ODS 1
Em cartaz: o medo da sala escura do cinema
Como os pequenos e médios exibidores nacionais estão sobrevivendo com salas de exibição fechadas, estúdios segurando os melhores filmes e espectadores hesitantes
Regilson Cavalcante divide o tempo entre uma oficina de motocicletas e o Cine RT, seus dois negócios em Remígio, no interior da Paraíba. A 150 km de João Pessoa, a única sala de cinema da região, com 100 lugares e aberta em 2012, é ponto de encontro de moradores de Remígio, que tem menos de 20 mil habitantes, e de cidades vizinhas. Depois de sete meses parado por conta da pandemia de covid-19, o projetor do cinema deu defeito e não voltou ao trabalho. Enquanto tenta reunir recursos para repor as peças necessárias, o remigioense Regilson suspira e afirma que não vai desistir do negócio à la Cinema Paradiso:
“Foi preciso fechar o cinema por conta da pandemia, sem dúvida. Mas agora a minha situação financeira está ruim de verdade. Sou um mecânico de motos que tem um cinema. Mantenho os custos operacionais com o que ganho na oficina. É muito triste ver a sala fechada, vou lá quase todo dia mexer no projetor. O filme Cinema Paradiso me inspirou a restaurar o antigo Cine São José, que eu frequentava quando criança, e abrir o Cine RT. A história do menino Totó é encantadora. É negócio de amor, não sou empresário”.
Para tentar angariar recursos e consertar o projetor do Cine RT, um cinema de rua, Regilson começou em agosto de 2021 uma campanha de arrecadação de dinheiro. As informações de como doar estão no Instagram @CineRTRemigio.
Corta para a Região Sul do país. No interior de Santa Catarina, a paulista de Jaú Mariá Marins tenta se manter otimista. No dia 29 de outubro o primeiro de seus três cinemas retomou as atividades em Campos Novos, cidade de 36,5 mil habitantes a 350km de Florianópolis. Tenet, filme dirigido por Christopher Nolan, foi a estreia em cartaz na sala de 190 lugares do Cine Lúmine. Os três cinemas ficam em municípios diferentes, e são os únicos nas cidades.
“Os protocolos não são unificados, mas vamos reabrir. Estamos angustiados. Ficamos muito vulneráveis e sem recursos. Mas sou apaixonada por cinema. É meu espaço de meditação, o melhor lugar do mundo depois da minha casa. Ver a emoção do público, trabalhar com as escolas, apresentar o cinema às crianças… Este é o meu combustível e a minha vida”, diz Mariá.
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Veja o que já enviamosNo estado vizinho, em Santa Cruz do Sul, a 150km de Porto Alegre, Cristchie Bechert também contrapõe ansiedade a alívio. Seus dois cinemas, cada um com duas salas, são os únicos do município de 131 mil habitantes e reabriram na segunda quinzena de outubro.
“Foram sete meses muito difíceis nos quais ninguém conversava com os pequenos exibidores. A retomada será lenta e gradual. Reabrimos com apenas 30% da capacidade, uma hora de intervalo entre uma sessão e outra, duas poltronas de distância entre espectadores, e uma fileira vazia entre cada ocupada. Às vezes temos sessões com apenas um ou dois espectadores. Mas vamos em frente para mostrar que nossas salas são seguras”.
[g1_quote author_name=”Regilson Cavalcante” author_description=”Proprietário do Cine RT, na Paraíba” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Foi preciso fechar o cinema por conta da pandemia, sem dúvida. Mas agora a minha situação financeira está ruim de verdade. Sou um mecânico de motos que tem um cinema. Mantenho os custos operacionais com o que ganho na oficina. É muito triste ver a sala fechada, vou lá quase todo dia mexer no projetor. É negócio de amor, não sou empresário
[/g1_quote]Cris, como prefere ser chamada, tem dois cinemas de shopping em Santa Cruz do Sul e um total de 18 funcionários, todos com empregos mantidos até agora. No Cine Max, inaugurado em 2012, uma sala tem 170 lugares; a outra, 130. O Cine Santa Cruz, de 2016, também tem capacidade para 170 pessoas na sala principal, e 130 na menor.
“Sou apaixonada por cinema desde pequena. Quando abriu um shopping na cidade, não tive dúvida de que era hora de ter as minhas salas”, diz Cris, que nasceu em Santa Cruz.
