Crise climática ameaça produção de energia elétrica no Brasil

Hidrelétrica de Sobradinho com nível por conta da estiagem: Crise climática ameaça produção de energia elétrica no Brasil (Foto: Chesf / Divulgação)

Estudo aponta vulnerabilidade do setor elétrico do país, com mudanças no regime de chuvas e secas mais intensas e prolongadas

Por Oscar Valporto | ODS 13ODS 7 • Publicada em 26 de maio de 2023 - 12:45 • Atualizada em 25 de novembro de 2023 - 13:06

Hidrelétrica de Sobradinho com nível por conta da estiagem: Crise climática ameaça produção de energia elétrica no Brasil (Foto: Chesf / Divulgação)

Na última década, o Brasil sofreu as piores secas da história, que culminaram, em 2021, com a mais grave crise hídrica dos últimos 90 anos, o que desencadeou outra crise – a energética. Para evitar apagões, foram ligadas usinas termelétricas a carvão, nocivas ao meio ambiente, e o preço da energia subiu para o consumidor. Com a maior parte de sua energia baseada na produção das hidrelétricas, o país vai enfrentar cada vez mais crises assim já que as mudanças climáticas estão provocando alterações nos regimes de chuva – dificultando as previsões – e tornando os períodos de estiagens mais prolongados e intensos.

Se a dinâmica das alterações do clima não é considerada adequadamente, todo o planejamento do sistema de geração de energia fica vulnerável e comprometido. Trabalhar com séries históricas ou sintéticas de precipitação significa esperar um volume de chuva médio que pode não ocorrer

Lincoln Muniz Alves
Climatologista e pesquisador do Inpe

Esta é a principal conclusão do estudo ‘Vulnerabilidade do setor elétrico brasileiro frente à crise climática global e propostas de adaptação’, encomendado pela Coalizão Energia Limpa, formada por ClimaInfo, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Instituto Clima e Sociedade (iCS), Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Instituto Internacional Arayara e Instituto Pólis. “É urgente adotar uma nova forma de planejar e operar o sistema elétrico nacional. A solução deve ser multifacetada e exigirá maior diversificação da matriz elétrica para desenvolver efeticamente um sistema resiliente às mudanças climáticas”, afirmou o o professor e engenheiro elétrico José Wanderley Marangon Lima, do Inel (Instituto Nacional de Energia Limpa)., um dos autores do estudo ao lado do climatologista Lincoln Muniz Alves, pesquisador do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Especiais) e do meteorologista José Marengo, coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).

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O Brasil é um dos grandes produtores mundiais de energia hidrelétrica, respondendo por 10% da produção mundial: números oficiais apontam que quase dois terços (cerca de 60%) de geração através de hidroeletricidade. “É uma energia renovável o que é importante. Contudo, ela é fortemente dependente de variações climáticas – as chuvas essenciais são essenciais para os reservatórios dessas usinas. Com a mudança do comportamento das chuvas devido às mudanças climáticas, esta geração está cada vez mais ameaçada”, alertou o climatologista Lincoln durante a apresentação do estudo nesta sexta, 26/05. “A mudança climática é uma ameaça ao setor elétrico brasileiro cujo planejamento é projetado sob o histórico de variáveis climáticas que estão sofrendo alterações no comportamento”, acrescentou.

O estudo alerta que o Brasil já está enfrentando as consequências da crise climática, com secas mais intensas em algumas regiões e recordes de chuva em outras. “As projeções sugerem que muitas regiões do mundo experimentarão eventos de secas mais frequentes e severas e de chuvas fortes como consequência do aumento das emissões de gases de efeito estufa. Para o Brasil, as tendências de aumento de temperatura devem continuar ao longo do século 21 a uma taxa superior à média global. Projeções apontam uma redução das vazões das usinas localizadas nas regiões Norte e Nordeste. Para as usinas no Sul e parte do Sudeste, a tendência é de aumento das vazões. Para a bacia do Paraná existe uma incerteza maior devido à Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS) onde os modelos climáticos divergem quanto ao aumento ou diminuição da precipitação”, alerta o estudo.

