‘Janela de oportunidade para salvar a Amazônia está se fechando’

Coordenadora do Laboratório de Gases de Efeito Estufa do INPE diz que promessas do governo brasileiro na COP26 não são suficientes para salvar a floresta, que precisa de ações mais céleres e drásticas

Por Mathias Boni | ODS 13ODS 15 • Publicada em 10 de dezembro de 2021 - 08:12 • Atualizada em 27 de dezembro de 2021 - 17:25

Vista aérea da fumaça subindo de um desmatamento ilegal na Amazônia, em Porto Velho, Rondônia. Em vez de absorver, a floresta está emitindo carbono. Foto Mauro Pimentel/AFP

Na edição nº 595 da revista Nature, uma das publicações científicas mais relevantes no mundo, um artigo de uma cientista brasileira despertou grande preocupação da comunidade internacional, dos ambientalistas e ativistas climáticos brasileiros. Após quase uma década de pesquisa e monitoramento do desmatamento na Amazônia, a Drª Luciana Gatti, cientista do Inpe, chegou a um resultado que jamais gostaria de ter obtido: a floresta amazônica está começando a emitir mais gás carbônico na atmosfera do que consegue retirar, se transformando em uma fonte, e não mais em sumidouro.

Leu essa? Como descarbonizar a economia em cenário de desmonte de políticas públicas?

A revelação da cientista chamou a atenção para o estado avançado de degradação da Amazônia. O desmatamento é hoje a maior fonte de emissões de gases de efeito estufa do Brasil, correspondendo a aproximadamente 45% do total, seguido pela atividade agropecuária, com cerca de 27%. Na COP26, o governo federal brasileiro assinou acordos que prometem combater o desmatamento, como o Acordo das Florestas. Contudo, resta saber se esses acordos serão realmente colocados em prática no país, já que o desmatamento na Amazônia vem batendo recordes anuais, como reafirmado novamente na recente publicação do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes).

Luciana Gatti se graduou em Química, concluindo posteriormente mestrado e doutorado na área. Ela é especialista em medidas de alta precisão de gases de efeito estufa, sendo coordenadora do Laboratório de Gases de Efeito Estufa – LaGEE do Inpe. Também é professora de pós-graduação do curso Tecnologia Nuclear do Ipen, na Universidade de São Paulo.

Nesta entrevista, ela revela detalhes da sua pesquisa, as implicações do desmatamento da floresta à atual crise climática global, comenta sobre as promessas do governo federal brasileiro na última COP, propõe possíveis ações de regeneração da floresta, e faz um alerta: “Prometer combater o desmatamento ilegal até 2028 e cortar metade das emissões até 2030 é a mesma coisa que nada”.

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Confira a entrevista completa abaixo:

Qual foi a sua reação inicial ao perceber os resultados que a sua pesquisa sobre o desmatamento na Amazônia indicaria?

Que as coisas estão acontecendo mais rápido do que esperávamos. Essa ideia de a Amazônia virar fonte, o que já estamos vendo em grandes partes da floresta, estava prevista apenas para daqui a muito tempo, se é que fosse ocorrer. Essa é uma notícia estarrecedora, e o artigo teve um impacto grande no mundo inteiro por causa disso. A gente demorou alguns anos para publicar esse resultado porque é uma notícia muito impactante, de muita responsabilidade, então precisávamos validar as metodologias. Ao longo de toda a pesquisa, eu desenvolvi sete métodos diferentes de cálculo da concentração de gases de efeito estufa para chegar nesse resultado. A gente investiu muito para validar esse método e ter certeza do resultado.

Luciana Gatti: "a Amazônia é hoje uma fonte de carbono, eu tenho 100% de certeza". Foto Arquivo Pessoal
Luciana Gatti: “a Amazônia é hoje uma fonte de carbono, eu tenho 100% de certeza”. Foto Arquivo Pessoal

Como foi o processo para chegar à conclusão de que hoje a Amazônia é uma fonte de carbono?

Calculando uma média de todos os perfis que foram feitos até então você descobre se é fonte ou sumidouro. Sumidouro é quando absorve mais do que emite, e fonte é quando emite mais do que absorve. Só de olhar a média anual você descobre em cada ano se a floresta emitiu ou absorveu mais carbono, e muito evidentemente a Amazônia vem mais emitindo do que absorvendo carbono. Infelizmente, a Amazônia é hoje uma fonte de carbono, eu tenho 100% de certeza.

Você dividiu a Amazônia em diferentes regiões para desenvolver esse estudo, certo? Como foi realizar o estudo em cada parte da floresta?

