Cuba, um país involuntariamente sustentável

Cabeça branca: expectativa de vida em Cuba beira os 80 anos. Foto : Ricardo Brasil

Escassez econômica é barreira para uso de agrotóxicos; sacos plásticos são lavados e reaproveitados

Por Lucia Santa Cruz | ODS 9 • Publicada em 7 de janeiro de 2018 - 18:52 • Atualizada em 13 de julho de 2021 - 09:17

Cabeça branca: expectativa de vida em Cuba beira os 80 anos. Foto : Ricardo Brasil

A expectativa de vida em Cuba, segundo a Organização Mundial de Saúde, beira os 80 anos (79,1),  acima da taxa brasileira, que está em 75 anos, e da média mundial, 71,4 anos. Penso na hipótese de que um reforço na qualidade de vida da população pode vir da oferta de alimentos orgânicos, já que entre gerontólogos há consenso de que a longevidade ativa está ligada a fatores como alimentação e ambiente saudáveis, atividades física e cultural, motivação e saúde. No país, legumes, frutas e verduras são plantados sem defensivos agrícolas.

Sacos plásticos, guardanapos de papel e canudos são produtos que só estão disponíveis em locais que atendem turistas. Nas padarias, os pães e biscoitos são entregues diretamente nas mãos dos compradores

Nas feiras, encontramos batatas, cebolas e abacaxis de tamanhos menores do que aqueles produzidos com o uso de agrotóxicos. Isso, porém, não se deve a uma consciência ecológica – ou pelo menos não aparentemente -, mas à falta de disponibilidade desses produtos. Mesmo nas plantações de tabaco, um dos principais produtos do país, os fungicidas são naturais e feitos a partir das folhas de fumo.

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Numa perspectiva semelhante, sacos plásticos, guardanapos de papel e canudos são produtos que só estão disponíveis em locais que atendem turistas. Nas padarias, os pães e biscoitos são entregues diretamente nas mãos dos compradores. Nos supermercados, cada pessoa leva sua sacola de compras, e na frente das feiras e mercados hortifrutigranjeiros, vêem-se pessoas vendendo sacos plásticos. Muitas janelas e varandas exibem varais de sacos lavados para serem reutilizados, numa clara indicação da raridade desse produto.

A escassez de sacos plásticos e o não uso de agrotóxicos, que poderiam ser interpretados como resultados da preocupação com a sustentabilidade, são, na verdade, indícios da luta contínua de um país com dificuldades econômicas. Embora o acesso à educação, saúde, cultura e esportes seja amplo, percebe-se o esforço da população, de um modo geral, para superar uma condição que não é exclusiva de Cuba, mas partilhada com o restante do Caribe: recursos escassos.

Mercado estatal: moradores vão, com suas “cadernetas de abastecimento”, retirar os alimentos fornecidos pelo governo. Foto: Ricardo Brasil

Não é, porém, um quadro de miséria. Os mercados estatais que visitei em minha primeira ida a Havana não estavam desabastecidos. O que se percebe, ao contrário de qualquer supermercado brasileiro, é que não existe variedade de marcas, só de tipos ou modelos. Há enlatados espanhóis (em tamanhos extra grande) e biscoitos brasileiros. Aliás, não se vê propagandas de marcas pela cidade, nem outdoors anunciando produtos. Os que vemos são mensagens políticas. Nas lojas mais antigas de Habana Vieja, não existem letreiros – os nomes das casas comerciais estão gravados na soleira da entrada.

O Estado fornece alguns alimentos básicos, por meio de uma “caderneta de abastecimento”. Atualmente, um cubano adulto recebe, por mês, aproximadamente três quilos de arroz, dois de açúcar, meio litro de óleo de soja, um pacote de café misturado, um pacote de massa, cinco ovos e pequena quantidade de frango. Crianças de até sete anos têm direito a um litro diário de leite. No período em que estivemos em Cuba, logo após o furacão Irma, faltavam papel higiênico e ovos nas lojas, já que as granjas teriam sido destruídas. Mas era possível comprá-los no mercado negro.

Como saída para a crise, Cuba se abriu ao capital estrangeiro, permitindo que empresas de outros países passassem a controlar até 49% das ações dos hotéis

O mercado negro é uma herança do chamado período especial, iniciado com a queda do muro de Berlim e o final da União Soviética, que durou até meados dos anos 2000. A aliança com o bloco soviético havia possibilitado a Cuba o desenvolvimento de um estado de bem-estar social, ao mesmo tempo em que a economia se mantinha em funcionamento. A União Soviética comprava o açúcar cubano em troca de petróleo, com um desconto de 20 a 30%. Com isso, o país, cuja economia estava baseada na monocultura açucareira, chegou até a exportar petróleo.

Mas o fim da URSS ocasionou uma queda de 35% do PIB em apenas três anos, de 1991 a 1993, fazendo com que Cuba entrasse num período de fome, escassez de alimentos, desvalorização dos salários, paralisação dos transportes, apagões de energia. Em busca da sobrevivência, a população recorria a pequenos negócios ilegais – desde criar porcos dentro das casas nas cidades até instalar “gatos” para captar sinal de televisão dos Estados Unidos, passando por comercializar produtos furtados do Estado. Ainda se vêem traços dessa época, por exemplo, nos portões de ferro instalados na entrada dos imóveis – no período especial, as pessoas, desesperadas, invadiam as moradias para pegar o que encontrassem para comer.

Como saída para a crise, Cuba se abriu ao capital estrangeiro, permitindo que empresas de outros países passassem a controlar até 49% das ações dos hotéis. Também nessa época, foi criado o sistema de moeda dupla: o peso comum (CUP), usado para pagar salários e obter produtos e serviços básicos, e o peso conversível (CUC), empregado no turismo e no comércio de produtos não subvencionados. O CUP vale em torno de 24 CUCs. Os cubanos não têm acesso ao peso conversível e os turistas não compram CUPs nas casas de câmbio do Estado, as Cadecas.

Lucia Santa Cruz

Sou jornalista, professora universitária, com doutorado em Comunicação e Cultura, casada com o fotógrafo Ricardo Brasil, mãe do Lucas, da Isabela e da Aninha e avó do Teo. Entre outras disciplinas, dou aula de história do jornalismo e radiojornalismo. Trabalhei em jornais diários impressos, revistas segmentadas, emissoras de rádio e em comunicação corporativa. Muitos dos veículos por onde passei não existem mais, mas sigo acreditando que o jornalismo é essencial para sociedades complexas, por ser capaz de identificar e de contar histórias e de nos ajudar a enxergar quem somos. Apaixonada por livros, gatos e chocolate (não necessariamente nessa ordem).

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