Ainda de acordo com a análise dos pesquisadores, essa diminuição das precipitações esperada nas regiões Norte e Nordeste não recomenda a implantação de novas centrais hidrelétricas, principalmente se forem usinas a fio d’água, quando a força da correnteza dos rios é aproveitada para gerar energia, sem precisar estocar a água. O estudo cita o caso do complexo de usinas no Rio Tapajós, previsto para entrar em operação depois de 2030 pelo MME “e que precisa ser reavaliado à luz das projeções climáticas”.

As projeções também apontam para o incremento nos ventos e na radiação solar no Nordeste, projetando que a região deverá ser um grande exportador de energia renovável, confirmando a tendência de multiplicação das usinas eólicas e solares. Os pesquisadores defendem, no estudo, que “diversificar a matriz elétrica, elevando a participação das fontes renováveis solar e eólica, permitiria a redução dos custos da energia elétrica, gerando uma maior competitividade internacional dos produtos brasileiros. Além da transição em si, os efeitos benéficos sobre a economia ofereceriam uma oportunidade para diminuir desigualdades sociais”.

Parque eólico na Bahia: estudo defende investimento em fontes renováveis mas alerta para necessidade de respeitar comunidades locais (Foto: Enel / Divulgação)
Parque eólico na Bahia: estudo defende investimento em fontes renováveis mas alerta para necessidade de respeitar comunidades locais (Foto: Enel / Divulgação)

Renováveis mas também vulneráveis

Essas fontes de energia elétrica limpas e renováveis, entretanto, também podem ser afetadas pela crise climática. “Assim como as hidrelétricas, as energias renováveis têm como ´’combustível’ as variáveis climáticas e, portanto, são mais vulneráveis aos impactos das mudanças climáticas na geração de energia elétrica”, alertam os pesquisadores, no estudo, defendendo ações planejadas para melhorar a resiliência dos sistemas de produção e transporte de energia e estruturar a matriz energética e elétrica para que os sistemas energéticos sejam mais resilientes. “Fontes renováveis, como a eólica e a solar, são sempre intermitentes pois dependem também dos ventos e do sol. Precisa haver um planejamento para aproveitar as diversas fontes para a descarbonização do setor elétrico”, disse o professor Marangon.

Vejo com muito bons olhos a evolução da geração distribuída de energia elétrica, o que garante maior independência individual ou regional das redes de transmissão e distribuição. Um sistema mais distribuído tende a ser mais resiliente

José Wanderley Marangon
Professor e engenheiro elétrico

Apesar de defender os investimentos em energia eólica e solar, o estudo destaca que o Estado brasileiro deve planejar e orientar a expansão das energias renováveis “sem que, no entanto, repita-se o modelo historicamente adotado para o setor, pelo qual os Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais são invariavelmente violados na garantia de seu direito territorial”. Esse modelo já vem causando conflitos em áreas de implantação de usinas eólicas, principalmente, e solares no Nordeste. “O processo de aprovação e licenciamento deve assegurar a aplicação de salvaguardas que garantam os direitos territoriais e a consulta livre prévia e informada aos Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais”, disse Carol Marçal, coordenadora de projetos do Instituto ClimaInfo, presente à apresentação do estudo.

Para os pesquisadores, apesar de já haver uma preocupação do poder público e a incorporação de cenários no processo de planejamento do setor elétrico, não existem ações concretas suficientes e nem o desenvolvimento de políticas públicas necessárias para lidar com a magnitude do problema. “Se a dinâmica das alterações do clima não é considerada adequadamente, todo o planejamento do sistema de geração de energia fica vulnerável e comprometido. Trabalhar com séries históricas ou sintéticas de precipitação significa esperar um volume de chuva médio que pode não ocorrer”, destacou Lincoln Muniz Alves.

O estudo lembra que a localização geográfica, a integração do sistema de transmissão e as características individuais das usinas hidrelétricas estão diretamente relacionadas com a intensidade dos impactos que o sistema vai receber com as variações climáticas. A princípio, quanto maior a interconexão do sistema, melhor sua capacidade de contornar algum problema que venha a surgir a partir da compensação permitida pelas diferentes variações. “Vejo com muito bons olhos a evolução da geração distribuída de energia elétrica, o que garante maior independência individual ou regional das redes de transmissão e distribuição. Um sistema mais distribuído tende a ser mais resiliente”, disse Marangon.

