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De ‘A substância’ à volta do ‘heroin chic’: misoginia está sempre na moda

Padrões de beleza estão sujeitos a mudanças; mas, quando se trata de mulheres, a regra é sempre a mesma: estabelecer um teto inalcançável

ODS 5 • Publicada em 26 de novembro de 2024 - 09:47 • Atualizada em 26 de novembro de 2024 - 12:02

Eu nunca fui uma mulher ou uma menina gorda. Ainda assim, passei boa parte da vida, mesmo na infância, temendo ser, como boa parte das adolescentes dos anos 1990 como eu. Só hoje, depois de muita estrada de vida, de leitura e de sacodes de realidade, consigo compreender ser uma pessoa magra, o sonho da minha geração de adolescentes, não devia ser objetivo de vida. Até porque, como bem se sabe hoje, magreza não é sinônimo de saúde. Nem juventude.

Leu essa? “Cabeça de Ozempic”: como em Frankenstein, a misoginia se apavora com os monstros que cria

Não se sai ilesa de uma cultura que te diz o tempo todo que seu valor está atrelado a um número baixo na balança e na faixa etária. “Mulher para ficar bonita tem que sofrer”. “Pelo menos eu emagreci com essa doença”. “Cabelo branco é sinal de desleixo”. “Se continuar engordando, vai perder/não vai encontrar marido/namorado/homem” – como se isso também devesse ser meta.

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Posso falar por mim. Mesmo hoje reconhecendo o quanto isso é construído e o quanto é perigoso e prejudicial para as mulheres, e, ao mesmo tempo, lucrativo para uma economia – como tudo – chefiada por homens, ainda caio em algumas ciladas do patriarcado.

Ainda hoje, infelizmente, me flagro meio tristonha se engordo um quilo ou outro, e percebo como isso afeta minha autoestima em tantas outras esferas da vida. Fico mais insegura, mais indecisa, mais vulnerável: no trabalho, nas relações pessoais, nas pequenas e grandes coisas. O mesmo acontece com o passar do tempo, algo tão natural a todo mundo quanto censurado às mulheres. Vira e mexe me percebo fazendo piadinhas autodepreciativas sobre “estar velha”, como se precisasse justificar ao mundo que “sei meu lugar”, como se precisasse pedir licença para existir no meu corpo de 39 anos, onde quer que nós, eu e ele, estejamos.

A atriz Demi Moore no filme 'A Substância': misoginia está sempre na moda (Foto: Divulgação)
A atriz Demi Moore no filme ‘A Substância’: misoginia está sempre na moda (Foto: Divulgação)

Por um tempo, achei que estivéssemos caminhando para uma compreensão coletiva mais justa sobre os corpos das mulheres, mas foi ingenuidade minha. Recentemente, vi no Instagram um post que dizia “Se você fosse uma menina de 13 anos, provavelmente teria um transtorno alimentar”. E meu primeiro impulso foi pensar: “gente, mas isso é tão anos 2000”. Eu realmente acreditei que, nos últimos 20 anos, o hype de hashtags #bodypositive e outras que o valham, além da exposição de corpos mais diversos na mídia era algo conquistado, algo de onde só se anda adiante. Trouxa, né?

Desde o século passado, Simone de Beauvoir já repetia a ladainha de que basta uma crise de qualquer natureza para as mulheres estarem com o seu na reta. Como fui me esquecer disso, ainda que por uns segundinhos? Como sairíamos incólumes da escalada da extrema direita no mundo tudo e dos ataques escancarados às democracias? – no Brasil, com direito a tentativa a la “Os Trapalhões” de golpe de estado, diga-se de passagem.

Também li, outro dia, sobre a volta do “heroin chic” como padrão de beleza. O termo é autoexplicativo, e literalmente fala de uma magreza como a de pessoas que usam heroína, e foi icônica nas passarelas, revistas e em toda a mídia nos anos 1990. E quando assisti ao badalado “A substância”, estrelado por Demi Moore, enxerguei várias mulheres que conheço e que fariam absolutamente qualquer coisa para serem uma versão mais jovem – e portanto, por esta lógica, mais bonita – de si.

Sempre vejo por aí o papo de que padrões de beleza são cíclicos, e coisa e tal. E concordo nisso sobre moda, por exemplo. Acendo uma vela para Santa Cher toda noite para que não permita que as calças de cintura baixa voltem com tudo e sumam com as cinturas altas das vitrines. Fiquei feliz com o retorno das pochetes e nunca mais pararei de usar as minhas. Tenho um pouco de vergonha de ter cedido ao apelo sazonal do retorno de algumas peças como gargantilhas pretas coladinhas no pescoço e o veludo molhado; hoje reconheço que foram um erro no meu portfólio.

Piadas à parte, é óbvio que o que se acha belo, interessante e desejável está sujeito a transformações ao longo do tempo. Mas quando se trata de mulheres, a regra é sempre a mesma, estabelecer um teto inalcançável: um cabelo mais liso ou mais cacheado que o seu; peitos com silicone ou menores que o seu; barriga negativa; barriga trincada; a dieta da vez; o remédio da vez; a cirurgia da vez. E quando você chegar perto do que é o padrão do momento, ele muda. E é ainda pior para mulheres negras, pobres e LGBTQIAPN+, sempre invisibilizadas quando se fala de beleza.

A fórmula não tem mistério: mulheres que odeiam seus corpos compram soluções para eles. E, além disso, são mais fáceis de se dominar, porque têm a autoconfiança posta em jogo. Ponto para o capitalismo e o patriarcado: a misoginia está sempre na moda.

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