o especialista, não se pode generalizar quando se trata de produção pecuária no Brasil já que nem todos os produtores assumem a postura equivocada de que a proteção ambiental representa um entrave às atividades econômicas. “Essa é a ideia de uma minoria”, opina.

Além de diversos projetos de recuperação ambiental que já liderou em fazendas de criação de gado brasileiras, incluindo a São Geraldo, de José Arnaldo Favaretto, Rodrigues ressalta que há iniciativas de pecuária sustentável sendo realizadas no país, inclusive na Amazônia. Como exemplos, ele menciona o projeto Pecuária Sustentável da Amazônia (Pecsa), desenvolvido no Mato Grosso, além do Pecuária Verde, de Paragominas, no Pará, que segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente na Amazônia (Imazon) é um modelo de atuação que poderia ser replicado em 400 mil fazendas na região. “Dá para atuar direito (cumprindo a legislação ambiental) e as vantagens são inúmeras, tanto para o ambiente como para a qualidade do produto final que tende a ser mais valorizado pelo mercado”, observa.

Rodrigues considera, ainda, que é preciso criar mais demandas para produtos certificados e que o momento é oportuno para ampliar esse movimento no país, sobretudo para a cadeia da pecuária, pensando não somente nas exportações, mas também no consumidor brasileiro que, de forma geral, ainda não tem muito hábito de verificar a origem dos produtos que consome. Para ele, é cada vez mais fundamental atuar de forma a disseminar essa cultura para influenciar nas decisões de compra e pautar avanços no modelo de produção. “Precisamos rever o nosso papel como consumidores”, opina.

Do ponto de vista das exportações, a tendência é de se ampliar as exigências de certificação, sobretudo para países como a China que, diferente dos inseridos na União Europeia, ainda não atua com esse nível de cobrança dos exportadores. Nesse cenário, regiões de grande importância para essa atividade econômica como a Amazônia estarão cada vez mais sob os holofotes globais e seus processos de produção insustentáveis tenderão a ser rejeitados pelo mercado, como já vêm ocorrendo, sobretudo a partir de 2019, quando dispararam os índices de desmatamento e queimadas, impactos ainda fortemente associados a um modelo ultrapassado de pecuária.

Elizabeth Oliveira

Jornalista apaixonada por temas socioambientais. Fez doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED), vinculado ao Instituto de Economia da UFRJ, e mestrado em Ecologia Social pelo Programa EICOS, do Instituto de Psicologia da UFRJ. Foi repórter do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro e colabora com veículos especializados, além de atuar como consultora e pesquisadora.

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