Há duas décadas no ramo, Mariá começou com duas salas de rua em Jaú, no interior de São Paulo. Em 2017, com a chegada dos cinemas de shopping à cidade, ela transferiu o Cine Lúmine para as ruas do interior de Santa Catarina. Além da sala recém-reaberta em Campos Novos, em uma fundação cultural, há uma em Caçador (cidade de 79 mil habitantes a 400km de Florianópolis), com 145 lugares, e outra em Curitibanos (município de 40 mil habitantes a 320km da capital), com 130 lugares. Mariá manteve os dez funcionários.
“Vamos reabrir as outras duas salas. Estamos tranquilos em relação aos protocolos de biossegurança. Em Caçador, por exemplo, a lotação máxima permitida é de 50%, mas optamos por recomeçar com apenas 40%. O importante é trabalhar com segurança e oferecer segurança. Estou feliz e esperançosa. Espero que as distribuidoras ofereçam filmes novos que justifiquem todo o nosso esforço em retomar as atividades”.
Sem estreias, sem público
A pandemia da covid-19 teve impacto em todos os setores da economia, e foi especialmente dura com as artes em geral. Cinemas estão na parte final das listas de reabertura. E com a chegada de novas onda são os primeiros a fechar novamente. Como aconteceu em novembro na Itália, país do cineasta Giuseppe Tornatore de Cinema Paradiso (1988), e na Alemanha do Wim Wenders de No Decurso do Tempo (1976) no qual o protagonista é um técnico que conserta projetores em pequenas cidades do interior. Entre outras medidas, países europeus fecharam os cinemas para tentar a covid-19.
Dados da Ancine (Agência Nacional do Cinema) mostram que o parque exibidor do Brasil tinha 3.507 salas de cinema em 2019. Destas, mais de 700 são independentes ou pertencem a pequenos e médios exibidores. Não está fácil para os grandes complexos exibidores, mas são os pequenos e médios os que mais sofrem. A maioria destas empresas tem menos de dez salas de exibição, administradas pelos próprios donos, como Cris, Mariá e Regilson.
Vontade há. Pesquisa nacional do Itaú Cultural em parceria com o DataFolha sobre hábitos culturais no contexto da pandemia, realizada em setembro de 2020 e apresentada em outubro, mostra que ir ao cinema era o principal programa de 72% dos entrevistados antes da pandemia e aquele com maior potencial na reabertura, com 44% da preferência de 66% das pessoas que têm intenção de participar presencialmente de uma atividade cultural nos próximos meses. Porém, 46% dos entrevistados ainda não se sentem confiantes para retomar hábitos culturais.
Cada estado e município brasileiro tem suas regras de reabertura. No Rio de Janeiro, por exemplo, os cinemas começaram a retomar as atividades ao longo do mês de outubro. Mas o calendário de lançamentos mundiais dos grandes estúdios continua praticamente parado. E sem filmes novos fica ainda mais difícil atrair público. Tenet foi o primeiro grande lançamento no país depois da flexibilização das medidas restritivas. Adiada várias vezes desde julho, a estreia ficou para 29 de outubro. Na última semana do mês, antes de Tenet, apenas cerca de 20% dos filmes em cartaz no Rio eram de 2020. O dia 29 de outubro registrou dez estreias. Vários lançamentos importantes previstos para 2020 foram para o video on demand (VOD), como Mulan, da Disney. Ou adiados para 2021, como o novo James Bond, No Time to Die, da MGM.
Distribuidoras e estúdios estão reticentes. O público também. O que é compreensível em tempos de pandemia. Afinal, cinema é uma sala fechada onde se fica no escuro com desconhecidos por duas horas ou mais. Já é seguro? Não há resposta simples. A lotação foi reduzida, assim como o número de sessões diárias em uma mesma sala, que agora acontecem com um intervalo maior. Há novos protocolos de higienização, e poltronas e ar-condicionado passam por limpeza constante. A maioria das salas de cinema já funcionava com equipamentos que trabalham com fluxo de ar renovado, como nos hospitais.
A alternativa do vídeo sob demanda
Será o VOD, no qual se paga por cada filme assistido, uma saída enquanto persistir o medo da sala escura? O cinema doméstico provavelmente veio para ficar. Também possivelmente diminuirá o prazo entre um filme estrear no cinema e estar disponível para ser assistido em casa. O tradicional Cine Belas Artes, em São Paulo, com seis salas na esquina da Rua da Consolação com a Avenida Paulista, foi um dos exibidores nacionais pioneiros do video on demand e lançou serviço à la carte pouco antes da pandemia. Mais recentemente, criou uma assinatura, como fazem Netflix e Prime Video, entre outros serviços de streaming.
