Defender e regularizar territórios ainda é o principal desafio dos quilombolas do século XXI

Defender e regularizar territórios ainda é o principal desafio dos quilombolas do século XXI

Manifestação de quilombolas em Brasília pela titulação das terras: insegurança territorial deixa quilombos sob ameaça de especulação imobiliária, crimes ambientais e assédio do agronetócio (Foto: Conaq)

Falta de titulação definitiva cria insegurança nos quilombos; no ritmo atual, serão precisos dois mil anos para regularização dos 1.787 processos de reconhecimento dos territórios

Por Jornalismo UFF | ODS 10 • Publicada em 17 de março de 2024 - 23:12 • Atualizada em 26 de março de 2024 - 12:30

Executada com 21 tiros em agosto de 2023, Bernadete Pacífico, conhecida como Mãe Bernadete, era a expressão da resistência dos povos quilombolas no século XXI. A líder do Quilombo Pitanga dos Palmares, na Região Metropolitana de Salvador , foi executada com 21 tiros a mando do tráfico de drogas, segundo inquérito da Polícia Civil. Um madeireiro teria dito aos traficantes que mãe Bernadete estava atraindo a polícia para o local devido à sua luta contra a extração de madeira ilegal. Com 854,2 hectares, o quilombo Pitanga dos Palmares é moradia para 289 famílias e fica em uma Área de Proteção Ambiental (APA). O quilombo ainda não foi titulado, apesar de a comunidade possuir certificação da Fundação Palmares. O assassinato de mãe Bernadete aconteceu no ano em que os quilombolas apareceram pela primeira vez no Censo, embora sua existência remonte à época da escravização.

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As tristes estatísticas contrastam com a garra para existirem e resistirem. Somente 4,3% dos quilombolas residem em áreas tituladas, aquelas em que os títulos definitivos sobre a posse da terra foram emitidos. Se o ritmo de titulação permanecer o mesmo, vai demorar mais de dois mil anos para que os 1.787 processos de reconhecimento de território no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) sejam concluídos.

A insegurança territorial é apenas uma das faces das mazelas enfrentadas pelos quilombolas. Sem a posse definitiva de seus territórios, eles ficam expostos a crimes ambientais, especulação imobiliária e ao agronegócio. Quando estão localizados em áreas de proteção ambiental, muitas vezes ainda têm de enfrentar os órgãos ambientais, como acontece no Quilombo do Grotão, em Niterói, no Parque Estadual da Serra da Tiririca. Lá, feijoadas e rodas de samba são realizadas para garantir a sobrevivência das famílias, embora as atividades sejam oficialmente proibidas. Distante 1.800 quilômetros do Grotão, o quilombo Baião, localizado no município de Almas, no Tocantins, se vê ameaçado por crimes ambientais e pelo agronegócio. Uma mineradora foi construída a cerca de quatro quilômetros de suas terras e o agronegócio pulveriza agrotóxicos nas terras quilombolas.

O acesso à educação é outro direito muitas vezes negligenciado pelo Estado. Embora o presidente Lula tenha incluído os quilombolas na Lei de Cotas, ainda é visível a desigualdade das escolas quilombolas no acesso a salas de leitura, bibliotecas e quadras esportivas. Somente 20% delas têm biblioteca ou sala de leitura e 11,4%, quadras de esporte. Crianças e adolescentes pretas(os), pardas(os) e indígenas são as(os) mais atingidas(os) pela exclusão escolar. Juntos, elas(es) somam mais de 70% entre aquelas(es) que estão fora da escola, revelou pesquisa do Unicef de 2023.

Lideranças quilombolas do Rio reunidas em seminário: protagonismo feminino e preocupação com violência, regularização dos territórios e educação (Foto: Tânia Rêgo / Agência Brasil - 01/03/2024)
Lideranças quilombolas do Rio reunidas em seminário: protagonismo feminino e preocupação com violência, regularização dos territórios e educação (Foto: Tânia Rêgo / Agência Brasil – 01/03/2024)

A luta pelo território, ingrata e injusta na maioria das vezes, revela, por outro lado, histórias que só são possíveis de serem contadas graças à cartografia social, uma das etapas de reconhecimento para a titulação das áreas quilombolas. Por meio da cartografia social, os povos reconstituem a memória de seus ancestrais e ganham um protagonismo que nunca tiveram na história oficial. O Camorim, localizado na Zona Oeste do Rio, é um dos quilombos que passou por esse processo.

O matriarcado quilombola tem papel decisivo na transmissão da memória e costumes. As mulheres ocupam grande parte dos cargos de liderança nos quilombos, embora os dados do primeiro Censo quilombola não tenham metrificado quantas elas são. “Elas estão à frente das lutas travadas pela conquistas de direitos, atuam para melhorar as condições de vida dentro das comunidades, preservam tradições ancestrais e são essenciais para a manutenção dos quilombos ao executarem tarefas relacionadas ao cuidado”, diz a jornalista Maryellen Crisóstomo, da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq).

Jornalismo UFF

O perfil Jornalismo UFF é formado pelos alunos da turma de Oficina de Webjornalismo da Universidade Federal Fluminense (UFF). Produzimos reportagens sob a coordenação da professora e jornalista Adriana Barsotti.

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