O professor defende investimentos em novas tecnologias para o armazenamento da energia, principalmente das fontes renováveis, para garantir a diversidade no sistema. “O Brasil tem abundância de ventos e sol para a geração de energia.  Precisamos usar a tecnologia para aproveitar esse potencial”, argumentou.  O estudo aponta que “promover a diversidade nos sistemas de energia, tanto em termos de produção de energia quanto de tipos de consumo de energia, aumenta a resiliência desses sistemas”. Isso pode ser alcançado em termos de promoção da diversidade tecnológica, quando os fornecimentos tradicionais de energia (petróleo, gás natural, carvão, energia nuclear e hidroelétrica) são complementados com novas tecnologias de geração de energia, a maioria relacionada a fontes de energia renováveis. Esses novos tipos de tecnologias incluem tecnologias expansivas de energia solar, eólica, geotérmica, de biomassa e de energia oceânica para geração de energia.

Sistema Cantareira em São Paulo durante a crise hídrica de 2021: previsão de secas mais intensas e prolongadas que terão impacto no geração de energia (Foto: Agência Brasil)
Sistema Cantareira em São Paulo durante a crise hídrica de 2021: previsão de secas mais intensas e prolongadas que terão impacto no geração de energia (Foto: Agência Brasil)

Dimensionar impacto da crise climática

De acordo com os pesquisadores, o Poder Público pode se preparar para minimizar os impactos devastadores desse fenômeno tornando os sistemas mais adaptados para enfrentar essa realidade. “É possível tornar o sistema elétrico mais resiliente a partir do mapeamento de suas vulnerabilidades”, enfatiza o estudo. Após esse mapeamento, “é necessário traçar um plano de resiliência e adaptação para o setor, com ações concretas que visam minimizar os impactos das mudanças climáticas na geração e distribuição de energia elétrica”, aponta o documento.

Nosso país tem todas as condições de estar na vanguarda do movimento global de redução de emissões de gases de efeito estufa a partir da oferta de energia limpa e acessível, mas precisamos ter o planejamento adequado para enfrentar esse desafio

Carol Marçal
Coordenadora de Projetos do ClimaInfo

Os pesquisadores defendem o desenvolvimento de metodologia para o dimensionamento das ameaças climáticas às quais estão sujeitas as usinas, com o consequente cálculo das vulnerabilidades tanto do ponto de vista local (do empreendimento propriamente dito) como sistêmico (da energia global gerada pelo sistema); estruturar um plano de resiliência e adaptação, com base na metodologia para dimensionamento das ameaças e a partir da análise das ameaças e as suas possibilidades de ocorrência; e construir uma maior reserva de potência no sistema interligado e um maior armazenamento de energia.

Também presente ao lançamento do estudo, o engenheiro Eduardo Barata Ferreira, ex-diretor do ONS (Operador Nacional do Sistema) destacou que as profundas mudanças sofridas na matriz energética nos últimos 40 anos. “O Brasil já teve 90% de sua energia produzida pelas hidrelétricas. Hoje, as energias eólica e solar têm uma participação maior e uma tendência de crescimento. E as mudanças climáticas estão acontecem em ritmo acelerado. É fundamental rever esse planejamento para garantir a segurança do sistema elétrico”, afirmou Barata. “É importante o desenvolvimento de sistemas energéticos mais robustos e menos vulneráveis, necessidade que já vem sendo observada nos últimos anos em função dessas variações no clima e da redução de precipitação em grande parte do país”, acrescentou Marangon.

Para Carol Marçal, do ClimaInfo, organização que coordenou a produção do estudo, essas soluções possíveis para minimizar futuras crises hídricas e energéticas devem ser parte da transição energética do Brasil. “Nosso país tem todas as condições de estar na vanguarda do movimento global de redução de emissões de gases de efeito estufa a partir da oferta de energia limpa e acessível, mas precisamos ter o planejamento adequado para enfrentar esse desafio”, destacou.

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Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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