Sim, a gente dividiu a Amazônia em quatro locais de estudo. As duas partes no oeste da Amazônia têm dados mais parecidos, mas o lado leste é uma fonte maior ainda de preocupação. Vários estudos foram feitos para entendermos essa diferença. Fizemos diversas relações, com a precipitação, quantidade de água no solo, e a gente correlacionou para ver quanto cada variável dessas estava determinando esse fluxo. A maior correlação que encontramos foi em relação às emissões de queimadas, em razão da quantidade de monóxido de carbono. Quando há uma queimada, o monóxido de carbono no mínimo dobra, então medir a sua quantidade é um excelente meio de traçar as queimadas. E as correlações com as emissões de queimadas são extremamente altas. Para entender essas correlações com ainda mais profundidade, estudamos 40 anos de precipitação e temperatura em cada uma dessas quatro regiões. Comparamos com quanto cada região foi desmatada, e tudo fez sentido, porque as áreas mais desmatadas eram as que mais apresentavam emissões de carbono. A área mais desmatada apresenta o maior fluxo, a segunda mais desmatada apresenta o segundo maior fluxo, e assim por diante. Além disso, quanto mais desmatada a área, maior foi a mudança na chuva e na temperatura da região. A região nordeste da Amazônia, cerca de 37% desmatada, perdeu 34% de chuva, por exemplo, e teve um aumento de 1,9 graus Celsius nesses últimos 40 anos. Na região sudeste, aproximadamente 28% desmatada, teve uma diminuição de 24% da chuva, com um aumento de temperatura maior ainda, de 2,5 graus. Em agosto e setembro é pior ainda, com aumentos de 3,1 graus Celsius. Esse aumento de temperatura quase não encontra paralelos no mundo, só nas regiões do planeta que mais aqueceram nos últimos anos, como o Ártico. É muito assustador ver esse tipo de aquecimento bem no meio da Amazônia.

“E se a Amazônia já está cerca de 20% desmatada, também tem 20% menos na sua participação na chuva, principalmente nos meses de agosto, setembro e outubro. Isso está afetando o Brasil inteiro, com os reservatórios de água mais vazios, com incêndios florestais descontrolados, maior seca, e assim por diante”

A região leste da Amazônia se encontra então em uma situação mais preocupante?

Se você juntar toda a região leste da Amazônia, dá uma área de cerca de 2 milhões de quilômetros quadrados, que em média está 30% desmatada, e emite 10 vezes mais carbono do que o lado oeste, que está apenas 11% desmatada. O desmatamento significa maior emissão de CO2 e contribui para as mudanças climáticas, pois reduz a chuva e aumenta a temperatura. Lá já está chovendo menos e aumentando mais a temperatura, ano após ano. Então pensa no ano que vem: terão ainda menos árvores, a temperatura vai estar ainda mais alta, e o fogo das queimadas vai se espalhar ainda mais, provocando uma perda maior de floresta, maior mortalidade, maior emissão de carbono etc. No outro ano a situação vai estar pior, e no outro pior, e no outro pior… estamos falando de uma bola de neve, pois estamos fomentando esses processos. Isso é de assustar. A parte leste da Amazônia hoje é a mais crítica, pois está mais desmatada, principalmente a área que vai da metade sul do estado do Pará até o Mato Grosso, pegando também a parte do Tocantins e aquele cantinho do Maranhão. Essas pessoas não pensam no coletivo. Depois que encherem o bolso de dinheiro, e aqui estiver um inferno, vão pegar o dinheiro e ir gastar em outro país, com um clima mais ameno. Ou vão pagar para dar uma volta de foguete no espaço, como agora está na moda, e ver de fora o planeta que estão ajudando a destruir.

Cada ação individual de desmatamento acaba tendo consequências em cadeia para o meio ambiente, certo?

Exato! A natureza está toda interligada, é como uma fila de dominós: se você derrubar o primeiro, gera uma reação que vai derrubando como consequência um a um. Quando um fazendeiro olha a sua terra e diz “vou desmatar mais um pouco, para ter uma área maior para plantar”, ele vai criar muitas consequências além da propriedade dele, vai fazer diminuir a chuva, vai fazer aumentar a temperatura, e no fim ainda vai diminuir a sua própria produtividade. A diminuição das chuvas na Amazônia, por exemplo, já impacta outras regiões do Brasil, com os períodos de seca prolongada. E se a Amazônia já está cerca de 20% desmatada, também tem 20% menos na sua participação na chuva, principalmente nos meses de agosto, setembro e outubro. Isso está afetando o Brasil inteiro, com os reservatórios de água mais vazios, com incêndios florestais descontrolados, maior seca, e assim por diante.

