Circulação de duas moedas separa turistas de cubanos

Turistas seguem o guia pelas ruas de Havana: 4,7 milhões visitaram Cuba, no ano passado. Foto: Ricardo Brasil

População pode trabalhar, mas não consumir nos ambientes frequentados exclusivamente por estrangeiros

Por Lucia Santa Cruz | ODS 9 • Publicada em 7 de janeiro de 2018 - 19:05 • Atualizada em 13 de julho de 2021 - 09:22

Turistas seguem o guia pelas ruas de Havana: 4,7 milhões visitaram Cuba, no ano passado. Foto: Ricardo Brasil

Quando as empresas estrangeiras tiveram autorização para começar a investir em hotelaria em Cuba, a partir da metade dos anos 1990, os turistas chegaram, atraídos pelas construções históricas, pelas praias de areia branca e, claro, curiosos por conhecer a ilha que adotara o regime socialista e vivia sob o embargo norte-americano desde os anos 1960.

As levas de turistas parecem ter apontado o caminho para o país reverter o quadro de crise econômica aguda, instaurado com o fim dos subsídios soviéticos no final da década de 1980, sem perder seus princípios ideológicos centrais: contar com o apoio empresarial internacional e até mesmo cubano.

Nem todos os estabelecimentos comerciais estão abertos aos cubanos, pois só aceitam pagamentos em CUC, que é a moeda do turismo. Com isso, temos ambientes frequentados exclusivamente por estrangeiros, nos quais os nativos podem trabalhar – mas não consumir

Raúl Castro, que assumiu o comando do país em 2006, com o afastamento de seu irmão, Fidel Castro, por problemas de saúde, inspirou-se no modelo vietnamita para autorizar o surgimento de empresas privadas no setor de serviços, mantendo nas mãos do Estado os setores de saúde, educação, cultura, defesa nacional, infraestrutura e sistema financeiro. O Vietnã, desde 1991, conta com o desenvolvimento de parques industriais financiado por capital estrangeiro.

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Surgem então os cuentapropistas, trabalhadores por conta própria, que vão abrir sapatarias, salões de beleza, barbearias, paladares (restaurantes residenciais); ou alugar quartos e imóveis para turistas, entre outros pequenos negócios. Os agricultores também receberam autorização para produzir e vender a preços livres nos mercados urbanos.

De acordo com o Ministério do Trabalho e Seguridade Social de Cuba, os cuentapropistas representam cerca de 12% do total de trabalhadores ocupados do país, sendo que 32% são jovens, 33% são mulheres, 16% são assalariados em alguma empresa estatal e 11% são aposentados. Nos dois últimos casos, trabalhar por conta própria indica uma forma de melhorar os rendimentos da família.

Salão de beleza: pequenos negócios ganham força na ilha. Foto: Ricardo Brasil

O aparecimento dos cuentapropistas está associado ao desenvolvimento de uma classe média em Cuba, indicando uma estratificação social que se reflete em diferenças geográficas, nos hábitos e no consumo. Bairros mais turísticos contam com serviços urbanos melhores do que os populares. O transporte coletivo admite diferenciação por preço – ônibus com ar condicionado são mais caros, oferecem mais conforto e não transportam passageiros em pé.

Nem todos os estabelecimentos comerciais estão abertos aos cubanos, pois só aceitam pagamentos em CUC, que é a moeda do turismo. Com isso, temos ambientes frequentados exclusivamente por estrangeiros, nos quais os nativos podem trabalhar – mas não consumir. Por outro lado, ser turista não significa ter acesso livre a tudo em Cuba. Andar de transporte público, por exemplo, pode ser complicado. Os ônibus só recebem em pesos cubanos  (CUPs) – como eu não podia comprar na casa de câmbio, tive que trocar com o garçom de uma cafeteria.

O principal bairro visitado pelos turistas é o de Habana Vieja, ponto inicial de Havana, fundado em 1519 pelos espanhóis, e que vem sendo restaurado com o apoio do capital internacional. É um centro histórico, com construções dos séculos XVII, XVIII e XIX,  reconhecido pela Unesco, desde 1982, como Patrimônio Cultural da Humanidade. Situada próxima ao porto, a região recebe cruzeiros que despejam milhares de visitantes diariamente, que inundam bares, restaurantes e andam pelas pequenas ruas em grupos, com câmeras e celulares e até guias turísticos. Esses visitantes. em geral, não se aventuram por outros bairros, concentrando-se em Habana Vieja. Sua chegada representa a entrada de moedas fortes – e a oportunidade de novos negócios.

