As inocentes pedras portuguesas

As pedras portuguesas no tradicional calçadão de Copacabana. Foto Leemage

Elas podem ser polêmicas, mas não são culpadas. O responsável é o prefeito da vez

Por Joaquim Ferreira dos Santos | ODS 11 • Publicada em 16 de outubro de 2017 - 08:11 • Atualizada em 17 de outubro de 2017 - 13:17

As pedras portuguesas no tradicional calçadão de Copacabana. Foto Leemage
As pedras portuguesas no tradicional calçadão de Copacabana. Foto Leemage
As pedras portuguesas no tradicional calçadão de Copacabana. Foto Leemage

Tropeça-se muito nas calçadas do Rio de Janeiro, mas diga-se desde logo – antes de atirar pedras no peito de quem só nos fez tanto bem – que a culpa não é das pedrinhas portuguesas. Elas decoram o chão com desenhos de ondas e brasões, mosaicos anônimos ou de Burle Max, e tornam a cidade ainda mais bonita. São inocentes, coitadas, quando estão fora da ordem e, soltas no meio do caminho, põem a civilização carioca aos tropeções, milhares de ocorrências ortopédicas. A culpa é de quem mal as pôs.

A calçada portuguesa ocupa no Rio uma área de 1,2 milhão de metros quadrados, o equivalente ao bairro da Urca, e está sob os pés do carioca desde a reforma de Pereira Passos

“Fim”, o romance de estreia de Fernanda Torres, começa com a frase “Morte lenta ao luso infame que inventou a calçada portuguesa. Maldito d. Manuel e sua corja”. O estilo é retumbante, uma pedrada de ritmo bem composto, de voz agressiva, que não deixa o leitor tirar mais os olhos da página. A frase é dita por um personagem, um velhinho, que numa dessas portuguesas tropeçou. Parabéns, Fernandinha, pelo brilho das palavrinhas, mas a culpa não é da pedrinha – é do prefeito.

A calçada portuguesa ocupa no Rio uma área de 1,2 milhão de metros quadrados, o equivalente ao bairro da Urca, e está sob os pés do carioca desde a reforma de Pereira Passos, que modernizou a cidade no início do século passado. Suas pedrinhas vieram de Portugal, daí o nome, onde já adornavam o piso de Lisboa. Como eram permeáveis, permitindo a infiltração da água, o sanitarista Oswaldo Cruz achava que ajudariam a varrer da cidade a febre amarela, o tifo e a peste bubônica. Ao se fazerem de ondas na calçada da Avenida Atlântica, as pedrinhas de calcário e basalto inventaram, ao lado do Cristo no Corcovado, um dos símbolos da cidade. Enfim, elas trazem ao mesmo tempo saúde e desenho para a população – mas os prefeitos sempre acham que o trabalho que dão não compensa. E agora querem mais uma vez acabar com o que restou delas.

A prefeitura começa nos próximos dias, a partir da Praça Serzedelo Correa, em Copacabana, um novo projeto de padronizar as calçadas do Rio, essa velha obsessão municipal. Entre as tarefas está a de substituir as calçadas de pedras portuguesas, “as já descaracterizadas”, por blocos pré-moldados inter-travados de concreto.  Esses pisos serão reproduzidos em 36 milhões de metros quadrados do espaço público carioca, e a História da cidade – quem avaliará as “descaracterizadas”? – mais uma vez será pisoteada.

A praça Dom Pedro IV, no Rossio, em Lisboa. Foto Lorenzo De Simone/AGF
A praça Dom Pedro IV, no Rossio, em Lisboa. Foto Lorenzo De Simone/AGF

Aldir Blanc já dizia que quem tropeça também vai para a frente. No Rio isso não é verdade. Aqui, todos tropeçam cotidianamente em calçadas aos frangalhos, sacrificadas por criminosos diversos. São agentes malignos que vão desde o peso dos carros estacionados até o esgarçamento do piso com o plantio de árvores de natureza linda, mas que não cabem mais no urbanismo moderno. O tropeço pedagógico a que se referia Aldir, aqui turva a inteligência. A culpa pela cidade esburacada é atirada no lombo da pedrinha portuguesa. Ela é a Geni dessa história. Por ser mal cimentada, por não ter órgãos interessados em sua conservação, a toda hora ela salta e torna viva a lembrança da pedra no caminho de que também foi vítima Drummond, morador de Copacabana.