Como o desmatamento se relaciona diretamente com as emissões de gases de efeito estufa?

A maior quantidade de emissões de gases de efeito estufa no Brasil hoje vem do desmatamento. Então, só parar de desmatar já significaria uma redução de emissão muito grande para o Brasil, pois hoje aproximadamente 45% das emissões brasileiras vêm das emissões, seguido das atividades agropecuárias, com a criação de gado e as emissões de metano. O desmatamento é uma emissão direta de carbono, mas também causa emissões indiretas. Reduz o número de árvores transpirando, causando menos chuva e elevando a temperatura. Assim, o desmatamento joga CO2 na atmosfera, reduz a chuva e aquece o ambiente, causando uma aceleração das mudanças climáticas. Continuar com essa atividade é insano, é caminhar para o abismo. É o comportamento de uma nuvem de gafanhotos, que chega em uma plantação e destrói tudo, depois ficando sem nada. Será que não temos mais inteligência do que isso? Em 2020, o Brasil perdeu 24 árvores por segundo, imagina isso ao longo de um ano todo. É insano, é estúpido, e é um suicídio.

Qual a sua avaliação sobre as promessas em relação ao desmatamento que o governo brasileiro fez na COP26?

Primeiro, eu não acho correto falar apenas em “zerar o desmatamento ilegal”, como o governo fala, porque existem atualmente várias tentativas no congresso nacional de transformar o desmatamento ilegal em legal, como a PEC da Grilagem, por exemplo. Segundo, as promessas, mesmo se fossem cumpridas, são altamente insuficientes. Para o próprio bem do Brasil, e do mundo, temos que buscar desmatamento zero na Amazônia para já, o mais rápido possível. Eu tenho falado que temos que aprovar uma moratória de desmatamento zero na Amazônia. O Brasil é um país com uma agricultura pujante porque nós temos o cenário ideal para isso, com chuva em abundância, solo fértil, clima ameno. Com o desmatamento, o país está perdendo essa característica. Nós estamos caminhando para um desastre sem precedentes, com recordes e recordes de desmatamento, como novamente revelado recentemente pelo Prodes, e assim, consequentemente, temos também recordes e recordes de redução de chuva. Estamos levando o Brasil a um colapso climático, que vai levar também a um colapso econômico, porque a renda do país está significativamente relacionada ao agronegócio. O que vai ser dessa atividade aqui com pouca chuva, incêndios incontroláveis, tempestades de areia e solo seco?

Mesmo não sendo suficientes, você acha que as metas estabelecidas pelo governo podem ser alcançadas?

Olha, como eu queria acreditar que os discursos e os compromissos assumidos na COP26 vão ser executados, mesmo insuficientes. No ano passado, nós já aumentamos em 9,5% as emissões no Brasil, em meio à pandemia e já com a crise climática sendo bastante debatida. Então fica difícil você acreditar na eficiência dos compromissos, e que eles serão rapidamente implementados. E mesmo assim eles ainda são insuficientes. Essa promessa de cortar 50% das emissões até 2030, por exemplo; a floresta, do jeito que está, não sobrevive até lá. Prometer combater o desmatamento ilegal até 2028, cortar metade das emissões até 2030, é a mesma coisa que nada. Para salvar a Amazônia, isso é absolutamente insuficiente, ações mais drásticas precisam ser tomadas imediatamente.

Muito se fala em um hipotético processo de savanização da Amazônia, chegando a um possível ponto de não retorno. Qual é a sua opinião sobre isso?

O processo de savanização já está ocorrendo em algumas partes. Nosso estudo foi até 2018, esse período maluco e catastrófico de desmatamento que tem ocorrido nos últimos anos nem entrou na nossa pesquisa. Se o leste da Amazônia já estava daquele jeito, então imagina como está agora? Quanto mais tempo a gente demora para reverter esse padrão de desmatamento e começar a regenerar a floresta, mais chance de irreversibilidade nós temos. Quanto mais o tempo passa, mais essa condição vai ficando agressiva e estressante para a floresta. A característica da floresta já está mudando. Mesmo que comecemos a plantar mais árvores, daqui a pouco as espécies características da Amazônia não vão mais prosperar, e vamos apenas poder plantar espécies mais adaptadas a cerrado, o que significa perder a floresta. A nossa janela de oportunidade para salvar a Amazônia está se fechando, e cada vez mais rápido.

“Prometer combater o desmatamento ilegal até 2028, cortar metade das emissões até 2030, é a mesma coisa que nada. Para salvar a Amazônia, isso é absolutamente insuficiente, ações mais drásticas precisam ser tomadas imediatamente”

Quais são as ações que deveriam ser tomadas para tentar reverter esse quadro?

