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“Ninguém corta a cara apenas de uma mulher; corta a de todas as mulheres do mundo”

A frase da ministra Cármen Lúcia sobre violência de gênero no STF e os riscos de viver numa sociedade em que todo homem é um abusador em potencial

ODS 16ODS 5 • Publicada em 17 de setembro de 2024 - 09:17 • Atualizada em 17 de setembro de 2024 - 13:47

A frase da ministra Cármen Lúcia, ao falar sobre a violência de gênero em votação no STF, segue me assombrando desde o instante em que a ouvi. E embora eu seja terminantemente contra qualquer frase com o clichê “toda mulher”, acredito que aterrorize, de fato, toda mulher. Porque sabemos, diariamente, onde nosso sapato aperta. E o quanto um arrepio percorre nossa espinha a cada caso de abuso, feminicídio, estupro ou qualquer atrocidade que tanto se comete contra nós. Um calafrio de partes iguais de tristeza, alívio e pavor, por saber que não foi conosco – mas poderia.

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Poucos dias atrás, diante do último caso de abuso que estarreceu o país inteiro, eu postei alguma coisa destacando outra frase que é como um eco de maldição e realidade na minha cabeça: “todo homem é um abusador em potencial”- inclusive já escrevi sobre aqui no Colabora. Algum tempo depois, pipocou uma mensagem direta:

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-“Júlia, você realmente acha que todo homem é um abusador em potencial?”

– “Em potencial, sim”

– “Até meu filho”

– “Sim”

Sei que quando menciono esta frase, pareço uma caricatura de feminista raivosa que odeia homens e quer exterminá-los (o que, vez ou outra, quando estou tomada de ódio diante de um caso horroroso, não seria uma leitura de todo errada). Quando essa amiga mencionou o filho, eu sabia que não adiantaria argumentar, porque é uma construção erguida no terreno dos afetos, que eu não teria a menor chance de demolir. E tá tudo certo, concordamos em discordar.

Não acredito que alguma mulher crie um filho homem para se tornar abusador, embora muitos possam sim, ser criados em um lares onde as mulheres são tratadas e vistas como cidadãs de segunda classe, se é que como pessoas. Entretanto, não creio que criação seja o único fator que influencia comportamento e caráter, principalmente quando meninos são expostos a ambientes tão misóginos e patriarcais, ouvindo (e, com o tempo, repetindo) coisas que, a todo tempo, nos degradam: “Prendam suas cabras que meu bode tá solto”; “Passei de consumidor a fornecedor, minha filha nasceu!”; “Essa não é pra casar”; “Você não merece ser estuprada”… Não preciso continuar. Responsabilizar mães por qualquer atrocidade que derive de universos assim é só mais uma forma cruel de machismo.

Ato contra violência de gênero no Rio: “Ninguém corta a cara apenas de uma mulher; corta a de todas as mulheres do mundo", disse a ministra Cármen Lúcia no STF (Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil - 01/06/2016)
Ato contra violência de gênero no Rio: “Ninguém corta a cara apenas de uma mulher; corta a de todas as mulheres do mundo”, disse a ministra Cármen Lúcia no STF (Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil – 01/06/2016)

Mas, como bem pontuou a ministra Cármen Lúcia, se quando cortam a cara de uma mulher, sentimos o frio da lâmina perto das nossas bochechas, é porque sabemos que o golpe pode vir de, literalmente, qualquer lugar. Afinal, (vou repetir) todo homem é um abusador em potencial.

Quando estamos voltando para casa e percebemos passos no mesmo ritmo dos nossos, é como se nossos sentidos voltassem quando percebemos que quem vem atrás é uma mulher. Se viajamos sozinhas, torcemos mesmo para que a poltrona ao lado vá vazia, mas na impossibilidade disso, apostamos nossa sorte do dia para que quem se sente ao lado não seja um homem – principalmente se temos o hábito (ou a necessidade) de dormir no percurso. Desde pequenas, somos ensinadas a sentar de jeito tal ou tal, a evitar certas roupas, a seguir um número de regras chamadas de “modos”, principalmente perto de certos homens de nosso convívio – na maioria dos casos de estupro e violência doméstica, o abusador é conhecido da vítima.

Numa questão que viralizou, perguntava-se às pessoas se, caso estivessem sozinhas numa floresta, preferiam encontrar um homem ou um urso. A maioria das mulheres respondeu que preferia o animal – o que, obviamente, irritou os homens. E as respostas foram desoladoras: “Se eu sobrevivesse ao ataque do urso, eu não precisaria vê-lo na reunião de família”, “O pior que o urso pode fazer é me matar”, “Pelo menos o urso não sente prazer em me violentar” e “Ninguém vai dizer que eu gostei do ataque do urso”, “Ninguém vai duvidar que fui atacada pelo urso”, disseram algumas internautas.

No fundo, diante do medo e do risco a que somos submetidas diariamente desde que nascemos, podemos até achar radical quando afirmam que a masculinidade é fator de risco para que alguém cometa um abuso. Mas na dúvida, sabemos que estamos em perigo. E é por isso que apertamos o passo ou mudamos o caminho quando vem um homem logo atrás – ou no Ministério ao lado. Mudamos de poltrona no ônibus. Escolhemos enfrentar o urso.

Porque carregamos as mesma cicatrizes, das caras cortadas – e outras tantas pelo corpo.

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