Lisboa, a nova Disney da civilização, novo endereço da Madonna, é coberta dessas mesmas pedrinhas e até agora nenhum endinheirado brasileiro colocou na tribuna visual do Instagram uma foto de alguém se estabacando num de seus buracos – porque simplesmente buracos não há. São calçadas lisas, com painéis espetaculares, linóleos carinhosos e convidativos. Servem de passarelas seguras para o flanar orgulhoso dos portugueses, tratadas com eficiência pelos administradores e uma legião de calceteiros bem formados. São mais trabalhosas que chapar todo o chão com concreto, como a prefeitura carioca ameaça fazer, mas que prazer viver numa cidade com elas aos pés!

O Rio tropeça nas próprias pernas e, aos trambolhões, catando cavaco, não vai para a frente, mas para a tenebrosa enfermaria do descaso com a má gestão. Os buracos nas calçadas se espalham, fechados hoje pela Cedae, reabertos amanhã pela companhia do gás, todos cada vez maiores e entupidos de vítimas. Numa cidade que gosta de andar na rua, cheia de festas e sol, a buraqueira entra na mesma lista de gravidades da falta de atendimento médico popular ou transportes dignos. É um dos desastres da moderna carioquice.

Hoje, a garota de Ipanema não enfeitiçaria mais Tom e Vinícius, passando no doce balanço a caminho do mar. A melindrosa, na passarela da Avenida Central, também não desfilaria diante dos olhos de J. Carlos. Se vivessem em 2017, todas essas musas da civilização carioca tropeçariam antes de chegarem aos criadores, e, no entanto, foram eternizadas em seu charme quando caminhavam sobre pedrinhas portuguesas. Foi no tempo em que estas serviam de tapete, todas coladinhas umas nas outras, lisas, espelhadas, uma arte elegante que ajudou a cidade a ter uma cara – e que hoje, pedra a pedra, vai perdendo.

Joaquim Ferreira dos Santos

Jornalista e autor de vários livros, entre eles "Feliz 1958 - O ano que não devia acabar" e as biografias de Leila Diniz, Antonio Maria e Zózimo Barrozo do Amaral. Organizou a coletânea "As cem melhores crônicas brasileiras" e também publicou livros como cronista. Define-se principalmente como um repórter de Cidade. No #Colabora, Joaquim escreve sobre o que vai pelas calçadas e espaços públicos do Rio.

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6 comentários “As inocentes pedras portuguesas

  1. Beatriz Braga Abreu Lima disse:

    Oh Joaquim!
    Encabeça uma campanha para que não acabem com as calçadas de pedrinhas!!!
    Pobre Rio , aí de ti, Cidade Maravilhosa!!!

  2. Monica Medina disse:

    Grande texto do Joaquim Ferreira dos Santos! As pedras portuguesas são marca do Rio! O Prefeito e a nossa Pedra no meio do caminho como diria Drumond! Ao invés de destruir nossa história devia consertar as calçadas ! Mas vai usar o mesmo argumento que usou para tentar prejudicar o desfile das Escolas de Samba, sem ter dado o dinheiro prometido para a alimentação das crianças nas creches! Por que acabou tb com a tradicional roda de samba da Pedra do Sal! Vai ver que tem trauma de pedras! Basta de trocar nome de rua de favela e deixar crianças conviverem. com corpos estendidos no chão ! Deixe nossos museus em paz! Vai ser prefeito de fato,
    cuidar da segurança de nossa cidade, da educação , da saúde ! Ou então , utilizando suas próprias palavras: vai ser prefeito no fundo do mar”

  3. Ademar Abreu disse:

    Sinto muito dizer e respeito opiniões. Em Portugal também existe preocupação com este tipo de pedra. Por lá, eles também não encontram mais profissionais para realizar o trabalho de restauração. Que não é simples, por isso no Rio existe essa irregularidade nas calçadas e machucam muitas pessoas. Também é caro e não é prático. Na Europa existe pisos mais duráveis e muito bonitos. Acredito que um piso parecido com o que foi colocado na Praca Mauá, com alguns desenhos em Copa, deverá cair muito bem.

  4. Valeria Geraldelli disse:

    Há quem diga que, as pedras portuguesas que enfeitam as calçadas cariocas, na verddade foi uma idéia que surgiu em Manaus (Amazonas), para representar o “Encontro das Águas” dos rios Negro e Solimões. Os cariocas apenas copiaram a idéia.

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