A solução imediata que poderíamos tomar, por mais que hoje pareça improvável, seria parar imediatamente com o desmatamento e com as queimadas, e investir pesado em reflorestamento. Isso seria só o início, mas assim começaríamos a criar uma “bola de neve” positiva, para tentar reverter esse processo. No mínimo, a gente tem que tentar, tem que fazer alguma coisa, para hoje. Na verdade, era para ontem, mas temos que tentar fazer hoje. Na região sudeste da Amazônia, a gente já pode afirmar que, hoje, nós temos mais mortalidade gerando composição do que crescimento da floresta. Trocando em miúdos, nessa parte, a floresta está mais morrendo do que crescendo. É uma calamidade. E se colocasse na ponta do lápis o custo do desmatamento, e o prejuízo que o Brasil já está tendo com essas consequências, esse modelo fica insustentável inclusive do ponto de vista econômico. Nós já temos tecnologia e conhecimento suficientes para mudar esse quadro, mas não estamos fazendo isso porque a parcela mais rica da humanidade, que é quem está detonando o planeta, acha que ainda não está rica o suficiente. É uma ambição doentia que está levando todo mundo para o buraco. Eu como pesquisadora da Amazônia fico completamente desesperada. De certa forma, é como se eu estivesse vendo as pessoas se matando. Quantas pessoas já não estão morrendo com os efeitos da crise climática? Já estamos vendo inúmeras enchentes, incêndios infernais, e cada vez mais esses efeitos vão se intensificar, e mais vítimas surgirão. O jeito que a gente sempre viveu, sempre produziu, e sempre consumiu, vai ter que mudar em razão da crise climática. Nós precisamos nos adaptar às mudanças que já estão ocorrendo, e tentar mitigar ao máximo os seus efeitos, e não o contrário, acelerar essas mudanças, que é o que estamos fazendo hoje aqui no país. A Amazônia é a nossa manutenção de condição climática no Brasil, para continuar tendo uma agricultura pujante, mas sustentável. Esse é o momento para fazer o máximo de esforço possível, de todos os setores da sociedade, para a gente poder construir esse futuro da forma menos catastrófica possível. A catástrofe do clima já começou, e vai ficar cada vez pior, as pessoas precisam entender isso. Do jeito que está, estamos caminhando para uma extinção. A vida vai ficar cada vez mais difícil nesse planeta.

Os políticos brasileiros precisam ouvir mais os cientistas para ter uma administração eficiente do patrimônio natural do país?

Definitivamente, nós temos que usar a Ciência para tomar essas decisões. Hoje nós vemos medida atrás de medida estimulando o desmatamento, e cada ano fica pior. Temos que usar a Ciência para planejar o futuro do Brasil, e construir um futuro menos trágico para o país. Eu costumo dizer que nós estamos plantando seca. Desmatar é plantar seca. E quem está tomando essas decisões, estimulando desmatamento, queimadas, grilagem, está apenas enxergando o primeiro dominó de toda a fila, como eu tinha falado, sem levar em consideração todo o resto. É uma irresponsabilidade sem tamanho. As pessoas que tomam as decisões no país precisam ouvir os cientistas, e utilizar todo o conhecimento que já temos disponível sobre esse tema. Hoje já estamos vivendo uma crise hídrica, que se transforma também em uma crise energética, e a cada ano vai chover menos e será pior se nada for feito.

E como levar essa informação hoje a quem tem poder de decisão?

Isso hoje é um grande problema. Atualmente os cientistas não têm o mínimo canal de comunicação com quem está tomando essas decisões. A gente poderia estar contribuindo muito para a construção de um futuro melhor para o Brasil, mas estamos sendo ignorados. É desesperador você saber tudo o que nós sabemos, e assistir as decisões que estão sendo tomadas, sabendo que isso vai ser uma catástrofe. Estamos em um caminho que vai ser uma tragédia para o Brasil. Às vezes eu me sinto vivendo dentro de um hospício. Durante a pandemia, no mundo todo, muitas das mortes que ocorreram foram resultado de decisões mal tomadas, que ignoraram a Ciência. As mesmas consequências de negar a Ciência para combater a pandemia, já observamos há mais tempo em relação às mudanças climáticas. Não é justo que toda a população pague por decisões tomadas sem fundamento científico nenhum.

Mathias Boni

Advogado e Jornalista. Especialista em Direito Internacional, com mestrado em Direitos Humanos e Direito dos Refugiados. Publicações principalmente relacionadas a esses temas, e também sobre a crise climática, políticas públicas, migração, relações internacionais e assuntos correlatos.

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