No Rio de Janeiro, o Grupo Estação tem 15 salas de cinema e patrocínio anual da Net, o que segurou a folha de pagamento de 75 funcionários e a manutenção durante os três meses primeiros meses da pandemia. Mas o grupo exibidor não conseguiu linhas de crédito e resolveu apostar no financiamento coletivo. A campanha “Continua meu, Estação”, arrecadou mais de R$ 737 mil doados por mais de 4,5 mil pessoas e evitou demissões até o final de 2020. Parte do dinheiro arrecado com a vaquinha on-line do Grupo Estação será usado no financiamento de um serviço próprio de vídeo sob demanda.
Mas não há indícios que o VOD vá sustentar estúdios, distribuidores e muito menos exibidores. Em setembro de 2020 a Bloomberg publicou um dado que mostra que o interesse por filmes sob demanda nos Estados Unidos caiu 30% em relação às primeiras semanas de pandemia. Disney e Universal, dois grandes estúdios que optaram por estrear filmes nos EUA on-demand durante a pandemia, não têm, por enquanto, novos planos de VOD. Outro fato a ser levado em conta: quem assiste filme em casa não compra pipoca. Bonbonnières são fundamentais para fechar as contas das salas de exibição seja em Santa Cruz do Sul ou em Hollywood. Mas VOD pode ser uma alternativa para festivais. A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, no final de outubro, teve sessões on-line com venda de ingressos (além de sessões em dois cines drive-in na capital paulista) e democratizou o acesso aos filmes.
Como é ir ao cinema durante a pandemia
Cinema na pandemia não estava na minha lista de prioridades. Mas depois de conversar com Regilson, Mariá e Cris, fiquei confiante e fui conferir como estava funcionando um cinema do Grupo Estação. São salas que frequento desde a abertura do Estação Botafogo, que deu origem ao grupo há 35 anos. Nada mais natural que fosse a minha escolha para a primeira sessão de cinema pandêmica, para driblar a insegurança com uma sensação de familiaridade.
O bilhete pode ser comprado pelo aplicativo do próprio grupo ou pelo de um site de venda de ingressos. Depois que o assento é escolhido, o app automaticamente bloqueia as poltronas em volta para manter o distanciamento social. Não é preciso imprimir, basta apresentar o celular na entrada. A temperatura é medida na chegada e há álcool em gel por toda a parte. Para aumentar a segurança, é preciso que o espectador também faça a sua parte. Ou seja, não ir ao cinema se não estiver se sentindo bem, usar máscara, permanecer no lugar escolhido para garantir o distanciamento social e manter as mãos limpas.
Fui a uma sessão das quatro de uma sexta-feira, a primeira do dia naquela sala. A paranoia foi junto e usei um spray de álcool 70 para dar um banho nos braços da poltrona. Não havia ninguém na minha fileira, na da frente nem na de trás. Éramos nove pessoas em uma sala de 94 lugares. Na saída, um funcionário que me lembrou um dos personagens do filme Os Caça-Fantasmas (1984), com um tanque de desinfetante certificado pela Anvisa às costas e um pulverizador nas mãos, entrou para fazer a higienização. A segunda, e última sessão da sala no dia, começaria uma hora depois. O Grupo Estação estava com lotação máxima de 50% e as sessões de cada sala começavam em horários diferentes para evitar aglomerações na entrada.
Não tinha me dado conta do tanto de saudade que sentia de cinema. Como Regilson, Mariá, Cris e todos os que amamos filmes não têm a menor dúvida, nada substitui a mágica da sala escura. Saí feliz, mas com o coração apertado. Quando poderemos voltar a ter como única preocupação ao ir ao cinema chegar cedo o suficiente para comprar a pipoca?
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Jornalista formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), trabalhou por mais de 25 anos na redação do jornal O Globo nas áreas de Comportamento, Cultura, Educação e Turismo. Editou a revista e o site Boa Viagem O Globo por mais de uma década. Anda pelo Brasil e pelo mundo em busca de boas histórias desde sempre. Especializada em Turismo, tem vários prêmios no setor e é colunista do portal Panrotas. Desde 2015 escreve como freelance para diversas publicações, entre elas o #Colabora e O Globo. É carioca e gosta de dias nublados. Ama viajar. Está no Instagram em @CarlaLencastre