Havana é uma cidade segura, onde se pode usar o celular para fotografar sem medo de ser assaltado e mulheres andam sozinhas à noite, com total tranquilidade

A coexistência das duas moedas e o aumento no número de estrangeiros visitando o país colaboram para a intensificação da prática da gineteria – pequenos golpes que malandros e espertos aplicam nos turistas, como vender charutos falsificados, supervalorar o preço de transportes como bicicletas e táxis, pedir para comprar fraldas para os filhos e acabar sumindo com o dinheiro, entre outros. O assédio sobre os turistas chega a ser desagradável. Geralmente, achavam que nós éramos italianos, o que de cara já estabelecia um patamar alto para os preços dos serviços.

Tínhamos que negociar o tempo todo, alegar que também somos latino-americanos como eles, para conseguir preços mais palatáveis. Um processo no mínimo cansativo, mas em nada ameaçador ou agressivo. Pelo contrário, Havana é uma cidade segura, onde se pode usar o celular para fotografar sem medo de ser assaltado e mulheres andam sozinhas à noite, com total tranquilidade  (embora tenha visto muito assédio masculino). Nas caminhadas pela cidade, é comum cruzar com meninos que passam pedindo “una moneda” –  25 centavos de euro equivalem a 6 pesos cubanos.

Flanando pelas calçadas de Havana: segurança. Foto: Ricardo Brasil

O salário médio mensal na ilha, em 2016, foi de 740 pesos cubanos (CUP), o equivalente a pouco mais de US$ 29, segundo a publicação Salário Médio em Cifras 2016, do Escritório Nacional de Estatística e Informação da ilha. Grande parte dos moradores quer trabalhar para o turismo, pois isso representa ter acesso a ganhos mais altos. Alguns cubanos que alugavam quartos diretamente para turistas agora também estão no Airbnb, que chegou no país em abril de 2015, pouco depois de o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, reatar as relações diplomáticas com Cuba.

A circulação simultânea de duas moedas portanto, alimenta o desejo por dólares e outras moedas estrangeiras, por bens de consumo e provoca conflitos de identidade na população. Não à toa, a juventude de Havana se veste com roupas falsificadas de marcas americanas, com logomarcas em tamanhos grandes e cores fortes. Num primeiro momento, é uma imagem que contrasta e parece deslocada da trajetória do povo cubano. Olhando novamente, é como se estivéssemos circulando pelos subúrbios e comunidades cariocas. Em muitos momentos, Cuba é aqui.

Lucia Santa Cruz

Sou jornalista, professora universitária, com doutorado em Comunicação e Cultura, casada com o fotógrafo Ricardo Brasil, mãe do Lucas, da Isabela e da Aninha e avó do Teo. Entre outras disciplinas, dou aula de história do jornalismo e radiojornalismo. Trabalhei em jornais diários impressos, revistas segmentadas, emissoras de rádio e em comunicação corporativa. Muitos dos veículos por onde passei não existem mais, mas sigo acreditando que o jornalismo é essencial para sociedades complexas, por ser capaz de identificar e de contar histórias e de nos ajudar a enxergar quem somos. Apaixonada por livros, gatos e chocolate (não necessariamente nessa ordem).

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3 comentários “Circulação de duas moedas separa turistas de cubanos

  1. Rogério disse:

    Passei 10 dias em Cuba em 2016. Viajei por algumas cidades e fui para o interior. Tenho muitos amigos lá. Trouxemos um amigo cubano nosso para passar um mês no Brasil também e ele ficou tão encantando como eu fiquei por Cuba. Logo logo volto para matar a saudade e sentir aquela sensação de sonho nostálgico. Quando te mandarem pra Cuba, se puder, vá!

  2. Pedro Cardoso disse:

    Gosto muito dos seus textos, eles dão uma ideia muito bacana de Cuba. Estive lá em novembro de 2017 e pude comprovar muitas dessas impressões que vc teve. Entretanto, o acesso à “moneda nacional” , o CUP (Peso Cubano) a estrangeiros não é proibido. Já sabendo que alguns locais aceitavam apenas CUP – inclusive locais turísticos, como a Coppelia – já troquei na própria CADECA. Isso é algo que aprendi lá: sempre ter pesos cubanos em mão pra poder comer, se locomover e comprar coisas que fazem parte do dia-a-dia deles. É a melhor experiência que se pode ter em Cuba. Um país maravilhoso, com problemas econômicos, claro (infinitamente melhor economicamente do que seus vizinhos no Caribe), com pessoas incríveis e que, com certeza, só é o que é hoje por causa da Revolução.

  3. Lucia Santa Cruz disse:

    Pedro, estivemos em Cuba na mesma época, em novembro de 2017. Entretanto, nas três Cadecas em que fomos – do aeroporto, no Hotel Nacional e em La Rambla, tentamos trocar pesos cubanos e não nos foi autorizado. Nas três disseram que só poderíamos comprar pesos convertibles.
    De todo modo, que bom que nossas impressões são próximas. Cuba é realmente um país muito interessante, apesar das dificuldades.

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